sábado, 18 de abril de 2020

O ADMIRÁVEL MUNDO DAS COMEMORAÇÕES


A economia, a saúde, gente a morrer todos os dias, etc. "Vai Ficar Tudo Bem", nem quero imaginar o que seria se tudo ficasse mal.

Raul Pimenta



A comemoração da Páscoa foi bem diferente, neste estranho ano de 2020. Na sua definição, o tempo destinado à Páscoa é a reflexão sobre a crucificação, a morte e a ressurreição de Cristo. Talvez seja a principal comemoração da tradição cristã porque coloca em evidência de Verdade a crença na ressurreição de Cristo, que se ofereceu em sacrifício para a salvação da humanidade, dando-nos a perspectiva de uma nova vida. Através de uma simples associação de ideias, chego aos técnicos de saúde e seus auxiliares retidos nos hospitais, em sacrifício, dia após dia. Tentam salvar a humanidade. Há muitas formas de crucificação e muitas maneiras de morrer, mas desconheço modos eficazes de ressurreição. Nesta Páscoa eles foram os meus "Cristos" e vieram substituir as amêndoas e os folares, as tais alegrias doces que não estiveram na minha mesa de Domingo de Páscoa por vontade própria. E no tempo do porvir – Estado de Emergência ou similar – eles são e serão os meus heróis. Demonstro um profundo respeito por todos esses corajosos e incansáveis profissionais através do meu confinamento, para não adoecer e não contagiar os outros. E isso basta-me enquanto comemoração e actual filosofia de vida.

Tenho também dedicado algum tempo a reflectir sobre o valor humano do mundo virtual neste período de isolamento, a tentar que o meu pensamento alcance algo diferente da coisa pensada, ou melhor dizendo, que encontre uma passagem para o real. Mas não é fácil. Na verdade, não podemos filtrar aquilo que queremos ver ou ler nas redes virtuais onde parece estarmos a gastar tanto do nosso precioso tempo: a quantidade de "shits" sobre a pandemia que nos é oferecida diariamente pelos “especialistas”, multiplicada em numerosos grupos de apoio à cena Covid-19, é avassaladora e viola as nossas intenções mais inocentes. Existem, no entanto, verdades bombásticas: a cada dia, há mais pessoas infectadas e algumas delas irão morrer; o mundo económico está em grande parte parado, causando um perigoso estado de precariedade no poder financeiro das famílias, logo, da sua sobrevivência; o país e o mundo equilibra-se numa corda bamba; a vida está suspensa bem acima das nossas cabeças ocas. Tudo se resume a sermos capazes de desenhar um mapa pessoal de sobrevivência, que é, afinal, igual para todos: não adoecer, não contaminar os outros, conseguir ter dinheiro suficiente para adquirir bens de primeira necessidade, ser solidário para quem mais precisa.

O espírito positivo está na moda e os arco-íris também. Mas nada disso nos irá salvar. Precisamos de acreditar no poder maligno deste novo vírus, desconfiar de tudo o que nos dizem e, até ao limite do impossível, prestar a devida vénia ao distanciamento social. Logo, uma boa dose de negativismo, sem distracções. Só isso dará mais tempo ao nosso tempo. Para não morrer ainda.

Graças a Deus, o Seu Filho já ressuscitou e podemos enterrar a Páscoa, dando início a uma nova semana que mais parece "a sombra de uma sombra" (belo título para um livro de poemas...). A vigilância assoberbada sobre os habitantes deste planeta infectado assusta-me. E aceitamos essa vigilância virtual porque estamos à mercê de um vírus que nos colocou a todos, de uma assentada, em sucessivos Estados de Emergência controlados pelas autoridades que afinal só nos querem salvar. 

Vêm aí outras comemorações: o 25 de abril e o 1º de maio. Este ano, e sem qualquer espécie de ironia, tentarei não aturdir o pensamento com ideologias de outros tempos e vou substituir os cravos vermelhos por máscaras, luvas e gel desinfectante, tomando a Liberdade como minha conselheira.

#VaiFicarTudoBem? Cuidado com a demagogia do espírito positivo. Faz mais sentido, para mim, o seguinte slogan: #VaiFicarTudoDiferente.

Adília César

sábado, 4 de abril de 2020

LER


Escultura de Lucas Simões

Nem mesmo o livro ainda não escrito começa com uma folha em branco. O livro prestes a ver o seu início já está escrito há muito tempo, em descaminhos e angústias universais da humanidade. Pois só assim a intervenção cultural se afirmará na memória das pessoas, contribuindo para a transformação e enriquecimento das ideias humanas. O que é uma acção/atitude idealista, ainda que utópica, sem a ideia/ideário que lhe corresponda? E só assim o acto de ler fará algum sentido.

Ler é assumir o outro como interlocutor em pleno uso do seu direito de comunicar. E é, juntamente com outras apreciações artísticas, um acto concreto de apropriação da competência humana que acarreta a maior responsabilidade perante nós e os outros: o exercício do livre arbítrio.


Escultura de Lucas Simões

Que livros ler?

Quando leio sou capaz de criticar o que leio, ou não?

Quando leio, sou capaz de me apropriar das ideias que me fascinam no percurso da leitura, ou não?

Após a leitura, sou capaz de transmitir o que é significativo e partilhar com os outros, ou não?

Afinal, ler é reescrever o livro lido. O leitor é um co-autor da obra, e provavelmente, a cada livro que lê, já não é a mesma pessoa, é "um outro" mais eficazmente protegido em relação ao vírus da boçalidade. A boçalidade não mata a cultura, mas mói a capacidade de intervenção.

Ler é poder, sejamos poderosos!

Escultura de Lucas Simões

Adília César

OS TÍTULOS PROVISÓRIOS


O que se pede à cena é apenas o delírio de uma coisa exacta.
Herberto Helder



Hoje fiquei em casa, como de costume. E ontem. E amanhã. O que se levanta é a lentidão de um gesto, na janela agora aberta, pela necessidade de fazer alguma coisa. A matéria reveladora do desalento dá significado ao medo de dormir e de acordar. Ergo uma muralha em redor dos acontecimentos fatais que ouço a toda a hora nas notícias. Esse é o retrato do mundo real, tal como nunca o tinha conhecido, um quase-tempo, um quase-lugar. E o tempo, com a duração esticada até aos limites do impossível, parece não ter movimento, é o cúmulo da inércia. As ruas, as nuvens, as pessoas, um vazio intolerável e desumano, de tão nublado sobre os telhados de vento e martírio. Quero sair para fora de qualquer coisa que me atraiçoa, mas fiquei em casa, como de costume. Iluminei-me com uma certa luz interior.

Amanhã é um outro dia que não vai chegar, pelo menos para alguns. Na verdade, “não vamos ficar todos bem”. Pelo menos, não da forma como conhecíamos os dias, concretos, palpáveis - esquemas organizadores do tempo de cada um. Por agora, permanecemos na fronteira do desconhecido, entre paredes e objectos tão familiares. O idioma das águas está a ser inventado naquele preciso instante do início da chuva, do princípio de tudo; parece ser sempre a primeira vez, de cada vez que acontece alguma coisa: o estrondo do trovão, o riso da criança, o ronco do automóvel pela manhã. Borboletas imaginárias nas experiências de espanto.

Estamos fechados em casa, em permanente delírio: quantos mortos?

Se tudo o que existe no mundo começou com um não, o arrepio é a sensação mais pura que Deus inventou, para dar a possibilidade aos humanos de contradizerem as tragédias. A Sua Mão a cair sobre as nossas cabeças, desde sempre. Depois, a cena desenrola-se na nossa consciência, como uma passadeira vermelha de vaidades, crimes, boçalidades e absolvições. O arrepio continua a ser a resposta visceral à propagação de todos os vírus, literais e metafóricos: a música que nos inebria, o poema que nos fascina, a imagem que nos choca, a mazela que nos apavora, a atitude altruísta que nos comove. E se para muitos Deus não é para aqui chamado, manter o arrepio como sensação de vida parece-me razoável, prodigioso até. Afinal, ainda estamos vivos.

Permaneço escondida em casa e espero um caudal de milagres. Não me atrevo a pedir ajuda, porque não compreendo o que está a acontecer. E enquanto a cidade exibe janelas fechadas e ruas vazias, espero não ser vista pelo dragão. Acredito que essa perturbação interior e submissa só pode ser captada com a lente especial do movimento das horas, que ainda não foi inventada, apesar de toda a tecnologia patente no meu smartphone. É um relógio que anda ao contrário, em direcção ao passado, aquele tempo familiar em que o mundo todo nos pertencia. Agora, o espírito soterrado comanda a vida numa absoluta concentração.

Um ponto, uma linha de luz, contemplação introspectiva e difusa da estrela longínqua que guardo nas mãos e pretendo devolver ao firmamento: esmola que dá tempo e mais tempo, movendo-se por entre os dedos, caindo sobre a minha cabeça de aflição luminescente. Tu abres os olhos ao brilho: foste visto quando apenas querias ser ouvido. A mão de Deus curvada sobre a humanidade, essa espiral de antagonismos: quantos mortos? O mundo, tal como o conhecíamos, chegou ao fim. Amanhã é um outro dia diferente. Resta-te, pois, esperar, tal como todos nós. Mas, andando sobre o andamento do tempo, pareces estar parado.

Lá fora, os pássaros cantam porque sabem que a primavera já chegou.

Adília César


OS PORTUGUESES


O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só vos faltam as qualidades.

Almada Negreiros

Os Portugueses

Portugal é um pequenino canto da Europa, encantador, crédulo. E também fanfarrão, irresponsável, exasperante. Além do clima ameno e da boa gastronomia, pouco mais há a dizer de positivo, apesar de toda a benevolência compassiva que ainda consigo escavar bem no fundo de mim mesma. Afinal de contas, sou portuguesa e sirvo os outros na minha actividade profissional há mais de 30 anos.

É nas situações de crise, como a conjuntura actual provocada pela pandemia do Covid 19, que me apercebo melhor do estado em que se encontra o meu país. Faz sentido relembrar as palavras do filósofo José Gil (Moçambique, 15 de junho de 1939), considerado pelo semanário francês Nouvel Observateur como um dos "25 grandes pensadores do mundo", que em 2004 publicou o livro "Portugal-Hoje, O Medo de Existir", no qual pretendia realizar uma radiografia ao "carácter português". A maior lição a retirar desta pequena obra prima da filosofia é o conceito da “não-inscrição”, a par da existência de um processo de controlo social sobre a população portuguesa por parte das classes dominantes nos diversos quadrantes da sociedade – político, cultural, artístico – através da apresentação de sucessivos disfarces para a Democracia, uma palavra já tão gasta e incompreendida que se confunde facilmente com demagogia, inércia, corrupção e pessimismo. Esta “democracia” doente tem-se propagado como um vírus e vem consignando este fragilizado Portugal como o país da não-inscrição:




Em Portugal nada acontece, «não há drama, tudo é intriga e trama», escreveu alguém num graffiti ao longo da parede de uma escadaria de Santa Catarina que desce para o elevador da Bica. Nada acontece, quer dizer, nada se inscreve - na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico. Talvez por isso os estudos mais sólidos e com maior tradição em Portugal sejam os que se referem ao passado histórico, numa vontade desesperada de inscrever, de registar para dar consistência ao que tende incessantemente a desvanecer-se (e que, de direito, se inscreveu já, de toda a maneira - mas onde?). Curiosamente, aquele graffiti tentava inscrever a impossibilidade de inscrever...(...) Se, num certo sentido, se disse até há pouco (hoje diz-se menos) que «nada mudou» apesar das liberdades conquistadas, é porque muito se herdou e se mantém das antigas inércias e mentalidades da época da ditadura: desde o medo, que sobrevive com outras formas, à irresponsabilidade que predomina ainda nos comportamentos dos portugueses. (pp.15-17)

Nestas circunstâncias de insegurança, há uma correlação directa de causa-efeito nas acções dos cidadãos. Como se manifesta a intervenção cívica perante uma crise de saúde pública que esbarra com comportamentos irresponsáveis de uma geração jovem sobre a qual os mais velhos depositam a sua esperança num mundo mais justo? No dia em que a Organização Mundial de Saúde declarou o estado de Pandemia de Coronavírus, fazia-se sentir um belo dia de sol em Portugal, e o bom tempo levou muitos jovens estudantes com aulas suspensas às praias da linha de Cascais, indiferentes à situação de pandemia, pondo em risco a sua saúde e a saúde dos outros. Qual o valor da consciência democrática?


Desenho de Matilde B., 4 anos de idade

Na minha actividade profissional, sirvo os outros numa escola. Não estou em pânico com o Covid 19. Os nossos governantes tentam convencer a população portuguesa: dizem ter as melhores intenções e que estão plenamente dotados de competências estratégicas para conseguirem resolver com "serenidade, calma e bom senso" o que aí vem. Pura demagogia, pois não se vê qualquer acção preventiva digna de nota no que diz respeito a um sector público da maior importância: creches, infantários, jardins de infância, estabelecimentos de educação e de ensino. Na minha escola, toda a comunidade educativa está apreensiva com as decisões tomadas pelas pessoas que, supostamente, sabem o que estão a fazer para nos proteger. Sabem mesmo?! A desconfiança instalou-se e veio para ficar. Mas não, não estou em pânico. As crianças que me acompanham dia a dia também não. Temos a linha da Saúde 24 para pedir ajuda e o Plano de Contingência da nossa escola para consultar. Não temos mais nada, mas não estamos em pânico. Temos serenidade, calma e bom senso, como nos pediram. E vamos todos os dias para a escola, até ao dia em que passaremos a fazer parte de uma qualquer estatística.

Adília César

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA