domingo, 28 de abril de 2019

MORAR NA MORTE DOS OUTROS

Composição plástica de Maria Armandina Maia

morar na morte dos outros
fazer ruir uma casa breve e abandonada
e partir para lugar nenhum

no lugar-corpo moram todos os que se distraem
a morte é um tempo distraído
um mapa de fuga ao esquecimento

morrer é ficar
na solenidade de uma caixa ilusória
com fundo falso
onde me escondo
onde se escondem
todas as memórias que escaparam ao desastre

talvez a morte seja um instante simples
um pássaro molhado
um arrepio
fechar a última porta
libertar o último suspiro
acertar no último alvo
agarrar a luz
e dizer adeus
antes do primeiro verso

Adília César, in "o tempo o tempo" (2019), Eufeme

segunda-feira, 22 de abril de 2019

BICOS

Princípio de Linha VIII



A ave como metáfora é frequentemente utilizada no discurso poético. O poema como voo, o poeta como pássaro, a poesia dotada de asas...etc...etc. Em suma, a imaginação criadora como competência para conseguir voar mais longe. Curiosamente, conheço poetas com diversos tipos de "bico" e o exercício que fiz no sentido de fazer corresponder poetas meus conhecidos a cada tipo de pássaro/bico abaixo ilustrado foi bastante divertido. Exercício inútil, dirão. Pelo contrário, foi bastante útil: a reflexão ajudou-me a distinguir quais os poetas que, afinal, quero ler. Na verdade, quando se chega à minha idade, é muito importante não ir em cantigas de críticos literários tendenciosos e, na medida do possível, rentabilizar o meu tempo de leitura. A propósito, estou a ler a "captura ampla de peixes" de Rui Costa em "Mike Tyson para Principiantes".

Nota: Evidentemente que a metáfora também se aplica aos leitores.

Adília César

O ENIGMA DE ESOPO

Princípio de Linha VII


o lobo e a ovelhinha
Um lobo persegue os balidos de uma ovelhinha. A ovelhinha não sabe que para se salvar, pode saltar para as costas do predador e calar-se. A ovelhinha não sabe que tem tempo, muito tempo, para aprender a dar o salto até àquele lugar que se chama lonjura. A lonjura não existe, pensa a ovelhinha, a lonjura é aqui tão perto
O eco de uma existência banal é silencioso, pensa o predador. Mas o silêncio da morte é tão concreto como a vida que o antecedeu. E o lobo alcança a ovelhinha.
Quem é que se salvou?

Adília César

O TEMPO O TEMPO


«o tempo o tempo» é o novo livro de poesia de Adília César, lançado em abril de 2019 pela «Eufeme». Segundo a autora, a obra começou a ser escrita “na época das saias longas a arder”“Atravessa os desejos e as angústias de uma mulher que questiona o mundo em nome de todas as mulheres, as filhas, as amantes, as mães; escreve continuamente, o amor, a ausência, o sofrimento, a reconciliação, a compor uma linha do tempo imaginada entre a emoção e o pensamento que a ela pertence. Os poemas vão desenhando caminhos possíveis num mapa feito de passados, presentes e futuros, procurando dar significado ao tempo de uma vida, através da narrativa poética sem princípio nem fim”, explica a educadora de infância e formadora no âmbito da Didáctica das Expressões Artísticas.

Adília César é Mestre em Teatro e Educação pela Universidade do Algarve, publicou os livros de poesia «O que se ergue do fogo» (2016, Lua de Marfim) e «Lugar-Corpo» (2017, Eufeme) e colaborou na antologia «Fronteiras Humanas — O Drama dos Refugiados» (2016, Lua de Marfim). Tem colaborações dispersas em revistas, magazines e poezines, nomeadamente: LÓGOS – Biblioteca do Tempo, Eufeme, Piolho, Estupida, Debaixo do Bulcão, Enfermaria 6, Nervo, Nova Águia, Iberis, Gazeta de Poesia Inédita, Pa_lavra, A Bacana e Caliban. A estas juntam-se ensaios e artigos de opinião. É também co-coordenadora da revista literária LÓGOS – Biblioteca do Tempo.

Por Daniel Pina

sábado, 20 de abril de 2019

A FOTOGRAFIA DE UMA DEMOCRACIA ENCENADA


25 de Abril de 1974. Um dia ameno que parecia não mais acabar, infinito como o céu que transbordava esperança. A abóbada azul clara, cor da narrativa da liberdade. O ar livre e libertador, sobre as cabeças de todos nós, os que vivenciámos esse dia. Eu tinha apenas 15 anos e não percebi muito bem o alcance da Revolução dos Cravos, mas andei com os outros que andavam na rua, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem. Guardei um desses cartazes, o meu preferido, na parede do meu quarto, durante muito tempo. Sabia-o de cor, era a minha bandeira de Abril: de olhos fechados, recordo um fundo azul onde se inscrevia a vermelho o nome do meu país e o dia que o definiu: Portugal – 25 abril 1974. Vejo a imagem de um menino belo como um pequeno anjo, de pé, descalço, a pele clara e os cabelos louros encaracolados, vestido com roupas sujas e esfarrapadas: é o protagonista daquela cena; três mãos (onde se percebe a indumentária dos três ramos das Forças Armadas) seguram firmemente uma arma apoiada na vertical e o menino pequenino esforça-se para colocar um cravo vermelho no cano da arma, tal como lhe pediram para fazer. Sinto que ele quer obedecer, e obedece porque todos queremos obedecer àquela nova ordem das coisas, como se fossemos crianças crédulas e inocentes: caía a Ditadura e renascíamos livres, os novos e os velhos, os militares, os trabalhadores, os estudantes, os homens e as mulheres de todas as condições sociais. Não sabíamos naquele dia que afinal iriamos continuar a obedecer. No entanto, a fotografia apresenta uma rara e criativa mudança de paradigma: o instrumento bélico é agora uma jarra de flores. E isso é possível?

Biblioteca Nacional, acervo de cartazes:
Portugal 25 Abril 1974, Sérgio Guimarães


Onde andará o Diogo, a nossa “bandeira” de Abril? Há uns anos, foi tornado público que ele estaria a viver numa casa de tijolos vermelhos e jardim, na margem sul do Tamisa, em Londres, sendo um homem de família e director financeiro de uma empresa de distribuição… Um homem de “sucesso”?...

Façamos então uma viagem ao passado e entremos dentro da fotografia que se tornou o símbolo da Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974. A criança pequena chega ao estúdio fotográfico acompanhada pela mãe e pelo pai, ambos visivelmente orgulhosos, pela expectativa do acontecimento que se seguirá. O menino está entusiasmado. Disseram-lhe que vai tirar uma fotografia muito importante, mas que tem de fazer exactamente o que lhe pedirem, tem que obedecer. Num espaço mais reservado, despem-lhe as suas roupas janotas de menino rico, as quais são substituídas por outras, sujas e esfarrapadas. Descalçam-lhe os sapatos e as peúgas. Ajeitam-lhe os lindos caracóis louros. Está finalmente pronto. O menino rico está agora disfarçado de menino pobre. O menino de caracóis louros e roupa esfarrapada, descalço (é importante que se repitam estes pormenores), chama-se Diogo Bandeira Freire e tem 3 anos. Foi fotografado por Sérgio Guimarães, a enfeitar o cano de uma G3 com um cravo vermelho. O simbolismo da imagem resultou em pleno e perdurou no tempo: um golpe publicitário de uma Democracia encenada que para sempre fará parte da nossa memória particular e colectiva. Mas fomos todos enganados. Na verdade, Diogo não era o menino de classe humilde que o cenário da fotografia sugeria. Como o seu nome indica, é filho de Pedro Bandeira Freire que, naquela altura, era o proprietário dos cinemas Quarteto e a sua família vivia de acordo com um estilo de vida burguês.

Em 2006, aquando das comemorações do dia 10 de Junho, o Presidente da República Aníbal Cavaco e Silva, encontrou-se com Diogo Bandeira Freire, na época com 35 anos, em Serralves, no Porto, para o homenagear. Ficámos então a saber que a
té àquela data Diogo nunca tinha votado, nem em Portugal nem em Inglaterra, mas afirmava envergonhar-se desse facto.
Numa entrevista concedida ao Correio da Manhã, em 2010, surgiram as seguintes questões, onde Diogo admite a sua falta de interesse pelo tema:
«CM – “25 de Abril, sempre.” O que significa para si?
DBF – Nunca pensei nisso, mas se o 25 de Abril representa democracia, liberdade e a consciencialização das pessoas sobre deveres, como o de votarem, a frase é válida.
CM – Mas já a tinha ouvido?
DBF – Já, mas nunca tinha pensado sobre ela. Há milhentas maneiras de interpretá-la: se significa nacionalizar todas as indústrias, tirar os bens às pessoas, não muito obrigado. O 25 de Abril, de certa forma, também tem duas faces.»

Das muitas faces que o 25 de Abril de 1974 desde logo exibiu, realço a da própria fotografia simbólica de Diogo Bandeira Freire, uma das primeiras ficções históricas do Dia da Liberdade, da qual resultou de uma encenação irónica da Democracia: um menino rico a fazer de conta que era pobre. Apesar de todo o Povo estar na rua – os pais, as mães e os seus filhos – ninguém se lembrou de dar protagonismo a uma criança de origem humilde, ou seja, ao Povo. E assim, dificilmente posso admitir que num dos primeiros actos dessa peça monumental que foi a Revolução, tenha existido um 25 de Abril destinado às classes desfavorecidas – “O Povo é quem mais ordena”, mas só às vezes, como se foi verificando ao longo dos anos. Em palco, ainda é possível assistirmos hoje ao grande evento que é esse “Teatro” das Comemorações do Dia da Liberdade. Mas o rescaldo da festa é o que já existia antes: “eles” – o Governo – é que têm o poder e não sabem governar, diz o Povo (ainda) sofredor. Daí o estado actual deste massacrado Portugal.

Mas ainda bem que os Capitães de Abril nos ofereceram a Revolução dos Cravos. Encheram-nos de esperança pela constituição efectiva de uma Democracia onde todos podemos exercer plenos direitos de cidadania. Esta foi e é a ideia fundamental que poderá condicionar as nossas vidas, num sentido de intervenção positiva. No entanto, depois de tantos anos, causam mau estar e até alguma perplexidade inúmeros “cenários” e “figurantes” da sociedade portuguesa onde impera a corrupção e a pobreza, onde muitos políticos fazem de conta e nós fechamos os olhos porque estamos fartos de esperar uma Democracia mais democrática que tarda em chegar, estamos cansados de obedecer. Mas este é um outro 25 de Abril. Afinal de contas, é ainda necessário escrever outra narrativa da liberdade, mais justa e verdadeira, sem armas, sem cravos e sem bandeiras fictícias.

Adília César, in Algarve Informativo Nº 198

sexta-feira, 19 de abril de 2019

ALUCINAÇÃO

Lâmpada acesa fotografada com telemóvel por AC

Quero que a língua do poema te penetre
como um pilar de betão.
É inútil resistires à água vertical
na persistência das traves do título.

Linguagem tão alucinatória
para que o peso das palavras tenha tempo
de dar a volta ao mundo
antes da chegada das outras criaturas.

A descrição da catástrofe desenha o contorno da suspeita
para além desta súbita compreensão:
um barco sobrepõe-se ao rosto da terra
evitando a densidade das sínteses alusivas às águas.

Cai um verso na transparência do teu corpo
e dissolve a visão que ali se instalou.
O milagre da cura faz vacilar a razão
quando o cão lambe com amor as suas feridas.


Adília César, in Gazeta de Poesia Inédita (10 de Abril de 2019)
https://gazetadepoesiainedita.blogs.sapo.pt/adilia-cesar-alucinacao-82978

quinta-feira, 18 de abril de 2019

A CABEÇA DO MARIDO

Princípio de Linha VI


Era uma vez uma mulher que fez o marido perder a cabeça por seis vezes, na tentativa de o tornar um marido melhor. Mas pouco havia a fazer e à sexta foi de vez. Ela já não quis fazer as pazes e deixou ficar as coisas como estavam. Mais vale um belo corpo sem cabeça do que um marido de cabeça perdida.

Adília César

UM AMOR NO MEIO DAS COUVES


A Dona Rufina tem oitenta e seis anos. Uma vida pacata, um casamento de mais de seis décadas, dois filhos homens e quatro netos rapazes. No seio deste universo masculino, uma mulher pode sentir que há segredos que têm de ficar guardados para sempre. E assim foi até ao dia em que a fui visitar. O marido abriu-me a porta e encaminhou-me até ao quintal, onde ela me esperava junto de um bonito tabuleiro preenchido com o lanche destinado às visitas: chá de camomila e biscoitos de aveia. Vou dar uma voltinha, agora que ela já está acompanhada. E o marido saiu da casa e da história misteriosa.

Ainda bem que vieste, tenho uma história para te contar. Era sobre ela e o Senhor Jorge, o vizinho de toda uma vida. Isto dura há demasiado tempo, disse a Dona Rufina, tenho de contar a alguém e só uma mulher serena como tu me poderá entender. Sabes, sinto que vai acontecer qualquer coisa muito em breve. Há uma fraqueza que me puxa para debaixo da terra.

uma rosa é uma rosa é uma rosa

Contou-me que o Senhor Jorge se deslocava até à sua pequena quinta uma vez por semana, ao sábado, trabalhando arduamente ao sol a cuidar da horta e do jardim. Era essa ida ao campo que organizava o seu ritmo de vida. De volta à casa citadina, o banho quente entorpecia as dores do corpo e era chegada a hora de cumprir o ritual do amor feito à pressa, à noite, perto daquela hora em que a noite não sabia se ainda era sábado ou se já seria domingo. Ele passava bem sem isso, mas a mulher perguntava se ele queria, era o seu dever de esposa. Ele dizia que sim, era o seu dever de esposo, e o prazer que sentia até era confortável, funcional, um acto quase solidário, durante o qual ele esvaziava o pensamento e se concentrava na tarefa da intimidade utilitária. A ansiedade de sábado antecedia os acontecimentos significativos de domingo e permanecia nas entranhas. Na verdade, era uma boa sensação, a culminar frequentemente no alívio daquele prazer marcado no calendário, como uma espécie de troféu para compensar o mau estar contido na recorrência de um mesmo pensamento, a coisa amada do outro lado da rua, no dia seguinte. O tempo que quase deixa acontecer.

Tudo girava em torno do ciclo domingueiro. Desde a missa matinal, o almoço com a família, o único brandy consentido durante toda a semana. E a limpeza do exterior da casa e do quintal. O calor morno e macio do crepúsculo adivinhava a ansiedade que ele já sentia, quando se dirigia ao canteiro para compor as trouxas de couves destinadas aos familiares que esperavam a hora de ir para as suas casas. Cinco molhos de couves, um por cada dedo da única mão que conhecia, a mão que colocava uma rosa vermelha colhida no seu jardim, dentro de um molho de couves especial, o que tinha o sabor e o perfume do amor. A personificação da delicadeza.

Depois, a calma era devolvida ao espaço da casa, a mulher a varrer e a lavar o chão durante pelo menos um quarto de hora. Um quarto de hora, em que o dia não sabia se ainda era tarde ou se já seria noite, o tempo suspenso, à espera daquele momento. Do outro lado da rua, a Dona Rufina aparecia à janela. A postura segura e direita do corpo a evidenciar uma segurança contrariada pelos olhos e pelas mãos. Os olhos tão brilhantes, quase lacrimosos da emoção e as mãos ternas, ainda vazias, a segurarem a ansiedade da dádiva dele, que agora caminhava até ao seu encontro. E eis chegado o momento do verdadeiro acto de amor, a oferenda de um viçoso molho de folhas de couve, onde se escondia, bem no meio, um botão de rosa, carmim e transgressor, denso como o ar que se custava a respirar, a ansiedade a embrulhar o afecto, a sedução a aceitar a beleza de um momento sempre único, o ritual edificado entre as mãos dele e as mãos dela, entre os olhares embebidos pelo brilho do sentimento. Um botão de rosa, dois corações tão vivos. Nem uma palavra, nenhum toque. Apenas o ritual da passagem, a energia da possibilidade de um sonho, a dádiva e as palavras que não precisam ser ditas. O tempo que quase deixa acontecer, mas não deixa acontecer, durante mais de sessenta anos.

Depois de eu morrer, podes contar a quem quiseres. Mas ninguém vai acreditar, não é? E deu uma gargalhada jovial perante o meu silêncio cauteloso.

Adília César, in Algarve Informativo Nº 133
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_20informativo_20_23133

CORPO, LUGAR-CORPO

Princípio de Linha V



Um corpo é um mapa, dizes, quando os nossos corpos são o mesmo lugar-corpo. Quando o que se vê é o que se sente sem se ver.


Está bem, nada a opor. Mas a afirmação é pouco interessante, não achas? Demasiado óbvia em relação à fotografia escolhida para a ilustrar, a qual, sendo estranha e talvez feia para alguns, nada acrescenta à ideia visual propriamente dita. 



Mas se tu disseres, o meu corpo é o teu mapa, muda a percepção das ideias de ambas as frases. 

A narrativa, pelo simbolismo que evidencia e pelo seu explícito conteúdo metafórico, poderá disparar o imaginário de cada um de nós em inúmeras direcções. Além disso consubstancia a imagem algo chocante, que se torna até bela, em correspondência com o pensamento que as palavras podem evocar. 

Mas o que me ocorre imediatamente, sem atender a grandes reflexões, é a seguinte ideia-chave: se cada uma das duas afirmações fosse o verso inicial de dois poemas diferentes, eu leria o segundo e não perderia tempo com o primeiro. A diferença é subtil, mas são pormenores como estes que iluminam os caminhos da poesia, quando a leio ou escrevo. Pequenos mapas conceptuais com súbitos, deslumbres. 

Na escrita e na leitura de poemas, é necessário ter um mapa, para não nos perdermos na escuridão da mediocridade estética. O poder da estética, essa avassaladora convulsão interior visível no exterior.

MORRESTE-ME

Lua de Marfim, 2016

morreste-me


morreste-me
e eu improviso uma substituição de ti
chamo um nome parecido ao teu
como se fosse o som delirante da nossa intimidade
um portão aberto à tua ausência

morreste-me
e eu invento uma nova forma
de olhar aquilo que tu já não vês
uma miragem
uma secura dos olhos

piso a terra do jardim onde te enterrei
terra fértil
os vermes a construírem mapas de ti
as ervas daninhas da sobrevivência
acalmam o pó do meu sofrimento

mas morreste-me
e os malditos vermes devoram as palavras perdidas
nos pequenos caminhos da carne)


(Adília César, in O que se ergue do fogo, Lua de Marfim, 2016)

*

me has muerto

me has muerto
y yo improviso un reemplazo de ti
llamo un nombre parecido al tuyo
como si fuera el sonido delirante de nuestra intimidad
una puerta abierta a tu ausencia

me has muerto
y yo invento una nueva forma
de mirar lo que ya no ves
un espejismo
una sequedad de los ojos

piso la tierra del jardin donde te conocí
tierra fértil
los gusanos construyendo mapas de ti
las malas hiervas de la supervivência
calman el polvo de mi sufrimiento

pero me has muerto
y los malditos gusanos devoran las palabras perdidas
en los pequeños cenderos de la carne


(Tradução de Fernando Pessanha)

quarta-feira, 17 de abril de 2019

TATUAGEM

Princípio de Linha IV



A tatuagem é um vestuário emocional, um jardim da mente.

Adília César

CICATRIZES/CICATRICES

René Magritte - Young Loves, 1967

Cicatrizes

Na pele inteira, a liquidez do amor.
O caos a deslizar no cetim do peito.
A guardar o coração no espaço
entre as mãos rasgadas.

Talvez nas mãos durmam as cicatrizes. Talvez.
A ausência a sombrear o silêncio. De dor.

A noite é o corpo constante da ausência.

Adília César

*

Cicatrices

En la entera piel, la liquidez del amor.
El caos deslinzándoze por el satén del pecho.
Guardando el corázon en ese espacio
entre las manos rasgadas.

Acaso no duerman las cicatrices. Acaso.
La ausencia haciendo sombra al silencio. Del dolor.

Es la noche el cuerpo constante de la ausencia.

Tradução de Manuel Moya

POEMA DOS PASSOS

Lua de Marfim, 2016


quis olhar para dentro da manhã
como nunca me tinha visto antes
um devoto caminho na placidez dos passos
silêncio andante na promessa de ir sem voltar

- porque gritam os pássaros
se a água insiste em salpicar as suas asas?

é madrugada e o sol há de chegar confiante
por entre certezas de sombras sinceras
a tecer os grãos de areia que guiam os pés caminhantes

mil passos e ainda tão longe de mim
tão inatingível o destino por amanhecer
como se a urgência da noite teimasse em ficar
a esconder o brilho sedutor do espelho de água
onde se revela a beleza do que é ínfimo e eterno

- porque morrem as conchas
se a maré se esquece de acordar?

nos olhos lavados dos peixes, o desgosto entorpecido
renasce na simetria das escamas corajosas
a dimensão breve do recobro das horas repetitivas
dormência do tempo que falta até chegar
incertezas a doer no cântico das pedras soltas
no vacilar do toque tímido dos dedos às veredas infinitas
a respiração a devolver a vida às coisas inertes
em sintonia cálida e sincera

- porque sonham as borboletas
se o vento desfalece nos arbustos?

camarinhas brancas e doces numa pose paciente
acalmam o remoinho da momentânea melancolia
como se a vertigem do último degrau
oferecesse o voo das gaivotas às nuvens dançantes

a madrugada apregoa saudades à nascente do dia
a frescura da brisa revela novos modos de adivinhar árvores
a mudar a cor do que antes era cinzento

- porque choram as estevas
 se o sol atende pelo único nome que conhece?

a luz é sempre uma promessa de sorrisos
quando o ar se veste de sons, de improvisos macios
todo este céu a caber numa gota de silêncio puro
música intermitente da respiração das coisas
como as velhas tábuas dos barcos em terra
a viajarem tardiamente no declive das algas

- porque sussurram as formigas
se a terra não gosta de surpresas?

nos precipícios cansados do meu corpo
abandono a inutilidade visceral do sangue
e guardo o paraíso interior que nasce subitamente
na fina pele do ruído do pensamento que se cala num êxtase
sei  agora que chegarei ao centro de mim
ainda que os olhos fechados me digam a demora de uma vida
dissimulada pelas incertezas dos que desistem de caminhar

Adília César, in o que se ergue do fogo, Lua de Marfim, 2016

O CÉU DE JOHN CONSTABLE


«Nuvens
Seguidas por outras, dissolvem o sol ao passar
Por dentro e por fora dele. Massas escuras
O mancham de novo, suaves feixes-de-luz dispersos.»
(Meditação sobre John Constable, de Charles Tomlimson)

John Constable - Seascape Study with Rain Cloud

– Hoje vou pintar as nuvens por cima deste mar. – diz Constable.
Elas mudam a cada instante e por isso, pinto o mais rápido que me é possível. O sol, ténue e fragmentado. Raios de luz mansa.

Mas tudo muda, tudo muda. O que aí vem é uma perturbação da natureza. O céu, o sol, a chuva, o vento, a luz, o frio, as nuvens. Tudo muda. O vento gélido transforma as tintas numa pasta grossa agarrada aos pincéis. É difícil a minha missão. A narrativa da natureza coincide com a minha expressão sincera de respeito pela paisagem: nuvens que dançam, cinzentos abstractos, o branco que parece afogar-se neste céu tão pesado. Oh tempestade.

Já não sinto o frio. O milagre da criação transforma-me num outro eu. Todo o meu corpo é uma intenção estética, uma obsessão jubilosa pela obra, a que me entra pelos olhos e a que represento na tela. Vejo e pinto. Vejo e pinto. Vejo e pinto. Sei que me é permitido este jogo de repetição. As nuvens que vejo hoje já não são as mesmas que vi ontem ou que verei amanhã. Mas em cada dia há um quadro que nasce, uma nova visão da evanescência de outras visões.

A chuva que se derrama sobre mim colabora na extensão do meu corpo que realiza a pintura. A mão fria é um ornamento da presença artística da paisagem cruel e intensa. Todos os dedos estão cinzentos e organizam-se em torno da janela de um tempo presente, esse rectângulo roubado à natureza do inverno, essa tela repetida até às profundezas do eterno.

A tempestade abate-se sobre a invisibilidade do ar. Respiro avidamente e bebo os tons do vendaval. Mas estou sempre sôfrego e tenho sempre sede de mais. Sempre. Sei que amanhã estarei aqui outra vez, neste mesmo lugar, a olhar e a pintar outras nuvens. E guardarei essas impressões no branco da tela que ainda não se afogou, para que o meu coração descanse numa visão impressionista do espírito perturbado da tempestade.

A chuva é o sangue do céu que jorra de todos aqueles corações nublados, cinzentos, brancos, tão longe do meu peito que os quer guardar a todos. Todos os corações, todas as nuvens são a minha força e a minha fraqueza, a minha vontade e a minha consumação. Nas mãos molhadas guardo a obra do dia que se faz noite, no pensamento redimo a esperança na noite que se fará dia.

Oh nuvens. Que leveza demonstram no seu bailado tenebroso. Como pintar o último traço se a dança é infinita? Como desistir daquilo que me assombra e fascina? Que súbito, que cor, que tom? Como abandonar este meu lugar-corpo, imprescindível e fatal? Por onde irei se só posso estar aqui? Nuvens seguidas por outras, dissolvem o sol ao passar por dentro e por fora dele. Massas escuras o mancham de novo, suaves feixes-de-luz dispersos. Sei que morri hoje e sei que a paisagem é a obra e o artista no encalce da perfeição impressionista, romântica e eterna. Oh vida.

Nota biográfica
John Constable (Suffolk, 11 de Junho de 1776 – Londres, 31 de Março de 1837). É um pintor difícil de catalogar. Os seus quadros obedecem a uma técnica impressionista na execução e no tratamento da cor, mas os motivos podem considerar-se românticos. Foi pioneiro na percepção e estudo da mudança dos efeitos da luz e das condições atmosféricas na arte. O seu tema principal foi a própria natureza, explorando incansavelmente novos caminhos para representar a transformação, principalmente as mudanças de luminosidade do céu e os seus efeitos sobre todo o meio ambiente. Constable foi um grande inspirador para os pintores do Romantismo e pintores de paisagem em geral.

Adília César, in Algarve Informativo Nº 137
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__137

ZONA X


Poema Um

Pablo Picasso - Rapariga em frente ao espelho
Raio X da mesma obra

X é uma incógnita.
Uma incógnita é igual a outra incógnita.
As incógnitas são todas iguais entre si, sendo que
X é igual à quantidade de todas as quantidades de X.

Que X seja igual ao medo.
Assim, X é igual ao tempo das guerras insanas
e o número de mortos aproxima-se do infinito.

Nunca terei o mesmo medo agora do que no futuro.
O futuro do medo é o infinito da morte.
O futuro do alívio é o futuro do mesmo medo.
A morte dos outros é infinita e aceitável,
nunca sendo assim insana, a não ser em tempo de paz.

Mas X ainda é igual à quantidade de todas as quantidades de X.
Que X seja igual à noite escura ou luminosa. Assim, X é o firmamento
das constelações visíveis e invisíveis no imenso breu
e o número de estrelas aproxima-se do mesmo infinito.

Nunca verei todas as estrelas que existem no universo
dos sonhos passados e futuros. O futuro dos sonhos
é infinito como todo o tempo de todos os mundos
e finito como a minha única morte.
O futuro da luz é o passado da escuridão,
mas a escuridão é infinita, nunca sendo assim luminosa,
excepto quando sonho a luz das estrelas em tempo de guerra.

Adília César, in Revista Enfermaria 6
Imagem: Pablo Picasso: Rapariga em frente do espelho, 1932
óleo sobre tela, 162.3 x 130.2 cm, Museum of Modern Art, New York

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA