Uma coisa sentada por baixo da mesa, sem
se alongar no gesto do dia. Fica assim em estátua, cai e não se levanta, sob o
tampo de mármore. Dizes ser uma harmonia a cantar-me o tempo que agora parou,
em teu redor, em meu redor, pontos finais como filhos de grãos de onde nascem
as flores do sopro; irradiando para as margens lascadas da folha de papel. Pequenas
sementes eclodidas pelas sucessivas leituras das pupilas, onde as pálpebras
tombadas inventam a fala muda de não se falar de coisa alguma, nada. O silêncio
com a palavra por baixo chora na tristeza de um vento por todos os lados; para
cima fogem os olhos, mas não vêem. Há outros filhos de leite que também não têm
companhia; outros hermafroditas. Dir-se-ia algo já fúnebre de tanta quietude. Dizes
que eu sou a tua amada Sylvia.
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Auto-retrato de Adília César |
Isto de fazer poesia carece de fundamentos abonatórios e realistas, obedece a palavras escritas com erros, como sulidão; submete-se às alucinações quebradas nas letras, deusas de uma simplicidade indescritível e inexplicável; debaixo da mesa é o seu altar, onde as disponho sobre espaços em branco do meu corpo, enquanto tento perder de vista a porta aberta do forno, esse olho magnânimo e assombroso. Paira o tempo sobre um trono antigo de fazer-me velha e cansada, um episódio francamente incomodativo de só. E se eu dançasse por estas voltas que fazem como se tudo me fosse um apenas erro ao longe, que me olha de longe, um apenas erro quase a tombar no acidente quando imagino a cabeça aberta pela música, sopros de erros na voz, palavras imaginadas, animais a galope que me fogem da garganta, letras em atropelo; a coisa sentada debaixo da mesa, surda e muda. Enquanto tu não chegas. E agora é a mesa que dança, a sulidão é um erro, a sulidão está tão cansada como a palavra que faz o gesto do seu nome, um sino pesado a querer levantar-se. O tempo a querer-se de uma cor de luz ilustre, clara, alva, tão linearmente límpida como a transparência química de uma lágrima, a imagem melancólica de um pássaro caído do ninho a fazer companhia a outro pássaro caído do bando. Enquanto os nossos filhos dormem e sonham; talvez mortos e também vivos. Mas a poesia não é uma questão de asas.
Abro o coração, são agora dois, jorra o sangue
debaixo do tampo de mármore, como raízes de uma flor acesa. É mais difícil
dançar assim sobre o visco vermelho que não é uma cor, parece uma fábula
imperdoável, um outro sonho que só havia de vir quando eu já fosse muito velha,
a boiar no rio do tempo, sem me alongar no gesto da noite.
Mas esse sangue fala e constrói, empilha
as palavras e as coisas, inventa uma noção poética fluida e carregada de sinais
que ainda não é poesia. A consciência de tudo, a atmosfera metafórica, o trabalho
lexical, a performance semântica, o forno tão aberto e convidativo. A cabeça
deitada dentro do testamento.
Apesar da pronúncia correcta nos sons
oferecidos ao poema, o poeta é um erro colossal, não sabe quem é, não consegue
aprender a coreografia das mãos que escrevem, ensinada pelos deuses. Debaixo da
mesa é o seu túmulo solitário de onde observa a dança perfeita dos outros, o
caderno onde os demais erros se perpetuam numa linha contínua de hipóteses: sulidão, puema, fius de sangue. Sinais
verdadeiros da morte que se morre de cada vez que os outros tentam escrever o
poema perfeito, o tal poema que não consigo alcançar. A confissão que espreitas
por cima do meu ombro, quando chegares. Only
let down the veil, the veil, the veil[1],
digo, my beloved Ted. Junta-te a mim,
está na hora de preenchermos os espaços em branco de todos os corpos, de
descobrir a pétala favorita da rima, o céu oblíquo e floral, a seiva do
símbolo. Está na hora de esconder os indícios das intenções fracassadas, de
corrigir os erros de todas as traduções.
My
beloved Sylvia, dizes, enquanto a respiração enfraquece
no domínio do instante. Our solitude, so
annoying and so hopeless.
[1] Verso do
poema Um Presente de Aniversário, de
Sylvia Plath, in Ariel, Relógio
D’Água (1966): Deixa somente cair o véu,
o véu, o véu (tradução de Maria Fernanda Borges).
Adília César, in Revista Caliban
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