sábado, 15 de janeiro de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [30] por Adília César

O embarque fez-se com a confusão habitual, complicada com os embaraços de um mar agitado: os barcos iam cheios de gente, uns de pé, outros sentados na borda, roçando pela água, outros gravemente equilibrados sobre a acumulação pitoresca das bagagens: ria-se, fulminava-se a organização e a polícia das festas, gritava-se um pouco quando os barcos pesados oscilavam mais inquietadoramente.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Adoro-te" - Fotografia de Adília César, janeiro 2022, Faro

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A IDEIA PRINCIPAL

navega no mar do pensamento e a sua sobrevivência depende do clima: períodos de sol com momentos de felicidade extrema; existência de nuvens suaves com abertura do coração a surpresas; céu muito nublado com possibilidade de choros durante a noite; aguaceiros e períodos de espírito vagamente inquietos; rajadas de vento forte com existência de silêncios; mente com poucas abertas e ciclos contínuos de esquecimento; eclipse total. A meteorologia psicológica muda a cada dia através de ciclos de intermitências emocionais registados em gráficos incompreensíveis. Desengane-se quem julga que há um mapa para o percurso mental.

 

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O CAMINHO

não se faz apenas caminhando, mas também na análise da descoberta de cada passo. E parte-se cada pedra em que tropeçamos, para construir alguma coisa que valha a pena. Erguem-se canteiros de flores, muros, edifícios ou uma ponte bem sólida, a minha construção preferida, por ser tão complexa, por denunciar uma utilidade metafórica. Por vezes, não é possível ultrapassar o obstáculo e é preciso voltar atrás, mesmo que já tenhamos chegado longe. Caminho pela cidade. Aqui não há pontes, apenas pressinto passos em falso. Sou obrigada a percorrer uma distância considerável porque não há lugar para estacionar o carro, a não ser ali, naquela praceta escondida e longe de tudo. Procuro uma esplanada minimamente apresentável e convidativa para tomar um café. O sol de inverno é morno, contagia-me com a sua alegria amena. “Eu caminho este caminho pelo caminho”: “caminho” é verbo, substantivo e também advérbio de lugar, o que me deixa divertida ao estabelecer conexões mentais meramente recreativas. De repente, depois de repetir a mesma palavra tantas vezes – “caminho” –, ela deixa de ter significado e torna-se desconhecida na minha paisagem lexical. Sorrio: hoje é dia de inclinar a cabeça para um lado mais infantil. Apetece-me correr, mas tal não é possível porque estou de salto alto e uso um chapéu de feltro; entre os dois adereços, um vestido justo e uma capa a condizer. Ao contornar um contentor do lixo, vejo aquilo.

 

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AQUILO

parece ser uma oferenda destinada a um “puto” qualquer. Exibe uma legenda explícita, negra sobre o fundo branco, inscrita no plano sentimental da pessoa que a fez com as suas próprias mãos e a ofereceu a outra pessoa que, por certo, fará parte da sua colecção especial de afectos – o “puto”. Há outras palavras pintadas em linhas estratégicas do plano bidimensional disponível, mas não consigo decifrá-las. Contudo, à primeira vista e tendo em atenção o local onde o objecto se encontra – junto do contentor do lixo – a dádiva não foi muito bem acolhida pelo destinatário, o “puto”. Quem será o “puto”? Alguém insensível, creio.

 

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O LABIRINTO

arquitectado pelos pensamentos é sempre sentimental. As circunstâncias que impelem ao acto e, em consequência dele, comovem ou não o outro, são sempre emocionais. Mas a razão estabelece-se de forma tortuosa e nem sempre o resultado é o esperado. O emissor “adora” o “puto”, e essa adoração surpreende pelas formas, cores e tempo destinados à criação intencional, única, irrepetível e intransmissível de uma tela decorada com desvelo. Contudo, o outro, o “puto”, nem por isso fica surpreendido, e dá à mensagem um destino cruel, apesar dos “Mil Parabéns”. Quantas dimensões humanas tem o plano dimensional da tela? É possível que um objecto carregue um peso demasiadamente humano? Até eu, que não conheço nem quem dá nem quem recebe, vejo o sentimento de desprezo, ali, deitado no chão: tem forma e cor bem definidas (embora carregadas de sombras). O milagre da borboleta sobre a flor não ilumina aquele transtorno.

 

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É PRECISO

acalmar o mar, varrer as misérias humanas e as boas intenções que não cumprem o seu papel. É preciso estar mais atento às necessidades dos outros. Os inúmeros objectos que eu compro, os presentes que eu ofereço, servem de consolo a quem? A mim ou a ti? Acumulamos coisas, especulações e desejos na bagagem festiva e embarcamos na vida como se não houvesse amanhã. Mas dezembro já ficou lá para trás e neste tempo de rescaldo do último Natal, já prevejo novas inquietações no planeamento do próximo.

 

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TIRO A FOTOGRAFIA

daquela visão algo obsessiva que parece chamar por mim e imediatamente tomo a decisão de escrever estas notas contemporâneas. O impulso inspirador acontece-me, de vez em quando. A representação fotográfica da tela sopra-me uma história ao ouvido que parece plausível, dadas as patéticas circunstâncias. O protagonismo é dado ao destino das palavras “adoro-te, puto”. Sim, “puto”, eu também te adoro! Embarquemos neste novo ano com amor que, não bastando por si só, dá uma preciosa ajuda para acalmar as inquietações da vida. Cuidemos do futuro, com serenidade e alguma urgência. Ou seja, sem reticências nem pontos de interrogação.

 

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DE REPENTE,

ocorre-me uma ideia estonteante: e se o “puto” nunca tivesse recebido a tela? E se quem a elaborou não lhe deu o devido valor e preferiu largá-la no lixo, obstruindo o caminho lógico da intenção-acto-consequência-desalento? Ah, assim o “puto” nunca saberia que era “adorado”. Ah, mas assim a crónica seria outra.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_322

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