quinta-feira, 25 de julho de 2019

ONLY LET DOWN THE VEIL, THE VEIL, THE VEIL

Uma coisa sentada por baixo da mesa, sem se alongar no gesto do dia. Fica assim em estátua, cai e não se levanta, sob o tampo de mármore. Dizes ser uma harmonia a cantar-me o tempo que agora parou, em teu redor, em meu redor, pontos finais como filhos de grãos de onde nascem as flores do sopro; irradiando para as margens lascadas da folha de papel. Pequenas sementes eclodidas pelas sucessivas leituras das pupilas, onde as pálpebras tombadas inventam a fala muda de não se falar de coisa alguma, nada. O silêncio com a palavra por baixo chora na tristeza de um vento por todos os lados; para cima fogem os olhos, mas não vêem. Há outros filhos de leite que também não têm companhia; outros hermafroditas. Dir-se-ia algo já fúnebre de tanta quietude. Dizes que eu sou a tua amada Sylvia.

Auto-retrato de Adília César

Isto de fazer poesia carece de fundamentos abonatórios e realistas, obedece a palavras escritas com erros, como sulidão; submete-se às alucinações quebradas nas letras, deusas de uma simplicidade indescritível e inexplicável; debaixo da mesa é o seu altar, onde as disponho sobre espaços em branco do meu corpo, enquanto tento perder de vista a porta aberta do forno, esse olho magnânimo e assombroso. Paira o tempo sobre um trono antigo de fazer-me velha e cansada, um episódio francamente incomodativo de só. E se eu dançasse por estas voltas que fazem como se tudo me fosse um apenas erro ao longe, que me olha de longe, um apenas erro quase a tombar no acidente quando imagino a cabeça aberta pela música, sopros de erros na voz, palavras imaginadas, animais a galope que me fogem da garganta, letras em atropelo; a coisa sentada debaixo da mesa, surda e muda. Enquanto tu não chegas. E agora é a mesa que dança, a sulidão é um erro, a sulidão está tão cansada como a palavra que faz o gesto do seu nome, um sino pesado a querer levantar-se. O tempo a querer-se de uma cor de luz ilustre, clara, alva, tão linearmente límpida como a transparência química de uma lágrima, a imagem melancólica de um pássaro caído do ninho a fazer companhia a outro pássaro caído do bando. Enquanto os nossos filhos dormem e sonham; talvez mortos e também vivos. Mas a poesia não é uma questão de asas.

Abro o coração, são agora dois, jorra o sangue debaixo do tampo de mármore, como raízes de uma flor acesa. É mais difícil dançar assim sobre o visco vermelho que não é uma cor, parece uma fábula imperdoável, um outro sonho que só havia de vir quando eu já fosse muito velha, a boiar no rio do tempo, sem me alongar no gesto da noite.

Mas esse sangue fala e constrói, empilha as palavras e as coisas, inventa uma noção poética fluida e carregada de sinais que ainda não é poesia. A consciência de tudo, a atmosfera metafórica, o trabalho lexical, a performance semântica, o forno tão aberto e convidativo. A cabeça deitada dentro do testamento.

Apesar da pronúncia correcta nos sons oferecidos ao poema, o poeta é um erro colossal, não sabe quem é, não consegue aprender a coreografia das mãos que escrevem, ensinada pelos deuses. Debaixo da mesa é o seu túmulo solitário de onde observa a dança perfeita dos outros, o caderno onde os demais erros se perpetuam numa linha contínua de hipóteses: sulidão, puema, fius de sangue. Sinais verdadeiros da morte que se morre de cada vez que os outros tentam escrever o poema perfeito, o tal poema que não consigo alcançar. A confissão que espreitas por cima do meu ombro, quando chegares. Only let down the veil, the veil, the veil[1], digo, my beloved Ted. Junta-te a mim, está na hora de preenchermos os espaços em branco de todos os corpos, de descobrir a pétala favorita da rima, o céu oblíquo e floral, a seiva do símbolo. Está na hora de esconder os indícios das intenções fracassadas, de corrigir os erros de todas as traduções.

My beloved Sylvia, dizes, enquanto a respiração enfraquece no domínio do instante. Our solitude, so annoying and so hopeless.



[1] Verso do poema Um Presente de Aniversário, de Sylvia Plath, in Ariel, Relógio D’Água (1966): Deixa somente cair o véu, o véu, o véu (tradução de Maria Fernanda Borges).

Adília César, in Revista Caliban

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