sábado, 28 de maio de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [40] por Adília César

Tudo se apagou. E descontentes com o tempo presente, as inteligências mergulham na erudição e no pó da arqueologia!

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Leopardo-das-neves

*

GOSTO DE SABER

que aquela fera me pertence. Tenho-a no quintal, guardada por uma cerca electrificada. É um bichinho belo e sedutor. Adoro tê-lo ao colo e fazer-lhe festas, quando chega a noite. Sabias que aquela cor nunca teve nome? O leopardo-das-neves é o animal mais esquivo do mundo. Solitário, misterioso, inteligente. A podestade personificada numa única criatura. Ele passa a vida inteira sozinho. Neste planeta, não conheço outro objecto de desejo que seja mais afastado da banalidade, como se toda a existência viva se resumisse ao leopardo-das-neves, porque nada mais parece fazer sentido.

 

*

A BANALIDADE

é quase imperdoável. As pessoas banais a fazerem coisas banais, como porem a roupa a lavar ou fritarem pataniscas. Prometi a mim mesma nunca mais fazer essas coisas corriqueiras. Nunca mais viver como as pessoas banais. Por isso, estou grata por existir neste século XXII, onde todas essas tarefas são executadas por elementos com inteligência artificial. Humanóides de aço, plástico e chips electrónicos. E tu, meu homem de carne e sangue, vais ser polido. Não és perfeito como o leopardo-das-neves, mas trouxe-te comigo porque pertences a uma espécie em vias de extinção e aprecio a tua personalidade indefinida. As tuas mãos quentes. Vestirás um fato auto-ajustável que te protegerá do frio, do calor, da sujidade. Alimentar-te-ás de água vital e nutriente. Dormirás em modo de levitação. E estarás à minha espera, todas as noites, ansioso. Um humano pouco inteligente perdido num mundo de robôs. É assim que eu quero que seja a nossa relação, mais equilibrada e menos conflituosa do que as que existiram noutros tempos. Um último aviso: não te aproximes do leopardo-das-neves e tem cuidado com a cerca electrificada.

 

*

IMAGINO

vezes sem fim este monólogo perturbador como uma visão ficcionada do futuro, algo insólita e preocupante. A noite não me deixa dormir. O silêncio da cidade é enganador. Parecem dizer-me que está tudo bem, dão a entender que a maioria dos chips estão em modo de suspensão, insistem na possibilidade de as consciências estarem dormentes, mas há uma sombra avassaladora que cobre o meu corpo de inquietações quotidianas, enquanto o espírito deambula num sonho desconhecido, sem saber onde pousar. A noite e o silêncio podem ser visões do inferno: a prisão, a guerra, o campo de refugiados: a fome, a doença: o que desiste, o que combate, o que resiste: o que morre antes do tempo de morrer. Mas estaremos assim tão longe de uma realidade em que o desenvolvimento da tecnologia, a par da destruição da natureza, nos imporá novas formas de sermos humanos e de vivermos as nossas vidas? Ou aquele binómio de forças vai afastar-nos da equação que traduz a sobrevivência da espécie humana?

 

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SOMOS INDIVÍDUOS

predadores em relação a todas as outras criaturas vivas. Lutamos pela terra, pela água, pela comida, pelos valores em que acreditamos. Lutamos uns com os outros. Somos feitos de sonhos, queremos sempre ir mais rápido, mais longe. Possuir mais coisas (e pedir empréstimos aos bancos para as adquirir…): equipamentos mais eficientes e gagdets com mais funcionalidades, comida rápida, medicamentos para curar todas as doenças, objectos essencialmente inúteis para usar e deitar fora. Não olhamos a meios para atingirmos os fins – corrupção e desigualdade social em larga escala. Os nossos dias são feitos de pressupostos de carência material, mas perante uma guerra, por exemplo, sabemos exactamente o que é importante: a vida, a família, a saúde, o amor, a liberdade, a esperança. O lar.

 

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FAST LIFE, FAST TIME.

Mais mais mais. Ganhar tempo no dia-a-dia, viver mais tempo. Para quê? Para sermos mais ou menos humanos? O que significa hoje “ser” humano? E o que significará, no século XXII, “ser” humano? Chegará a humanidade ao século XXII? Como lidaremos com a inteligência artificial que aprenderá, forçosamente, a interagir connosco de forma a conquistar o nosso território geográfico, a nossa propriedade intelectual e ética, uma vez que vai observar-nos e vai apreender as nossas características predadoras? E, acima de tudo, que será imune a vírus, bactérias, doenças agudas e incuráveis. A inteligência artificial rir-se-á das epidemias que nos matam. Será pacífica essa nova ordem social, quando a eficácia face à sobrevivência das espécies não parece estar do nosso lado? Teremos nós, humanos, a imperiosa capacidade de adaptação e o tempo necessário para acompanhar os vertiginosos processos de evolução tecnológica, a par do nosso desenvolvimento espiritual e moral? Seremos capazes de decidir qual o lado certo do conflito? Ou corremos o risco de nos transformarmos num gadget fora de moda? Creio que a essência da nossa humanidade vai perder-se no caminho do futuro. A vida, a luz corre à nossa frente e nós vamos ficando para trás, no escuro. Adeus.

 

*

 

O TEU RUGIDO

desperta-me da letargia em que me encontro há tanto tempo. Tu, meu leopardo-das-neves, és a medida certa do desequilíbrio planetário: belo, feroz, digno, vivo. O teu rugido impõe-se como uma verdade inquestionável. E eu tento aprender o teu idioma de vitória para te poder falar de amor e devoção.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_340

sábado, 21 de maio de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [39] por Adília César

A arte é tudo porque só ela tem a duração – e tudo o resto é nada! As sociedades, os impérios são varridos da Terra, com os seus costumes, as suas glórias, as suas riquezas: e se não passam de memória fugidia dos homens, se ainda para eles se voltam impiedosamente as curiosidades, é porque deles ficou algum vestígio de arte, a coluna tombada de um palácio, ou quatro versos de um pergaminho.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"The City" - Lori Nix

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EM REDOR

de um globo terrestre os objectos estão dispostos de acordo com a sua importância. Percebe-se a hierarquia estabelecida, através da forma como esses diferentes objectos se mostram e se escondem, nas posições ocupadas no espaço disponível. Há livros, muitos livros encostados uns aos outros, apoiando-se mutuamente, à espera de qualquer coisa que tarda em chegar. Alguns quadros esboçam auto-retratos de personagens diluídas na memória humana. As janelas, muito altas, parecem rostos sem boca. Nada têm para dizer quando tudo já foi dito. Árvores ainda vivas rompem o chão daquele santuário e procuram a luz elevada na ruína do tecto aberto. O tecto, enquanto metáfora perfeita de fuga, rende-se, contudo, à melancolia do abandono.

 

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UM SUSSURRO

de vento insiste, infiltra-se em todas as fissuras. O pó assume uma espécie de protagonismo, teimando em manter as outras personagens invisíveis: é o teatro do apocalipse. Da primeira vez do medo, o vento parece ligeiramente significante ao errar o grito. Eco apenas levemente ecoado. Apenas um sussurro. Eis o rumor do fim. Depois, o pavor nidifica, torna-se menos misterioso e mais aceitável; vai pousando um pouco por toda a parte até que, finalmente, os objectos se habituam à sua presença.

 

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A PUREZA

do regresso às origens, antes das palavras. A pureza da semiobscuridade. A pureza da luz depois das palavras. A pureza pode ser uma ideia perigosa. Todas as cadeiras tombam, menos uma. Os olhos movem-se, obstinados, enfrentando a única cadeira que não acompanha o desalento das outras.

 

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A CADEIRA

guarda o lugar do último actor em cena. Está porventura cansado, pois permaneceu em palco, de pé, desde o primeiro minuto do fim. O seu papel era o de se inclinar ao Poema inscrito no pergaminho da memória. Aproxima-se uma nova era e é preciso invocar qualquer coisa genuína. Agora, o último actor perdeu-se naquele quase-espaço, parou naquele quase-tempo. Isso mesmo, és quase o que se espera que sejas, quase. Mas ainda não.

 

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 UMA LINHA INTERDIDA

abre o espaço ao tempo. Não sendo uma fronteira, ganha poder o trilho adormecido da sabedoria, ampliando-se até à sombra rotativa. Estou decididamente presa num fatídico lugar, não consigo excluir-me da dimensão avassaladora da ruína. E penso: o conceito de ruína assemelha-se a um relógio avariado por ser passado, presente e futuro no mesmo mecanismo. E decido que já não há tempo para esperar por ti.

 

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E, TODAVIA,

eu espero. O mundo, enquanto entidade humana, mumifica as ideias alheias nos livros e enterra-as nos sarcófagos do espírito distraído, iletrado. Não basta escrever, é preciso que o que foi escrito seja lido e, assim, a ideia poderia ser ave do paraíso, poderia ser o futuro da humanidade. Mas não há tempo para pregões, não há tempo para esperar por nós. O teu universo e o meu universo nunca serão o universo dos outros. Tu e eu somos, por enquanto, invisíveis, somos livros escritos com sumo de limão. Mas ainda acreditamos que só a emoção da arte será capaz de arrancar os olhos cegos do rosto da humanidade, para que ela possa ver nascer um novo rosto que não pertença a este mundo. O globo terrestre gira sobre si próprio, porque sabe que não tem outro lugar para onde possa ir.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_339

 

sábado, 14 de maio de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [38] por Adília César


Depois o autor ia levando o leitor pela mão através da sua obra como através de um jardim que se mostra, repercorrendo com gosto as áleas mais enfeitadas de erudição, parando por vezes a conversar docemente à sombra de um pensamento frondoso. Assim se formava entre ambos uma enternecida intimidade espiritual. O leitor possuía no homem de letras um companheiro de solidão, de um encanto sempre renovado. O autor encontrava no leitor uma atenção demorada, fiel, crente: como filósofo tinha nele um discípulo, como poeta um confidente.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)


Arte de Isabel Afonso*

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LER UMA OBRA LITERÁRIA

não é o mesmo que apreciar um jardim. Uma flor não é um poema. E o escritor não é, necessariamente, um deus que adoramos, nem sequer tem de ser uma pessoa de inequívocas qualidades amigáveis ou sedutoras. A obra pode ser fascinante, mas o seu autor corre o risco de ser apenas pouco atractivo ou até boçal. Assim aconteceu uma, duas, três, muitas vezes, até que fraquejei na demanda. Decidi então que não era necessário conhecer o autor, mas sim ler e apreciar a sua obra. Vejamos.

 

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ENTRETANTO,

num determinado encontro literário, afirmei que após a boa leitura de um livro gostava de conhecer o seu autor pessoalmente, porque a conversa presencial abria a minha visão à leitura que tinha feito da obra. Contudo, esse testemunho público teve um efeito perverso, acabando por me erradicar do cenário literário, por força de alguns desentendimentos. Arrancou-me à esfera do protagonismo festivaleiro e recentrou-me numa espécie de casulo que é a minha linha de escrita e de leitura: uma “forma redonda de ser”[i] criadora de modo imersivo, emocional, racional. Em suma, uma maneira de ser alguém que pretende perceber e dizer alguma coisa arrancada ao “ser-de-dentro”: gosto de lhe chamar “peso da memória que carrego”; noutros dias, dou-lhe o nome de “sonho desmedido” ou ainda “mecanismo imperfeito”. Ideias arrancadas a ferros, digo.

 

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MAS ACONTECEU

o melhor de dois mundos: conheci intimamente um escritor do qual admirava a obra e o amor ficou a morar connosco numa “forma redonda de ser” – isto foi ele que me disse. Ler a obra e ler o homem que a escreveu tornou-se assim a missão da mulher que vivia num casulo e o ampliou até ao tamanho do mundo, tal é o poder da obra dele, tal é o poder dele. O dia e a noite. O tempo todo.

 

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E QUEM SOU EU

quando escrevo e leio? Serei a mesma pessoa? A espiral da viagem deixa-me perfeitamente lúcida quanto às ideias que quero descobrir e que pretendo revelar. As ideias que leio e as ideias que escrevo não são as mesmas. É um caos organizado, implícito nas memórias do passado e nos desejos do futuro que pertencem a duas pessoas diferentes: o escritor e o leitor. Ou serão a mesma pessoa ao espelho?

 

*

 

APERCEBO-ME

que o espelho é uma metáfora viável para o meu dilema, talvez a que melhor corresponde, nesta hora de recolhimento, à implícita solução. De um ponto de vista poético, do céu tombam pássaros, lâmpadas e outras partículas sentimentais. Ele, o escritor, ofereceu-me um espelho novo onde a minha cabeça parece a mesma em todas as figuras: bela como um seixo nas águas pequenas, forte como uma trança que cresceu ao longo de um século. Eu continuo a olhar-me no espelho. Mas realçar o ovalado dos rostos é apenas intenção de pureza, essa presença organizadora da espiral meditativa. É cascata de sangue a regar o jardim jubilado – esse abismo comovido de flor em flor. A vida a acontecer num espelho que se partiu é idade cega e arrumada nos olhos da noite. Ler, escrever, conhecer, amar. Apercebo-me, afinal, que uma flor pode ser um poema. E na hora tardia que me embala, antevejo o meu protagonismo no dilema ecoado até ao infinito. Ainda não é uma voz, mas talvez já seja um murmúrio de sombra e asa, ornamento, convergência. No espelho, sou eu. 



[i] Verso de Fernando Esteves Pinto


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_338

* Trabalho de Isabel Afonso exposto na Galeria Mira (Porto) e depois escolhido para o jornal Le Monde Diplomatique (versão Portuguesa)

terça-feira, 10 de maio de 2022

Poema


Laura Makabresku


Escrever um poema não é bordar uma toalha de mesa e dar um título à tua tragédia apenas evidenciará o óbvio.
A verdade:
ninguém quer saber do escuro ou dos esqueletos que dançam nos cantos da casa. O melhor será varrer os despojos para debaixo do tapete: alfinetes, vozes de crianças, flores de compaixão que sabem a chamas. Ninguém os verá, mas tu sabes que os fantasmas estão ali, cobertos por fatiotas de ironia. E no apogeu da festa, tocar pequenos clarins de dor para anotar na consciência uma doce tristeza na medida justa.
Amanhã é um outro dia que não vai chegar.
É preciso preservar o manuscrito ainda inédito.


Adília César
in "Nocturna", Edições HÚMUS, colecção 12catorzebold (nº 34, abril de 2022)


Para saber mais:




NOCTURNA de Adília César

 

Edições HÚMUS, colecção 12catorzebold 34

Livro NOCTURNA, Edições HÚMUS, 2022

 Livro de poesia NOCTURNA - 60 poemas

Edições HÚMUS, colecção 12catorzebold 34

Para saber mais:

https://bit.ly/3kslMMq

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA