sábado, 29 de janeiro de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [31] por Adília César

 

Esta expressão, «a leitura», há cem anos, sugeria logo a imagem de uma livraria silenciosa, com bustos de Platão e de Séneca, uma ampla poltrona almofadada, uma janela aberta sobre os aromas de um jardim: e neste retiro austero de paz estudiosa, um homem fino, erudito, saboreando linha a linha o seu livro, num recolhimento quase amoroso. A ideia de leitura, hoje, lembra apenas uma turba folheando páginas à pressa, no rumor de uma praça.

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma) 


Nicolas de Staël - Paysage Méditerranèen, 1954

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HÁ MAIS DE TRINTA ANOS

assisti a uma peça de teatro com um título inquietante, de tão contraditório: MÁSCARAS E MÁS CARAS. Já não recordo o enredo da peça, mas ficou na minha memória a perturbação de não conseguir decifrar, ao longo da vida, as máscaras alheias, apesar de inúmeras tentativas. Pela mesma razão, resisti durante muito tempo aderir às redes sociais, ao perceber que a rede é uma colecção de más caras, salvo honrosas e relevantes excepções. Aqui, no "livro dos rostos" (ou deveria chamar-se o "livro das máscaras"?), a discrição é qualidade ou defeito? Rede, teia, embaraço circunstancial.

 

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ENSAIAR

ensaiar ensaiar. Parece um eco. O verbo é acção repetida, repisada, com vista à minimização dos erros de uma qualquer acção. A noiva ensaia os passos de dança para inaugurar o baile no dia do seu casamento. A criança ensaia a lengalenga para apresentar à família na festa da escola. O poeta ensaia a criação de versos na procura do poema e, em dada altura do processo criativo, procura o título perfeito para o seu livro – infelizmente, nem sempre consegue.

 

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TENTAR

fará sempre parte de todas as facetas das nossas vidas. Não convém, no entanto, confundir “tentar” com “experimentar”, pelo menos no sentido de se ter muitas “experiências de vida”, tendo em conta a tentação universal das pessoas de combaterem dias entediantes. Já as experiências laboratoriais são, efectivamente, acções de tentativa e erro, até que os cientistas atinjam os seus objectivos ou consigam, pelo menos, chegar a algumas conclusões dignas de serem publicadas em revistas da especialidade. Ensaiar, portanto, é tentar acertar os passos que damos em qualquer detalhe do quotidiano, seja uma receita de culinária, uma pega de croché, uma aula, um poema. Ou um título de um livro.

 

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VIVER

é uma sucessão de tentativas e erros. Estamos sempre a falhar, mas nem sempre aprendemos com os nossos percalços. Tantas vezes é impossível reparar o erro cometido ou tão-pouco repetir a acção anterior (as variáveis, tal como o nome indica, variam ao menor desvio).  Com a leitura acontece o mesmo fenómeno. Se o livro começa pela capa e, principalmente, pelo título, que pistas devo procurar para não errar o alvo? A subtileza de uma metáfora? A violência de uma explícita denúncia? A confortável sensação de uma palavra requintada? Posso, de vez em quando, ficar fascinada com a loucura do léxico alheio, mas nunca cedo à chantagem da lapalissada.

 

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É DIFÍCIL

resistir à pomposidade de uma “Ode”: aquele “O” está a gritar, logo, o livro parece conter um texto importante, inequívoco, promissor do ponto de vista da estética literária. É preciso ouvir o texto, portanto. E seguindo-se o adjectivo “Triumphal”, escrito com o clássico “ph”, acrescentam-se camadas de significação apelativas que vêm da origem dos tempos e da linguagem, tão estimulantes para a curiosidade humana. Mas o problema está prestes a rebentar-me na cara: o poeta escreveu uma “Ode Triumphal” a quê? Ah… isso, essa explícita banalidade contemporânea. Ora se um título é quase tudo para cativar um leitor, deixo um recado: caro poeta, não me dês “quase tudo” esparramado na capa, porque “quase tudo pode ser demais” e o teu livro perde, consequentemente, “quase tudo”. Resta um mau título na capa de um livro que eu não tenho vontade de ler. Menos é mais, entendes?

 

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ENTÃO,

dir-me-ás que eu não tenho nada a ver com esse assunto que a ti diz respeito, e que os títulos dos livros apenas denunciam o tema principal, ou seja, o que interessa nesta questão, que para muitos parece ser uma não-questão, é ler a obra apresentada sob aquele título, e não uma análise filosófica e transcendente sobre as palavras que sintetizam o enquadramento do assunto poético. Certo. No entanto, o livro, ao ser publicado, torna-se público e eu tenho o direito de me manifestar, uma vez que a mim se destina, como hipótese de leitura pessoal: não é para esse fim que os autores escrevem livros e os editores os publicam? E, todavia, não existe a partir de um mau título a imortal serenidade que instigue à leitura, existe apenas um mau título. E ocorre-me uma ideia perigosa: diz-me que título dás ao teu livro e dir-te-ei quem és.

 

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AS PALAVRAS

não têm gaiolas que as prendam. Têm asas. As palavras são livres, povoam as nossas cabeças num arremesso contínuo, em estreita ligação com os estados emocionais, as inquietações, os anseios. Tudo isso nos pertence numa intimidade difícil de controlar. A minha intimidade, as minhas palavras. Eu sou a minha intimidade, sou as minhas palavras. Tu és a tua intimidade, és as tuas palavras. Às vezes, existe uma sintonia rara. E volto ao mistério: as palavras também têm máscaras ou, por vezes, possuem armadilhas de leitura que apanham os leitores incautos na teia da ignorância. A ingenuidade leitora também é uma forma passiva de controlo de massas. Afinal, o que é a literatura? Uma abertura do espírito ou uma castração do pensamento? Contudo, tendo plena consciência do perigo a que me exponho, insisto na tentativa de manter as fronteiras das minhas percepções em amável e tolerante permissividade: e se a má cara desse título esconde uma visão genial? Ah, mas assim a crónica seria outra.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_324

sábado, 15 de janeiro de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [30] por Adília César

O embarque fez-se com a confusão habitual, complicada com os embaraços de um mar agitado: os barcos iam cheios de gente, uns de pé, outros sentados na borda, roçando pela água, outros gravemente equilibrados sobre a acumulação pitoresca das bagagens: ria-se, fulminava-se a organização e a polícia das festas, gritava-se um pouco quando os barcos pesados oscilavam mais inquietadoramente.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Adoro-te" - Fotografia de Adília César, janeiro 2022, Faro

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A IDEIA PRINCIPAL

navega no mar do pensamento e a sua sobrevivência depende do clima: períodos de sol com momentos de felicidade extrema; existência de nuvens suaves com abertura do coração a surpresas; céu muito nublado com possibilidade de choros durante a noite; aguaceiros e períodos de espírito vagamente inquietos; rajadas de vento forte com existência de silêncios; mente com poucas abertas e ciclos contínuos de esquecimento; eclipse total. A meteorologia psicológica muda a cada dia através de ciclos de intermitências emocionais registados em gráficos incompreensíveis. Desengane-se quem julga que há um mapa para o percurso mental.

 

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O CAMINHO

não se faz apenas caminhando, mas também na análise da descoberta de cada passo. E parte-se cada pedra em que tropeçamos, para construir alguma coisa que valha a pena. Erguem-se canteiros de flores, muros, edifícios ou uma ponte bem sólida, a minha construção preferida, por ser tão complexa, por denunciar uma utilidade metafórica. Por vezes, não é possível ultrapassar o obstáculo e é preciso voltar atrás, mesmo que já tenhamos chegado longe. Caminho pela cidade. Aqui não há pontes, apenas pressinto passos em falso. Sou obrigada a percorrer uma distância considerável porque não há lugar para estacionar o carro, a não ser ali, naquela praceta escondida e longe de tudo. Procuro uma esplanada minimamente apresentável e convidativa para tomar um café. O sol de inverno é morno, contagia-me com a sua alegria amena. “Eu caminho este caminho pelo caminho”: “caminho” é verbo, substantivo e também advérbio de lugar, o que me deixa divertida ao estabelecer conexões mentais meramente recreativas. De repente, depois de repetir a mesma palavra tantas vezes – “caminho” –, ela deixa de ter significado e torna-se desconhecida na minha paisagem lexical. Sorrio: hoje é dia de inclinar a cabeça para um lado mais infantil. Apetece-me correr, mas tal não é possível porque estou de salto alto e uso um chapéu de feltro; entre os dois adereços, um vestido justo e uma capa a condizer. Ao contornar um contentor do lixo, vejo aquilo.

 

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AQUILO

parece ser uma oferenda destinada a um “puto” qualquer. Exibe uma legenda explícita, negra sobre o fundo branco, inscrita no plano sentimental da pessoa que a fez com as suas próprias mãos e a ofereceu a outra pessoa que, por certo, fará parte da sua colecção especial de afectos – o “puto”. Há outras palavras pintadas em linhas estratégicas do plano bidimensional disponível, mas não consigo decifrá-las. Contudo, à primeira vista e tendo em atenção o local onde o objecto se encontra – junto do contentor do lixo – a dádiva não foi muito bem acolhida pelo destinatário, o “puto”. Quem será o “puto”? Alguém insensível, creio.

 

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O LABIRINTO

arquitectado pelos pensamentos é sempre sentimental. As circunstâncias que impelem ao acto e, em consequência dele, comovem ou não o outro, são sempre emocionais. Mas a razão estabelece-se de forma tortuosa e nem sempre o resultado é o esperado. O emissor “adora” o “puto”, e essa adoração surpreende pelas formas, cores e tempo destinados à criação intencional, única, irrepetível e intransmissível de uma tela decorada com desvelo. Contudo, o outro, o “puto”, nem por isso fica surpreendido, e dá à mensagem um destino cruel, apesar dos “Mil Parabéns”. Quantas dimensões humanas tem o plano dimensional da tela? É possível que um objecto carregue um peso demasiadamente humano? Até eu, que não conheço nem quem dá nem quem recebe, vejo o sentimento de desprezo, ali, deitado no chão: tem forma e cor bem definidas (embora carregadas de sombras). O milagre da borboleta sobre a flor não ilumina aquele transtorno.

 

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É PRECISO

acalmar o mar, varrer as misérias humanas e as boas intenções que não cumprem o seu papel. É preciso estar mais atento às necessidades dos outros. Os inúmeros objectos que eu compro, os presentes que eu ofereço, servem de consolo a quem? A mim ou a ti? Acumulamos coisas, especulações e desejos na bagagem festiva e embarcamos na vida como se não houvesse amanhã. Mas dezembro já ficou lá para trás e neste tempo de rescaldo do último Natal, já prevejo novas inquietações no planeamento do próximo.

 

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TIRO A FOTOGRAFIA

daquela visão algo obsessiva que parece chamar por mim e imediatamente tomo a decisão de escrever estas notas contemporâneas. O impulso inspirador acontece-me, de vez em quando. A representação fotográfica da tela sopra-me uma história ao ouvido que parece plausível, dadas as patéticas circunstâncias. O protagonismo é dado ao destino das palavras “adoro-te, puto”. Sim, “puto”, eu também te adoro! Embarquemos neste novo ano com amor que, não bastando por si só, dá uma preciosa ajuda para acalmar as inquietações da vida. Cuidemos do futuro, com serenidade e alguma urgência. Ou seja, sem reticências nem pontos de interrogação.

 

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DE REPENTE,

ocorre-me uma ideia estonteante: e se o “puto” nunca tivesse recebido a tela? E se quem a elaborou não lhe deu o devido valor e preferiu largá-la no lixo, obstruindo o caminho lógico da intenção-acto-consequência-desalento? Ah, assim o “puto” nunca saberia que era “adorado”. Ah, mas assim a crónica seria outra.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_322

sábado, 1 de janeiro de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [29] por Adília César

Tão profusa, e complicada, e tumultuária, e rápida se tem tornado a vida moderna que, se os seus factos dominantes não fossem flagrantemente apanhados em imagens concretas, e fixados em resumos límpidos, nós teríamos sempre a aflitiva sensação de irmos levados num confuso e pardacento redemoinho de ruído e poeira.


Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Dreams" - Arte fotográfica digital de Robert Jahns

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EU NUNCA

estive realmente aqui. Viajo no tempo, observo o que me chama a atenção, mas não permaneço por muito tempo num lugar onde sou invisível. Depois esqueço, literalmente. A memória habita os meandros mais improváveis e dissimulados. A inquietação amplia os limites do eco reverberado até ao infinito. Eco. Eco. Eco. Tudo é ruído, tudo se transforma em poeira adiada para o futuro. E, e, e, e… há sempre alguém que acrescenta mais qualquer coisa ao que foi dito e redito. É um castigo para a civilização, esta inutilidade de tantas palavras que são ditas e reditas. Que fazer com os discursos repetidos do passado que infectam o presente?

 

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O CAMINHO

a subir nem sempre tem o caminho a descer. Com alguma fantasia especulativa é possível, facilmente, construir um sistema filosófico que fique por ali a espreguiçar sobre o senso comum das pessoas. É possível e… tentador. Veja-se, por exemplo, a proliferação de lamuriantes aforismos que povoam as redes sociais e que se propagam como um vírus de vestimenta vistosa, mas que, na verdade, são completamente inúteis e até contraproducentes. Há alguma máscara que nos proteja de tal demagogia? Este som de não dizer nada…

 

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HÁ PALAVRAS

que deviam deixar de existir, como “talvez” ou “vice-versa”, porque não servem para nada. Felizmente, também há palavras que parecem usar coroas nas suas cabeças, como “não” e “sim”, porque quando são ditas fazem toda a diferença. Há palavras que deviam ser inventadas, como “auaá”, perfeitas para utilização em espelho (“áaua”, estão a ver?) porque poderão servir para quase tudo, até para entender o significado profundo da vida: olhar para o espelho e ver por dentro de nós, estão a perceber? Não? Por agora, ficamos assim. Na verdade, a minha tese tem uma importância relativa.

 

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NAVEGO

na rede social e deparo-me com… bem, não vou descrever o indescritível. Quer dizer, tenho um discurso ensaiado com as adequadas palavras descritoras, mas não tenho a certeza se terão o poder de contrariar o imenso tédio que, entretanto, me invadiu. Porque me permiti entrar no palácio do invisitável? O dia ficou arruinado, digo.

 

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PERMITE-TE DISCORDAR,

diz a mãe. Escuto-a com atenção e dou-me conta de que o seu sistema filosófico se construiu tendo como alicerces os seus próprios sonhos, martírios e contemplações pensativas. As paredes da casa cada vez mais apertadas em redor da mãe. Permite-te discordar, insiste ela, ao deparar-se com o meu silêncio. Na crítica, “o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança”! Lembras-te daquela canção – “Pedra Filosofal”? Lembro-me muito bem: tem letra de António Gedeão e música de Manuel Freire. A canção, no seu todo, constitui-se como um sistema filosófico complexo, embora entendido pelas pessoas simples. Inesquecível. Pura. Intemporal. Sou invadida por uma espécie de felicidade estética, ao trautear a canção. Mas creio que a mãe está confusa, pois a canção fala do sonho e não da crítica… Ó filha, francamente, então os teus sonhos são iguais aos meus?! “Permite-te discordar”, ou seja, sonha o que nunca ninguém sonhou antes. Janeiro é o tempo dos sonhos novos. Não há dias arruinados! Fica atenta: chegou um ano novo, um mês novo, um dia novo. Permite-te discordar, critica, constrói um pensamento só teu. Esse é o teu contributo, é a tua pedra filosofal. Escreve e lê-me o que escreves.

 

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NÃO SEI

se conseguirei libertar-me deste “pardacento redemoinho” enquanto procuro, incessantemente, as “imagens concretas” de que preciso para não me deixar levar para alguma parte obscura de mim mesma, aquela pele de alma abismal, aquela longínqua face do pensamento amordaçado, anestesiado. O meu entusiasmo é, portanto, comedido. Anseio pelo “resumo límpido” dos factos da vida, anseio pela pessoa verdadeira que sou e que apenas se intui. Anseio pelo som de dizer qualquer coisa fundamental, a utopia da vertigem criativa, a enumeração exaustiva dos contrafactuais da existência humana. Ano Novo, discurso velho. E se?...


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_321


AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA