sábado, 26 de agosto de 2023

SEI O QUE FIZESTE NO VERÃO PASSADO

 
“Eu gosto é do verão
de passearmos de prancha na mão
saltarmos e rirmos na praia
de nadar e apanhar um escaldão
e ao fim do dia, bem abraçados
a ver o pôr do sol
patrocinado por uma bebida qualquer.”
 
Eu gosto é do verão, canção do grupo musical A Fúria do Açúcar 

    

Foto de Adília César, Faro

     Sei o que fizeste. Com a devida antecipação, a bruma das férias envolveu-te delicadamente e estacionou em todos os teus poros. Assinalaste os dias no calendário do mês de agosto, pesquisaste ilhas paradisíacas da Ria Formosa e horários de ferrys. Compraste um novo fato de banho, rosa choque, provavelmente influenciada pelo filme da Barbie. Leste com atenção o teste de bronzeadores e protectores solares, realizado pela Deco Proteste; costumas optar pela Escolha Acertada, mas desta vez resolveste subir a parada, em correlação directa com as tuas expectativas de férias, e adquiriste o Melhor do Teste: Piz Buin Tan & Protect Tan Intensifyng Sun Spray 30 SPF – para uma pele perfeita. Entretanto, as férias acabaram. Desta vez esmeraste-te: que comportamento tão original, esse de morar no Algarve e não ir à praia…

     Sei o que fizeste. Emergiste do fundo da fonte, como uma sereia. A tua mítica personagem destoava apenas nas barbas brancas. Quer dizer, barbas brancas numa sereia é um pouco inusitado, mas veem-se coisas piores quando saímos à rua. Ainda ontem vi no Jardim da Alameda um homem muito musculado vestido de saia e blusa de alças, abanando-se freneticamente. Andou de um lado para o outro e depois perguntou para quem o quis ouvir, num tom vocal grave de barítono: “estão a rir de quê?” E foi-se embora de rompante, tal como tinha chegado. Uma espécie de sereia dos jardins, a bem dizer. Sedutora e confiante, tal como eu imaginaria a Musa das Três Fontes Secas, caso ela existisse.

     Sei o que fizeste. O Festival F chamou por ti. Ou melhor dizendo, cantou para ti. Não sabias a que palco havias de te dirigir, mas seguiste a multidão eufórica que subitamente se ramificava e logo de seguida parecia diluir-se noutra massa humana, como uma geografia ondulante própria dos lugares do entretenimento. É uma alegoria repetitiva, como os discos riscados que tocam indefinidamente o mesmo fragmento musical. Os espectadores têm copos na mão e bebem líquidos coloridos que lubrificam veias e artérias. Ficam coloridos por dentro e pálidos por fora. Tu és alérgica ao álcool e bebes Coca Cola, comprada a muito custo depois de uma longa espera em fila, com pessoas coladas umas às outras como as lagartas do pinheiro. Tens sede e bebes três golos em três tempos num modo automático de sucessão rápida, numa tentativa de te adaptares à grande engrenagem de gente alegre e excitada. Sentes-te uma peça da frenética máquina de consumo que alimenta a sociedade do espectáculo. Arrotas. Que falta de educação. Já não tens idade para arrotar em público.      

     Sei o que fizeste. Tomaste uma decisão e passaste da teoria à prática. Há atitudes drásticas que são perfeitamente compreensíveis, porque as aves fazem o que querem. Voam por cima dos muros e vedações do jardim e atravessam a estrada. Pousam nas varandas do prédio. Vocalizam o seu é-ó tão característico a qualquer hora do dia e da noite. Ora essa, as pessoas que moram nas redondezas não gostam de ser incomodadas por aquele ruído animalesco e dissonante. As pessoas preferiam que as aves tivessem um interruptor – switch on switch off – para se ligar e desligar o pupilar dos pavões, permitindo-lhes atividade vocal apenas durante as horas consideradas adequadas. No abrigo, a pavoa quer chocar os seus oito ovos, mas tu destróis sete, deixando-lhe apenas um filho único. Com alguma sorte, crescerá saudável e belo, tal como os seus irmãos e irmãs seriam. Afinal, já há muitos pavões e pavoas no jardim, a incomodar as pessoas nas suas residências pagas mês após mês, a tanto custo, com taxas de juro inacreditáveis. Não é admissível que essas pessoas sejam incomodadas pelas magníficas aves que habitam aquele lugar desde o século passado. Aquele chão, aquelas árvores mais antigas que qualquer um de nós: esse “absoluto que pertence à terra” (diz Hermann Broch). A pavoa olha o que fizeste, incrédula e serena, sabendo que tem uma tarefa a cumprir: chocar o ovo do seu filhote. O pavão, nada subtil, solta um é-ó bem sonoro, como de costume, e voa para longe. O tratador apanha uma mão cheia de penas que os pavões deixam cair pelo chão e oferece-as ao turista que se aproximou da porta do abrigo, trocando-as por algumas moedas. Ao fim do dia conseguiste ir até à praia e deste um mergulho no mar que é da cor das penas dos pavões que nunca iriam nascer. Sentiste a tristeza da concha vazia que se afunda para sempre. Mudam-se os tempos, ou melhor dizendo, as penas, e não se mudam as vontades. Os tempos… esses são de miséria humana. Ah Camões, se tu visses com o teu olho o que eu tenho visto com os meus dois olhos...

     É verão. Acontecem estes e outros deslizamentos de terras, incêndios, inundações, guerras. É verão e os fantasmas dos verões anteriores chamam por ti, enquanto secam as três fontes do jardim e morrem os pavões. Há areia a corromper a engrenagem humana. Tudo muda, menos a tua sonolência veranil. É quase noite, mas ainda será uma noite de verão: é-ó, a terra arde, é melhor chamar os Bombeiros.


Adília Cesar, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_401

sábado, 19 de agosto de 2023

- QUER MANDAR BEIJINHOS PARA ALGUÉM, MINHA QUERIDA?

“Olarilólé Olarilólei
Bailar assim sabe tão bem
Olarilólé Olarilólei
Beijar-te assim sabe tão bem”
 
(Canção “Preço Certo”, 2023, de Pedro Mafama)

 

Praia dos Beijinhos, Armação de Pera, Lagoa, Algarve

     Quem, eu? Não, muito obrigada, não quero mandar beijinhos para ninguém. Atenção, não há aqui qualquer azedume. Apenas calor e tédio, o que já não é pouco, e me obriga a uma luta diária só para me levantar da cama. E também para me deitar. Beijinhos, não. O tempo quente interpõe-se entre mim e o mundo repleto de gente, de coisas, de emoções que não me deixam descansar. É avassalador, assim como uma avalanche de manteiga derretida. Tudo derrete: as pessoas, as coisas, as emoções, como lava entre ruínas de cidades outrora imponentes. O verão é uma guerra muito mais destrutiva do que os ventos atrevidos do inverno. São as coisas que se abandonam ao tempo ou é o tempo que abandona as coisas? Entrego-me a esta fraqueza derretida. Deslaço-me em dúvidas existenciais.

      Contudo, escrever crónicas refresca-me. Escrevo-as devagar, uma a seguir à outra, todos os dias, como uma laboriosa funcionária da escrita. Um continuum do interior para o exterior que, num irónico vice-versa volta para dentro e novamente ressalta para fora. Escrever ficção é um acto de ironia, se tomarmos a realidade como ponto de referência, não confundindo a minha realidade (conceito) com a minha verdade (percepção). Afirmo o que não teve lugar, corroboro o que não aconteceu, porque quero e posso fazê-lo. E, todavia, estou plenamente convencida que essas palavras são a minha verdade. Devagar se vai ao longe na mentira. Pouco a pouco, as malhas da ilusão vão moldando a minha vida. Qual é a vantagem? Escrever para quê, para quem? A mão escreve para a outra mão. A mão escreve para os olhos que conduzem a escrita. É um ensimesmamento, uma espiral viciosa. E é por essa razão que não consigo parar de escrever. Parece a pequena doidice que surge a seguir à ingestão de um jarro de sangria. Se não fosse alérgica ao álcool, escolheria essa espécie de alienação criativa para escrever as minhas impressões do quotidiano e aguentar as férias de verão. A loucura não é uma doença, mas sim uma vivacidade de espírito que precisa ser preservada e, de preferência, sem prestar atenção à opinião dos outros: uma arte “bruta”, digamos assim. Se é formidável ou apenas estranho, nem tu nem eu seremos os seus juízes, mas sim o tempo o tempo o tempo.

    Atenção, há mais mundos. Temos, por exemplo, o programa televisivo de Fernando Mendes – “O Preço Certo”. Aquilo é um mundo que nada tem de real ou verdadeiro, a não ser o preço certo dos artigos exibidos no concurso (mas tem que se contar com a inflação, a qual pode alienar a aposta dos concorrentes). Ganhar ou perder serve, literalmente, para matar o tempo e não tenho o hábito de concorrer. No entanto, através das relações digitais que estabeleci na pesquisa da origem de uma divertida canção que tenho ouvido nas estações de rádio, encontrei o que precisava para escrever esta crónica.

    “– Quer mandar beijinhos para alguém, minha querida?”, insiste o Fernando Mendes. Está bem, pronto. Quero mandar beijinhos “p’ra todos os que já não voltam mais e todos os que ainda estão para vir”. Está bem assim, ó Fernando? Vamos falar verdade a mentir, porque é verão, porque vale (quase) tudo, e “olarilólé olarilólei, beijar-te assim sabe tão bem!” E pronto, quem tem um “Fernando” para beijar, tem tudo para que o seu verão dê certo.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_400

Nota da autora: os excertos da canção “Preço Certo” de Pedro Mafama foram colocados entre aspas e os dois “Fernandos” citados são duas pessoas diferentes. 

sábado, 12 de agosto de 2023

A SEGUIR À PRIMAVERA VEM O VERÃO

"S’il n'était pas mort il ferait envie",

(Se ele não estivesse morto, faria inveja)

 

In “La Mort de La Palisse”*,

canção militar em honra do Marechal de La Palisse



     A seguir à primavera vem o verão. Bem sei, dito assim desta maneira óbvia, é uma afirmação sem interesse, assemelhando-se a uma das ditas verdades de la palisse, tão abundantes nos discursos tanto das pessoas simples como das complexas. Ah, meu caro Jacques de La Palisse, meu corajoso Marechal de França que morreste na Batalha de Pavia!... Em honra das tuas conquistas e subsequente popularidade cantaram-se glórias dignas de memória! E tantas vezes se cantaram as afamadas cantigas que estas sofreram subtis transformações, sendo a mais célebre a seguinte, por ter dado um novo e definitivo sentido ao teu nome:

"s'il n'était pas mort il (ƒerait – serait) en vie"

(se ele não estivesse morto faria/estaria vivo)

      Com a sua existência e morte aprendemos que é lícito enunciarmos evidências e truísmos que toda a gente compreende. Existe, portanto, um mundo antes de La Palisse e outro, completamente diferente, depois de La Palisse: eis 1525 – o ano zero da argumentação, por assim dizer. Então, vamos a isto, às lapalissadas da vida contemporânea!

     É importante repetir que esta estação do ano a que demos o nome próprio de Verão surge todos os anos a seguir à primavera, para me convencer da efervescência que me aguarda, sem piedade nem salvação. É um inferno mascarado de paraíso e Socorro é o seu nome do meio (para conhecerem o apelido desta entidade de calendário terão de ler a minha crónica até ao fim). Na verdade, podia limitar-me a usufruir do descanso, vestir roupa leve, beber água fresca, sair apenas à noite depois do sol desaparecer, ler livros atrás de livros, ver televisão, e dormir, dormir muito para não sentir o calor a dobrar o ar. Podia tentar queimar a época veranil com atividades mais ou menos inócuas, mas isso não seria viver a vida, sabendo também que o tempo que passa não volta mais (olha, que giro, começaram as lapalissadas). O que posso então fazer para justificar a minha existência face à recorrência desta estação do ano da qual não posso fugir?

     Para mim, o verão está ligado a morte: por exemplo, as pessoas morrem afogadas ou em acidentes de viação com mais frequência do que noutras épocas do ano; as barragens baixam assustadoramente o seu nível de água; a erva, outrora verde e apetecível transforma-se em pasto seco, com serventia apenas para alimentar os incêndios; ai, que medo, os incêndios, incêndios a arder por todo o lado, que horror. Resta o mar: o mar azul que reflecte o azul do céu, o céu azul que reflecte o azul do mar. Bolas, mais outra redundância.

     Tenho que ter cuidado. Não tarda, estou a cair num buraco linguístico perigoso com um nome de peste contagiosa: a tautologia. Parece que tudo o que afirmo é uma falácia, nada acrescentando ao que já foi dito antes. A minha argumentação não apresenta saídas à sua própria lógica interna. Em favor da minha débil capacidade de raciocínio, tenho a dizer em minha defesa que a culpa é do verão! Tenho que ter cuidado, tudo o que está a mais sobra. Bolas, mais outra lapalissada!  

     Este texto adoeceu, está contaminado pelos pleonasmos do quotidiano. Estou muito preocupada. Subo para cima e desço para baixo as escadas da minha casa, sem parar; encontro uma porta que não conhecia e entro para dentro; assusto-me com o escuro da minha mente e saio para fora à procura de um consenso geral, de uma regra concreta para me tornar a protagonista principal antes do amanhecer do dia. Mas só me acontece a lembrança de um passado, apenas um único embora dividido em duas metades iguais, cheias de detalhes minuciosos que procuro encarar de frente para retornar de novo àquela expectativa futura, e repetir outra vez a retrospectiva passada, para poder planear antecipadamente a última versão definitiva da minha argumentação sobre este verão que veio a seguir à primavera. Pelo caminho, abro um parêntesis, pois descobri o nome completo desta malfadada estação do ano: Verão Socorro de La Palisse. É um bom pseudónimo de escritor, não vos parece?

     Para não perder o fio à meada, registo o óbvio: tudo o que escrevi nestas páginas está carregado de lapalissadas, tautologias, redundâncias, pleonasmos. Funcionam assim como os batuques aleatórios no tambor: pum, catrapum, pum. Uma chatice. É difícil falar ou escrever sem estas figuras de retórica. Como decerto sabemos, o pleonasmo é uma doença linguística e, deste modo, o melhor seria apagar tudo, mas… “o que escrevi, escrevi” (a frase entre aspas está atribuída a Pôncio Pilatos, mas a expressão veio mesmo a calhar e não resisti a usá-la). E agora, o que resta? Tenho uma ideia. Para salvar esta crónica vou deixar-vos alguns pleonasmos literários, inteligentes, ditos por criadores de qualidade artística indiscutível. Atenção, não são vícios de linguagem, mas sim pleonasmos literários:

     “O cadáver de um defunto morto que já faleceu” (Roberto Gómez Bolaños);

     “E rir meu riso” (Vinicius de Moraes).

     É isso mesmo, Vinicius, deixemos de lado a tenebrosidade da morte, por enquanto, e aproveitemos o verão para pôr o riso em dia. Rir o meu riso, rir de mim própria – gosto disso.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_399

Nota da autora: as expressões consideradas como lapalissadas, redundâncias e pleonasmos foram deliberadamente escritas em itálico, uma vez que não tenho tambor para batucar.

*Canção “La Mort de La Palisse” (séc. XVIII)

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

ASSIMPTOTICAMENTE

 

De um exílio não se regressa, ele é a nossa terra exausta, a

nossa palavra exausta, a nossa escrita exausta.

:

Um homem pobre nunca será um exilado:

encontrará em todos os caminhos

a devastação da sua intimidade.

 

Rui Nunes


Pormenor do Jardim da Alameda (Faro) por Adília César
 

     Vejamos. Para muita gente, as inevitáveis férias chegaram (o mês de agosto devia escrever-se sempre com maiúscula, tal é a enormidade da linha assimptota que o caracteriza). Inspiro profundamente até ao fundo do mar. Volto atrás e leio o que acabei de escrever. Depois daquela estranha afirmação entre parêntesis não me apetece dizer mais nada. Ultimamente, os parêntesis ganharam novos contornos na minha vida, com nuances caóticas e efervescentes, nem sempre por causa do calor. O planeta Terra entrou em fase de ebulição e o meu espírito está em perfeita sintonia magmática, com pensamentos secos e esfarelados que, depois do fogo, vão encobrindo algumas dúvidas existenciais relacionadas com as alterações climáticas, a inteligência artificial, enfim, a espuma de uma vida tão difícil de dissipar para tantas pessoas.

     Vejamos. Proponho-me escrever uma crónica (ou, na pior das hipóteses, uma não-crónica). Contudo, sei que um texto dessa natureza – uma espécie de história contada de modo linear – deve conter um número mínimo de palavras (sei lá, por exemplo, 700) e, assim, farei um esforço para deixar registado algo interessante sobre a silly season (desculpem-me o estrangeirismo, mas a tradução não funciona bem, tendo em conta as minhas intenções narrativas).

     Vejamos. Estive a ler… Bem, na verdade creio que não vos interessa o que eu estive a ler. Nem sequer onde eu irei passar as minhas férias. E muito menos interessará o que é que eu penso sobre o verão. Mas as 700 palavras ainda estão longe e…

     Vejamos. Recomecemos. Estive a ler o último livro do escritor Rui Nunes, um autor que sigo há muito tempo. O homem escreve de uma forma demolidora, em completa ruptura com as tradições narrativas a que vou tendo acesso como leitora. Fascinante. A editora que publicou a maioria dos seus livros – a Relógio D’Água – classifica-os na categoria Poesia. Certo. “Neve, Cão e Lava” e as respectivas aproximações assimptóticas, segundo o autor. Talvez poesia, sim.

     Vejamos. Nesta crónica, definir se a obra de Rui Nunes se encaixa numa categoria poética não é relevante, pois não pretendo traçar um perfil do escritor em causa. Da epígrafe que seleccionei, ressalta quase tudo o que me apraz dizer sobre o meu tema de eleição – o verão. Estou de férias, mas não aprecio partilhar territórios veranis com os outros. Sou uma espécie de exilada no meu próprio país, porque se me atrevo a sair encontrarei, decerto, “em todos os caminhos, a devastação da sua [minha] intimidade”. Deste modo, faço uma aproximação assimptota aos paraísos comuns daquilo que se convenciona como sendo férias e refugiu-me nos meus paraísos interiores: eu, tu, os pássaros que cantam junto à janela, a frescura do jardim que ambos frequentamos diariamente, os livros e as percepções decorrentes de todos os acontecimentos que parecem não se relacionar com o que acontece aos outros. A terra exausta, a palavra exausta, a escrita exausta. Ou quase.

     Vejamos. Ainda agora o tempo da expectativa paradisíaca começou e já me sinto exausta… assimptoticamente, aproximo-me das 700 palavras, mas…. o dicionário Priberam vem em meu auxílio e vejo claramente “a linha recta que se dispõe em relação à ramificação infinita de uma curva, de modo a que a distância de um ponto da curva a esta recta tende para zero quando o ponto se afasta indefinidamente sobre a curva.”

     Vejamos. É verão e o tempo ferve, o tempo não pára de ferver. Derreteu a neve metafórica, definitivamente. Fez desaparecer a frescura da manhã. Parece que o tempo tem pressa de viver, como os turistas. Assim é o verão para mim: uma onda complexa, que não cabe, que não coincide, que não se toca. Assimptota. Um calendário desfeito pelo calor da lava que não se vê, mas que sabemos que está ali, a explodir durante o mês de agosto. O cão é grande e negro, olha-nos confiante e deita-se na relva, a nossos pés. O tempo parece ameno, aproximando-se em câmara lenta.

     Vejamos. Será tudo isto apenas um sonho? Respiro pesadamente e decido acordar do torpor quente da noite. Sorrio, confiante como aquele cão que ainda está deitado sobre a relva, mas que eu já não consigo alcançar na tela do horizonte. Afinal, é dos sonhos arriscados que reza a história dos audazes. Na mesa de cabeceira, o livro do Rui Nunes é o que é: um lugar onde o já e o ainda quase coincidem.

     Finalmente, já atingi as 700 palavras! Pois então, basta de intenções literárias por hoje. Amanhã ainda será agosto, assimptoticamente falando. Sinto-me febril, tenho que me tratar. Escrever é uma doença.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_398

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA