sábado, 27 de julho de 2019

UMA VIDA SOBRE RODAS - ORLANDO RIBEIRO CÉSAR (1933 - 2006)


Resta essa imobilidade, essa economia de gestos,
essa inércia cada vez maior diante do infinito.

Vinicius de Moraes

Escultura oferecida por "Vitor" (Serpa)

Não posso limitar a minha existência a este pano de fundo do minimamente aceitável, dizias. Então, eu deixava-te cair naquele estado negativo de lamento, apesar do amor que recebias e que já não conseguias retribuir. Não havia qualquer dúvida sobre a tua condição, foste vítima de uma qualquer circunstância do destino, completamente alheia à tua vontade ou acção intencional, logo, não te podia ser atribuída. Há uma relação de causa-efeito que não me pertence e que não mereço, dizias. Sim, a paraplegia não é uma doença, mas é uma tortura.

Todos os dias nasce e morre alguém. Assim, a finitude da vida está intimamente ligada à sua própria eternidade, ao longo de uma espiral de acontecimentos em sequência, na linha do tempo. As relações activas e passivas de causa e efeito são, muitas vezes, inexplicáveis, intraduzíveis, inexprimíveis. Como explicar o teu acidente naquele dia? Como traduzir em novos hábitos a vida que te era agora possível viver? Como exprimir as emoções contraditórias em relação ao teu estado de paraplegia física a propagar-se na tua mente?

Tinhas 55 anos num belo domingo de inverno e não viste o muro a aproximar-se a uma velocidade vertiginosa. Era o infinito a chamar por ti e as rodas da tua Honda Gold Wing obedeceram cegamente, decerto contra a tua vontade. No momento do desastre, a tua linguagem transformou-se na replicação de um discurso deprimente e cansativo: a queda, a sexta vértebra seccionada, o corpo literalmente morto abaixo do ponto molestado. E os teus olhos tristes, vazios, eram duas rodas em permanente estado de rodagem doentia sobre os seus eixos.

Tantos amigos: vieram todos visitar-te. E todos eles te provocavam a mesma sensação de fracasso, a condenação à inércia e à economia de movimentos. Recordavam o tempo em que eras atleta de ciclismo de alta competição – as rodas sempre a rodar – e tu baixavas a cabeça. Relembravam o teu papel determinante na criação do Motoclube de Faro – as rodas sempre a rodar – e tu sorrias melancolicamente. Insistiam no tempo em que orgulhosamente conduzias a tua Honda Gold Wing, nada mais nada menos do que asas douradas para cumprir o propósito da tua vida sobre rodas – as rodas sempre a rodar – até que deixaram de aparecer.

O teu infortúnio foi o céu daquele belo domingo de inverno a desabar sobre os bichos que ficaram a morar na tua cabeça, a corroerem-te tudo por dentro, acima e abaixo do ponto da sexta vértebra seccionada. Tudo o que tu eras antes. E depois, limitámos a nossa existência a esse pano de fundo do minimamente aceitável: alimentar-te, lavar-te, vestir-te; ainda sobre rodas, as rodas da cadeira onde te sentávamos. O amor não o querias, já não o querias.


Desfile da 38ª Concentração de Motos (Faro)

Noutro belo domingo tão longe do teu – 21 de julho de 2019, dia do Desfile da 38ª Concentração Internacional de Motos do Motoclube de Faro – foi o tempo de ver, admirar e comover-me. Sei agora que estás em paz, porque todos os que vi a desfilar continuam a cumprir o propósito da tua vida e das suas próprias vidas sobre rodas, essas asas douradas do orgulho de ser motard. Nada mais nada menos, meu querido Pai.

Adília César

quinta-feira, 25 de julho de 2019

À FLOR DA PELE

Princípio de linha XI

Auto-retrato de Adília César

A partir de uma certa idade, as alegrias são outras, serenas mas poderosas, recolhidas à interioridade e à flor da pele, que são, afinal, feitas com a mesma matéria expressiva, são o meu jardim metafórico: o amor da minha vida, a família apaziguada, as amizades selectivas, os serenos arrebatamentos provocados pelas luzes do poema, da pintura, da melodia, do acontecimento incomum. A morte chegar a galope ou a passos miudinhos é assunto de somenos importância. Na verdade, agora que estou tão distanciada do dia do meu nascimento, a filosofia consoladora que aprendi a professar no meu quotidiano é bem simples: eu ainda estou aqui, neste lugar que ocupo por direito, em plena liberdade de pensamento e de criação. Este lugar onde mora o meu jardim à flor da pele.

Adília César

ONLY LET DOWN THE VEIL, THE VEIL, THE VEIL

Uma coisa sentada por baixo da mesa, sem se alongar no gesto do dia. Fica assim em estátua, cai e não se levanta, sob o tampo de mármore. Dizes ser uma harmonia a cantar-me o tempo que agora parou, em teu redor, em meu redor, pontos finais como filhos de grãos de onde nascem as flores do sopro; irradiando para as margens lascadas da folha de papel. Pequenas sementes eclodidas pelas sucessivas leituras das pupilas, onde as pálpebras tombadas inventam a fala muda de não se falar de coisa alguma, nada. O silêncio com a palavra por baixo chora na tristeza de um vento por todos os lados; para cima fogem os olhos, mas não vêem. Há outros filhos de leite que também não têm companhia; outros hermafroditas. Dir-se-ia algo já fúnebre de tanta quietude. Dizes que eu sou a tua amada Sylvia.

Auto-retrato de Adília César

Isto de fazer poesia carece de fundamentos abonatórios e realistas, obedece a palavras escritas com erros, como sulidão; submete-se às alucinações quebradas nas letras, deusas de uma simplicidade indescritível e inexplicável; debaixo da mesa é o seu altar, onde as disponho sobre espaços em branco do meu corpo, enquanto tento perder de vista a porta aberta do forno, esse olho magnânimo e assombroso. Paira o tempo sobre um trono antigo de fazer-me velha e cansada, um episódio francamente incomodativo de só. E se eu dançasse por estas voltas que fazem como se tudo me fosse um apenas erro ao longe, que me olha de longe, um apenas erro quase a tombar no acidente quando imagino a cabeça aberta pela música, sopros de erros na voz, palavras imaginadas, animais a galope que me fogem da garganta, letras em atropelo; a coisa sentada debaixo da mesa, surda e muda. Enquanto tu não chegas. E agora é a mesa que dança, a sulidão é um erro, a sulidão está tão cansada como a palavra que faz o gesto do seu nome, um sino pesado a querer levantar-se. O tempo a querer-se de uma cor de luz ilustre, clara, alva, tão linearmente límpida como a transparência química de uma lágrima, a imagem melancólica de um pássaro caído do ninho a fazer companhia a outro pássaro caído do bando. Enquanto os nossos filhos dormem e sonham; talvez mortos e também vivos. Mas a poesia não é uma questão de asas.

Abro o coração, são agora dois, jorra o sangue debaixo do tampo de mármore, como raízes de uma flor acesa. É mais difícil dançar assim sobre o visco vermelho que não é uma cor, parece uma fábula imperdoável, um outro sonho que só havia de vir quando eu já fosse muito velha, a boiar no rio do tempo, sem me alongar no gesto da noite.

Mas esse sangue fala e constrói, empilha as palavras e as coisas, inventa uma noção poética fluida e carregada de sinais que ainda não é poesia. A consciência de tudo, a atmosfera metafórica, o trabalho lexical, a performance semântica, o forno tão aberto e convidativo. A cabeça deitada dentro do testamento.

Apesar da pronúncia correcta nos sons oferecidos ao poema, o poeta é um erro colossal, não sabe quem é, não consegue aprender a coreografia das mãos que escrevem, ensinada pelos deuses. Debaixo da mesa é o seu túmulo solitário de onde observa a dança perfeita dos outros, o caderno onde os demais erros se perpetuam numa linha contínua de hipóteses: sulidão, puema, fius de sangue. Sinais verdadeiros da morte que se morre de cada vez que os outros tentam escrever o poema perfeito, o tal poema que não consigo alcançar. A confissão que espreitas por cima do meu ombro, quando chegares. Only let down the veil, the veil, the veil[1], digo, my beloved Ted. Junta-te a mim, está na hora de preenchermos os espaços em branco de todos os corpos, de descobrir a pétala favorita da rima, o céu oblíquo e floral, a seiva do símbolo. Está na hora de esconder os indícios das intenções fracassadas, de corrigir os erros de todas as traduções.

My beloved Sylvia, dizes, enquanto a respiração enfraquece no domínio do instante. Our solitude, so annoying and so hopeless.



[1] Verso do poema Um Presente de Aniversário, de Sylvia Plath, in Ariel, Relógio D’Água (1966): Deixa somente cair o véu, o véu, o véu (tradução de Maria Fernanda Borges).

Adília César, in Revista Caliban

Rafael Mantovani lê Adília César



Rafael Mantovani lê o poema ENTRE ESPELHOS da poeta Adília César na apresentação da revista Tlön, no dia 20 de julho, na livraria Flâneur (Porto).

NÃO ME ATIRES POEMAS INTEIROS À BOCA

Auto-retrato de Adília César

- Querido, não me atires poemas inteiros à boca
eles magoam como pedras
marcam-me a pele, os ossos, o sangue e a paciência
pingos de pesadelos a tingir as horas

preocupa-me essa tua atitude recorrente
além da minha falta de poder de encaixe para a má poesia
para nódoas difíceis uma solução definitiva
mas sem a eficácia de um bom detergente emocional
(procurei em todas as lojas de referência
mas está esgotado)
sinto-me demasiado impaciente

a não ser que passes a escrever romances de amor
uma palavra de cada vez
e escreves amor em todas as páginas
não te esqueças, esta regra é muito importante

e podes atirar-me amor à vontade
com o amor aguento eu bem

Adília César
in O que se ergue do Fogo, 2016




sábado, 20 de julho de 2019

O POUCO E O MUITO DE MINOU DROUET

Na verdade, você não pode encontrar um livro de Minou Drouet em qualquer livraria de Paris, nem mesmo o seu sucesso fenomenal Arbre, Mon Ami, que foi publicado há pouco mais de cinquenta anos - no começo de 1956 - pelo agressivo René Julliard, que no ano anterior havia conseguido um triunfo internacional com Bonjour Tristesse, de Françoise Sagan . Mas Sagan tinha dezoito anos; Minou tinha oito anos.
Robert Gottlied in “A Lost Child” (2006)


Minou Drouet

Minou nasceu em julho de 1947 e foi adoptada por Claude Drouet, professora particular e aspirante a poetisa. A menina evidenciava problemas sérios de saúde: era quase cega e comportava-se de modo muito alheado, tendo dificuldade em relacionar-se com as outras crianças. Diz-se que até aos seis anos de idade nunca pronunciou uma palavra. Talvez por estes motivos de recolhimento interior, as suas emoções eram dedicadas quase inteiramente à natureza – os pássaros e outros animais, a grande árvore do jardim. Claude Drouet amou aquela criança para além do esperado, acreditando que através desse amor seria possível transformar um bebé doentio e fechado numa menina saudável, feliz e criativa. Não se sabe bem como começou esse milagre do desabrochar, do despertar para o mundo. Toda a infância de Minou foi cercada de mistérios e ambiguidades, e vários médicos afirmaram que ela nunca seria uma criança normal.




Em 1954 teve início um processo extraordinário de desenvolvimento do caso Minou: por volta dos 8 anos de idade a criança começou as suas lições de piano com Ninette Ellia, a quem escreveu cartas e poemas; por sua vez, a tutora mostrou-as ao Professor Vallery-Radot da Academia Francesa, que ficou fascinado e dela falou ao editor René Julliard; este veio a conhecer Minou pouco tempo depois.  Entretanto, a menina fez uma cirurgia e recuperou a visão. Julliard fez uma edição privada de um livreto com uma selecção de poemas e de cartas de Minou e a controvérsia instalou-se. Os textos, de grande qualidade literária, implicavam indiscutivelmente a questão da sua autoria: seria a criança ou a mãe, uma poetisa considerada de segunda categoria? Um sem número de acções de diversos quadrantes da sociedade francesa e até internacional moveram todas as estratégias ao alcance numa tentativa de decifrar a personalidade poética de Minou Drouet: entrevistas à família, artigos de opinião, testes de competência. A 14 de janeiro de 1956, René Juillard publicou o primeiro livro de Minou – Arbre, Mon Ami – com 21 poemas e algumas cartas que ela escreveu para diversas pessoas: uma imaginação extravagante, metáforas poderosas, neologismos, uma enorme sensibilidade. E nada disto se sintonizava com uma menina daquela idade. Seria Minou Drouet uma criança prodígio ou uma farsa? O livro teve sucesso imediato, vendendo quarenta e cinco mil cópias em poucos meses. A batalha literária continuou por mais algum tempo, a par dos filmes, canções, entrevistas, programas de televisão. Um boom mediático e avassalador que explorou o caso Minou Drouet até à exaustão, com posições altamente contrárias evidenciadas por personalidades relevantes do meio cultural da época – escritores, jornalistas, críticos de arte. Nunca se chegou a uma conclusão válida.


“Eu era uma criança perdida, eu era apenas um animal patético, que crime cometi para ser perseguida desta maneira?”, perguntou ela. Mas não houve resposta. Depois de ter publicado um segundo livro de poesia em 1959 – Le Pêcheur de Lune – ela começou a desistir. Tentou escrever fábulas, romances, e também seguir carreira como cantora, estudou enfermagem, casou com o artista e cronista de rádio Patrick Font e divorciou-se de seguida. O impulso irresistível para escrever tinha-a abandonado aos 14 anos e pouco a pouco remeteu-se ao silêncio. Mas ela encontrou uma forma de sobreviver: deixou cair a Minou da infância e tornou-se Madame Le Canou, instalando-se na localidade de La Guerche-de-Bretagne – onde poucos habitantes conhecem o seu passado. Era o preço que estava disposta a pagar. 


Minou Drouet

É possível encontrar a bela mulher loira de 72 anos a fazer compras no mercado; já não escreve e recusa-se a dar entrevistas. Apetecia-me perguntar-lhe: “Minou Drouet, és um génio ou uma fraude?”, mas sei que não obteria resposta. Há machados de guerra que devem ficar enterrados. O caso Minou Drouet foi considerado o maior enigma literário do século XX. 

Adília César

sábado, 13 de julho de 2019

A POESIA E A POETA ADÍLIA CÉSAR

VESTÍGIOS DE POESIA https://vestigiosdepoesia.blogspot.com é o blogue de Sérgio Ninguém (poeta e editor da Eufeme) dedicado à poesia, à escrita e às traduções. 

Adília César foi entrevistada com base em 3 questões relativas à Poesia.




1. O que é a poesia?

Ouve a tua voz, sussurra ele. Concentro-me. Mas durante um certo tempo sou refém de um chão por dentro, e é por dentro que existo para lá do que sou capaz de existir. Tenho palavras antigas e velhas ao meu dispor para colocar a pele no corpo da poesia, essa vagabunda que me provoca e me tortura. A poesia tem o som do remorso, é o desabafo alinhado por manchas, cheiros, suposições. E sonhos. Então, comovo-me. Descubro que a poesia é uma viagem interior, atravessa caminhos por entre as silvas para encontrar a palavra rigorosa numa consentida poexistência. A poesia é a persistência do caos nos gestos do malabarista inexperiente; uma agonia esfomeada que escava o silêncio e a solidão, rasga a pele, sangra a carne e faz parar o tempo nas entranhas simbólicas: é a dor universal do pensamento a fluir. Depois, vem o alívio da construção do poema, esse corpo feito com partes do próprio corpo do poeta. É um alívio metafórico, mas é o mais real de todos: já o senti tantas vezes, todas as vezes em que tentei escrever um poema. Quando a poesia surge, ou melhor: quando surgimos perante um poema, renascemos num idioma novo, onde não reconhecemos as palavras. E o poema já não é nosso, é um pirilampo aceso a iluminar a escuridão do mundo, que existe durante breves instantes. Mas se o poema se tornar linguagem essencial para alguém, então transforma-se numa estrela eterna – a poexistência. Viver em modo de poexistência é mergulhar no escuro para encontrar a claridade.

Quem escreve poesia procura a superação terapêutica do seu próprio sofrimento (poesia curativa)? Quer mostrar aos outros a sua representação poética de uma realidade emocional e sentimental interiores (poesia confessional)? Intenta investigar os processos da construção do texto poético (meta-poesia)? Ou pretende expor uma criação artística e poética usando as palavras que conhece, exibindo-a como obra? Ou não tem qualquer ambição?
E quem lê poesia o que espera encontrar? Palavras bonitas? Um texto interventivo? Um jogo de palavras? Uma anedota?
Se o poema é escrito através do idioma da fome, a poesia é visceral, emocional e racional, é um animal em vias de extinção porque padece de autofagia. Quem se alimenta de poesia corre o risco de definhar à mercê do imenso frio da ignorância; pois pululam por todo o lado, como uma espécie de praga invencível, tantos pseudopoemas, que mais não são do que representações medíocres da realidade, imitações imperfeitas, uma espécie de contrabando da linguagem, um acto falso e condenável… Assim, a poesia não serve para nada, nem para quem a escreve, nem para quem a lê.
Acredito que a palavra-chave é a criação da linguagem poética como obra de arte, implicada num processo de causa-efeito estético. Ou seja, eu escrevo um poema e sinto o corpo da poesia a pulsar, vivo; dou o passo certo e coloco-me naquela posição exacta em que a iluminação emanada pelas palavras é ainda subtil, mas perfeita. E tu lês o poema que eu escrevi e verás iluminações anteriores aos súbitos de agora, aquelas luzes que ficarão ali a ressoar por dentro de ti, e que acenderás sempre que precisares. A verdadeira poesia transforma o teu caos interior noutro caos ainda mais disforme, porque a apreciação estética não dá respostas, apenas devolve os ecos das perguntas. Neste caso, a poesia pode servir para a construção de uma teoria de tudo, geração após geração, e aí reside o seu valor enquanto arte.

3. Será que só alguns podem ou conseguem ser poetas?

Se eu conseguir caminhar pela frescura dos incêndios de cabeça erguida, sim, eu sou poeta. Mas se não tiver coragem de abandonar a matilha, serei apenas mais um insecto cambaleante, enganado pela luz falsa do candeeiro.
O poeta não precisa de estar preocupado com os outros nem com o mundo. Escreve porque quer escrever sem se preocupar se algum dia vai ser lido. Ah, como eu detesto o poeta possuidor de vaidades vãs, o que se autopromove. Ah, como eu admiro a solenidade do poeta sem abrigo, solitário e louco, a pureza dos seus versos que são como constelações eternas do tempo.
Há muita gente que afirma que escreve poesia. Uns, são apenas vestígios de impurezas, embora com o poder inestético de esborratar o sorriso de Mona Lisa pintado por Da Vinci ou de lascar o véu de mármore da Virgem Velada esculpido por Strazza. E outros até conseguem construir inusitados jogos linguísticos que, afinal de contas, apenas nos conduzem a um vazio metafórico de palavras cruzadas entre si.
Mas poetas, há poucos; porque ser poeta é a pretensão de não o ser, é o acto sublime da criação de uma escrita pura e virgem do mundo visto com os olhos da imaginação, é a densidade de uma água poética que transborda, carregada de pó de arroz e de fumo de cigarro, uma pedrada que atinge o pássaro que se ergue do fogo para o obrigar a voar em contramão.

O "EU" QUE LHE FUGIA SEMPRE


«O trabalho de Gaëtan é realizado contra qualquer ideia de tranquilidade, é feito Contra Mundum, não com uma vontade de ruptura, mas com o irresistível arrepio de quem passa sobre um gato, uma e outra vez, uma mão a contrapelo.»
João Pinharanda


Gaëtan Lampo Martins de Oliveira (1944 - 2019)

Ainda estou vivo. Vejo os meus inúmeros rostos, múltiplos da única pessoa que sou: Gaëtan.

O artista desenha representações do seu rosto e exibe uma actividade criadora peculiar, há um ensimesmamento que irradia continuamente de dentro para fora e de fora para dentro. O traço, os traços tão leves de todos os seus rostos, o risco, os riscos tão rápidos e violentos de todos os seus rostos. É uma obsessão descontinuada, uma procura da sua interioridade através do apelo à transgressão; mas não necessariamente, uma intenção de romper com o mundo que o rodeia. Antes, durante e depois da doença, o ensaio e o aperfeiçoamento desta arte da fuga: Gaëtan insiste na auto-representação do seu rosto e persiste sempre, numa espécie de encenação de si próprio, na procura das diferenças entre imagens sucessivas e na explicitação de matrizes literárias e cinematográficas, com vista à interpelação do espectador, que vê as máscaras que Gaëtan coloca não sobre o seu rosto mas em frente dele.

Procuro incessantemente as marcas do tempo no meu rosto quando eu era outro “eu” em comparação com o “eu” que sou agora. O meu gesto criador é o voo livre do pardal à solta, sem vontade de ir embora perante a janela aberta.

Todos os seus desenhos são o reflexo de uma observação demorada e detalhada, de uma interpretação da coisa vista – o “eu” daquele momento preciso – e inscrevem-se numa teoria da representação apropriada, totalmente isenta de quaisquer tiques de academismo ou vícios de um talento inato. Por isso, esquece a sua dominante mão direita e desenha apenas com a mão esquerda. O tempo e a memória fogem-lhe, mas voltam sempre nas ínfimas minúcias, nas pequenas circunstâncias físicas que Gaëtan percepciona no(s) rosto(s) e no(s) corpo(s): a apropriação e a possibilidade de projecção. A vida é apenas isto; e é também a doença, a finitude.

Procuro o último rabisco mas não consigo encontrá-lo. Olho-me ao espelho e lá está ele, mais um rosto, mais um “eu”, riscos violentos ornamentados com traços leves: vejo ainda a cópia sublinhada do que ainda sou, um homem vivo através da minha mão, e por fim, desistente nem sei bem do quê. Onde está, afinal, o que tanto procurei dentro e fora de mim? O que vos deixo é a minha busca incessante ao longo de muitos anos de trabalho intenso, nada mais do que isso. Mas não lhes chamem auto-retratos, por favor!



Gaëtan Lampo Martins de Oliveira (Luanda, 1944 – Lisboa, 2019): em 1978 expôs individualmente pela primeira vez na Galeria Módulo, e a partir dessa data realizou inúmeras exposições individuais e colectivas. Destaca-se a grande antológica feita no antigo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (1996), intitulada Terra de Ninguém e uma outra no museu do Chiado (2004). Preparava uma segunda individual importante para a Fundação Carmona e Costa. Entre as exposições colectivas que realizou destacam-se: a XI Biennale de Paris (1980); a LIS’81 (exposição destruída no incêndio do pavilhão de Belém, no mesmo ano); a V Trienal da Índia (1982), Tríptico, durante a Europália, no Museum van het Hedendaagse de Gent (1991); e O Rosto da Máscara, no CCB (1994). Gaëtan está representado em todos os grandes museus nacionais. Usando o nome Gaëtan Martins de Oliveira, trabalhou na Editora Ulisseia e assinou traduções de autores como António Tabucchi, Marguerite Yourcenar, Italo Calvino, Bruno Zevi. Morreu a 10 de julho de 2019, com 75 anos, vítima de doença prolongada.


Adília César
in https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__210

terça-feira, 9 de julho de 2019

ICONOGRAFIA DAS MÃOS NA ARTE II

Iconografia das Mãos na Arte II



Willy Verginer


Isto é um poema. Sem lugar nem corpo.
Um ponto e um universo cheio de asas.
O tempo cheio numa barriga de mãe.
Assim, quase a exceder-se.
Como se fosse um estilo de miragem
alinhado numa cena contemporânea.

Espiral. Imensa biblioteca de pontos e espaços.
Luzes que cantam o final de cada verso.

Se a minha mãe me chamar para dentro da sua barriga.
Mãe. Mãe sozinha de mãos dadas com o vento
a ensinar-me a voar para fora da sua cabeça. Para longe.
Mas eu só sei adormecer dentro do coração.

Isto é um poema?

Adília César in "lugar-corpo", Eufeme, 2017

ICONOGRAFIA DAS MÃOS NA ARTE - I

Iconografia das Mãos na Arte I


"Auto-Retrato Obscuro" de Gina Freuen


se eu molhar o meu peito com esta ideia
saberei que a matriz original é sulco da fantasia
tempo no lugar da matéria imaginada 

dignifico a estrutura da linguagem 
com pensamentos sobre a luz
para alcançar a harmonia surpreendente do pirilampo

é cruel fazer as mãos pressentirem o milagre 
dolorosa lucidez sobre o tempo futuro
a água é memória dos sonhos
mas o tempo é o nada 
preenche o meu coração e não voa no escuro


Adília César, in "o tempo o tempo",Eufeme, 2019


Imagem: trabalho de Gina Freuen, “Auto-retrato obscuro" apresentado numa exposição no Jundt Art Museum em 2007. (Brian Plonka The Spokesman-Review)

segunda-feira, 8 de julho de 2019

A ÁRVORE DA IMAGINAÇÃO

Princípio de linha X




Era uma vez uma árvore que nasceu em cima de um tronco velho no meio de um rio. Muitos dias depois, um pássaro chegou perto dela e disse:

Pássaro - Desculpa dizer-te isto, mas estás desenquadrada. Devias ser mais discreta, mais igual às outras árvores.


Árvore - Porquê?


Pássaro - Uma árvore deve ter as raízes na terra.


Árvore - Porquê?


Pássaro - Porque é o costume. A semente cai na terra e vai-se desenvolvendo até ser árvore. Sempre foi assim.

Árvore - Tens a certeza?

Pássaro - Sim, tenho a certeza absoluta.

Árvore - Eu não tenho as minhas raízes na terra. E não deixo de ser uma árvore.

Pássaro - Mas és uma árvore louca.

Árvore - Não faz mal, não me importo. 

Pássaro - Devias importar-te. Estás sozinha. Os loucos ficam sempre sozinhos. Fazem perguntas sobre tudo e não têm respostas para nada.

Árvore - Não estou sozinha. Estou acompanhada pela minha imaginação. E não preciso de certezas, as dúvidas dão-me todas as respostas de que preciso.

Pássaro - Mas afinal, porque nasceste em cima de um tronco velho no meio de um rio?

Árvore - Para te poder contar a minha história.

Adília César

sábado, 6 de julho de 2019

OS NOMES DAS COISAS


«Damos um nome às coisas que amamos.»
Gerry Durrel

Existem inúmeras teorias que explicam o aparecimento da linguagem, ou melhor, da língua, enquanto sistema de fala e de comunicação entre as pessoas. No seguimento do gesto rudimentar (comunicativo de uma acção, de um estado ou de um desejo), provavelmente surgiu a fala, a par do aperfeiçoamento dos sons emitidos pelo aparelho vocal. Na Idade da Pedra, esta necessidade de comunicação estaria relacionada com a sobrevivência das espécies. Um dia, deu-se a cada criança um nome próprio; primeiro, o nome teria uma forte carga conotativa; actualmente, os nomes próprios foram esvaziados do sentido etimológico, do conteúdo semântico, restando apenas uma espécie de invólucro opaco que oculta o original e verdadeiro significado do nome em si.

Quando penso nas palavras, admito imediatamente a sua condição de equilíbrio. São tão frágeis as palavras. Quando no início havia poucas coisas e não tinham nome, acredito que tudo estava no seu devido lugar. Depois, a existência de muitas coisas implicou dar um nome diferente a cada uma. Ela - a linguagem - pensa nas coisas e nas palavras das coisas. O significado de um nome é a essência da própria matéria viva ou inerte, ínfima ou gigantesca, particular ou universal. Afinal, tudo existe apenas porque pode ser nomeado. Ela - a linguagem - inventa um nome naquele preciso momento em que tem a certeza que não pode ser ouvida: é o princípio de si própria, a chamar a pedra, o fruto, o bicho, o homem, o medo. Na escuta da própria voz, o som do nome de qualquer coisa a esvaziar o sentido dessa palavra, a procura de uma essência anterior à substância da coisa, o entendimento da génese material e espiritual de um ser no campo mórfico de forças que sintonizam a expressão da energia. Uma espécie de autofagia do pensamento, que por sua vez renasce numa outra linguagem, cada vez mais viva por ser dinâmica.

Ela – a linguagem - sabe, antes de qualquer outro pensamento, que é um quase-nada, uma quase-vida, uma quase-viagem. Tantos caminhos, mas apenas um a percorrer, o da procura da sua própria interioridade e valor, através da declamação da palavra-chave da sua existência: emoção - a coisa e o seu próprio nome. As palavras não chegam para encontrar todos os caminhos comunicativos, mas mesmo assim, a palavra é dita e esvaziada do próprio som, teimosamente repete-se, multiplica-se, transforma-se noutros códigos. A coisa (pedra, fruto, bicho, homem, medo) é agora emoção pura, e a palavra do seu nome fará parte dela para sempre: por fim, no tempo em que escrevo esta crónica, é o meu dicionário pessoal e intransmissível. Tão frágeis as palavras, tão ténues os elos entre as palavras e as coisas. Elos torcidos enredam-se e partem-se; a energia impõe a sua inércia e tenacidade, mas mesmo assim, as coisas deixam de existir porque não há palavras para as nomear, quando a não-existência deixa de ter importância e a palavra cai num salto abismal sem rede, perde a forma enquanto mergulha no sentido esvaziado da matéria viva a perder a luz. Os nomes que dou às coisas são apenas um eco, uma maneira de “aparecer”, mas não de “ficar”.

É preciso fazer prevalecer o nome num significado “significante” para cada um de nós e há muito tempo que procuro organizar uma teoria: creio que é o amor que faz perdurar o nome. Dou um nome à minha filha e dou-lhe o meu nome. Dou um nome ao que sinto pelo homem que amo e amplio o meu nome com os nomes dele: engrandeço o meu dicionário pessoal imbuído de amor. "A importância dos nomes" foi o título dado por Adriana Freire Nogueira a um artigo que escreveu para o Cultura.Sul (p. 11), publicado a 19.01.2018. Gostei do texto, ilustrado por inúmeras referências literárias, algumas das quais desconhecia. Recordei então uma particularidade em relação ao meu nome da infância –Adília – que me incomodou durante muito tempo. Quis o destino que o meu pai, aos dezasseis anos, tivesse feito uma promessa, a qual envolvia uma irmã sua que estava doente desde os 5 anos com tuberculose e que, infelizmente, acabou por falecer pouco depois: se um dia fosse pai de uma menina, chamar-lhe-ia "Adília", em sua honra. E assim foi. 

A minha tia Adília César

Quando aprendi a escrever o meu nome completo, o meu pai contou-me o seu contorno peculiar: «Sabes, o teu nome não é um nome qualquer, estava guardado no meu coração.», disse ele. O que tornou esta história bastante delicada para mim, foi a partida que o mesmo destino me pregou: tendo em conta os apelidos do pai e da mãe da minha tia Adília e os do meu pai e da minha mãe, eu acabei por ter os mesmos nomes próprios e os mesmos apelidos do que ela. Uma sensação estranha, parecia que me equilibrava no fio da morte. Durante alguns anos, foi penoso carregar aquelas palavras tão importantes, escritas com letras maiúsculas e registadas na minha Cédula Pessoal: o desafio emocional de ser uma pessoa viva com o nome de uma pessoa morta. Assim, peço emprestadas as últimas palavras escritas por Adriana: «Por vezes, temos de fazer as pazes com o nosso nome. Eu já fiz.»

Adília César

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA