terça-feira, 25 de julho de 2023

PERFIL - CASIMIRO DE BRITO

 O Poeta do Amor

 

«Sou poeta, um vaso aberto a todas as águas».

Casimiro de Brito,

in Catálogo da Exposição Entre Mil Águas: Vida Literária de Casimiro de Brito, I FLIQ

 

Casimiro de Brito - Site da Câmara Municipal de Loulé

     Foi no contexto de festa da cultura - I Festival Literário Internacional de Querença (agosto de 2016) – que conheci Casimiro de Brito, o autor homenageado. Vi um homem jovial, comunicativo, atento aos pormenores e profundo conhecedor dos diferentes cenários onde a Literatura se move – a escrita, a crítica, a divulgação, o reconhecimento por parte dos outros. Vi a sua pose de poeta do amor e da claridade. Ao mesmo tempo, tive a percepção de um homem simples, demarcado das vaidades que poluem os guetos literários e possuidor de uma apurada sensibilidade humana. E vi, sobretudo, a sua generosidade, ao dizer tanto com tão poucas palavras. Por exemplo, sobre si próprio: «Biografia: amo e escrevo.»

     Assim, é visível a intensidade das coisas belas, o amor, o erotismo, a mulher amada na escrita de Casimiro de Brito. Deixo-vos, como exemplo, dois fragmentos do seu livro “Flor Interior”, editado pela Eufeme em 2017:

4

Olho para a mulher

como se tivesse sido cego

a vida inteira

24

Não sei ler mas li

as páginas do teu corpo

de olhos fechados

 

     Também Manuel Frias Martins o referencia como um dos «melhores executantes» de literatura erótica, numa entrevista de 16 de agosto de 2021 ao JN: no romance Uma Lágrima que Cega, por exemplo, «o erótico emerge de uma abordagem estética (e quase mística) dos atos de amor e da paixão estimulada pelo corpo feminino, mas cujo arrebatamento simultaneamente erótico e estilístico se reconhece em imagens» (…) da sua escrita.

     Casimiro de Brito é fascinante na sua interpretação filosófica. Apresento alguns aforismos seus, do conjunto Pontos Luminosos, publicados na revista Lógos-Biblioteca do Tempo Nº 8 (Maio de 2018):

      «1. Do aforismo. Que seja o mais nu possível.

4. Mas cuidado com as palavras: elas ofuscam o silêncio onde se oculta a palavra que não é sequer música, apenas respiração.

11. Não, não é possível prosseguir no ofício do poema, no precário equilíbrio entre opacidade e transparência ("é característica do enigma a de dizer coisas reais através de associações impossíveis", Aristóteles, Poética, 22) quando a música me abandona, quando o pequeno animal de som que vem do fundo e banha de ambiguidade as palavras cessam. Quando a música se afasta só o silêncio me salva, o silêncio placentário que envolve cada palavra como se ela fosse um bicho que vai nascer, florescer, ferir, esgotar-se e morrer.

19. E o pensamento? Será o pensamento, como pretende Heidegger, “o poema original”? Poema e pensamento são traduções da essência poética, sub-versões da verdade do ser; engendram-se na perdição da voz, jamais na perdição da boca. O dizer original não é, pois, o primeiro verso do poema, o incipit que tu colhes quando menos esperas: não é a palavra, mas o desejo da palavra. Há quem lhe chame música ou paixão, mas para que essa música se transforme em número é preciso que o desejo seja de-cifrado e a paixão trabalhada com rigor. Só então o dictare original será desfeito pela lei do poema.

24. O poeta, esse, está ferido e vai cair – ferido pelos desastres da História e da sua história vai regressar, mas ainda não chegou a hora de mergulhar nas águas mais íntimas do mundo; esse que ouviu a sombra, e teve a visão do canto, e vai criar a obra da palavra… vai enfim cair – o poeta que nomeou a unidade perdida vai-se apagar no poema que talvez dure mais do que um instante – e assim se romperá por momentos a separação, o fosso que separa o homem da esfera musical a que pertence – a música “secretissima, penetralia, cubilia” de que falava Santo Agostinho – essa esfera ou seio ou Unum Principale diante do qual o homem está sentado – o poeta que vai cair, apodrecer – expulso mais uma vez do paraíso para o seu longo e louco exílio.»


     Numa entrevista concedida por Casimiro de Brito à revista Lógos-Biblioteca do Tempo Nº 3 (Setembro de 2018) é evidente a simplicidade, o despojamento em relação ao seu universo poético:

«Lógos – A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tem consciência da “utilidade” da sua poesia no mundo?

CB – Deixei escrito há dezenas de anos que o meu poema servirá, espero, a quem for tão pobre como eu. Pobre no sentido de despojado. E é curioso que, por vezes, ficamos mais ricos — e não será apenas o meu caso — com a aproximação do pouco. O mundo está cheio de “muito” e é preciso esvaziá-lo quanto possível.»

     Casimiro de Brito é poeta, romancista, contista e ensaísta. Nasceu no Algarve (Loulé), a 14 de janeiro de 1938, onde estudou (depois em Londres) e viveu até 1968. Depois de uns anos na Alemanha passou a viver em Lisboa. Teve várias profissões, mas actualmente dedica-se exclusivamente à literatura. Começou a publicar em 1957 (Poemas da Solidão Imperfeita) e, desde então, publicou mais de 70 títulos. Dirigiu várias revistas literárias, entre elas "Cadernos do Meio-Dia" (com António Ramos Rosa), os Cadernos “Outubro/ Fevereiro/ Novembro” (com Gastão Cruz) e “Loreto 13” (órgão da Associação Portuguesa de Escritores). Actualmente é responsável pela colaboração portuguesa na revista internacional “Serta” e faz parte da direcção do Festival “Voix Vives” de Sète bem como da World Haiku Association, sediada em Tóquio. Esteve ligado ao movimento “Poesia 61”, um dos mais importantes da poesia portuguesa do século XX. Ganhou vários prémios literários, entre eles vários prémios nacionais, o Prémio Internacional Versilia, de Viareggio, para a “Melhor obra completa de poesia”, pela sua Ode & Ceia (1985), obra em que reuniu os seus primeiros dez livros de poesia. Colabora nas mais prestigiadas revistas de poesia e tem obras suas incluídas em 236 antologias, publicadas em vários países. Participou em inúmeros recitais, festivais de poesia, congressos de escritores, conferências, um pouco por todo o mundo. Foi director de festivais internacionais de poesia de Lisboa (Casa Fernando Pessoa), Porto Santo (Madeira) e Faro. Foi fundador e vice-presidente da Associação Portuguesa de Escritores, presidente da Association Européenne pour la Promotion de la Poésie, de Lovaina e foi fundador e presidente da direcção depois da Assembleia Geral do P.E.N. Clube Português. Obras suas foram gravadas para a Library of the Congress, de Washington. Foi agraciado pela Academia Brasileira de Filologia, do Rio de Janeiro, com a medalha Oskar Nobiling por serviços distintos no campo da literatura — entre outras distinções. A Académie Mondiale de Poésie (da Fundação Martin Luther King) galardoou-o em 2002 com o primeiro Prémio Internacional de Poesia Leopold Sédar Senghor, pela sua carreira literária. Ganhou o Prémio Europeu de Poesia Sibila Aleramo-Mario Luzi, com a sua antologia Libro delle Cadute, publicada em Itália em 2004, o prémio “Poeteka” na Albânia e o Prémio Mundial de Haikus da World Haiku Association. Tem traduzido poesia de várias línguas, sobretudo do japonês e foi traduzido para galego, espanhol, catalão, italiano, francês, corso, inglês, alemão, flamengo, holandês, sueco, polaco, esloveno, servo-croata, grego, romeno, búlgaro, húngaro, russo, árabe, hebreu, chinês, albanês, macedónio e japonês. Em 2006, foi nomeado Embaixador Mundial da Paz, no âmbito da Embaixada Mundial da Paz, sediada em Genebra. Foi também agraciado com a Ordem do Infante D. Henrique pela Presidência da República (Portugal). Últimas obras editadas: Livro das Quedas, Arte de Bem Morrer, Amar a Vida Inteira, Amo Agora / Amo Sempre (com a cantora argentina Marina Cedro), Eros Mínimo, Aimer Toute la Vie (em Paris), Apoteose das Pequenas Coisas, Flor Interior, Música Nua, Uma Lágrima que Cega, Alfa & Ómega – Breve Dicionário Pessoal, Cerimónia Amorosa, Euforia, Livro de Eros ou As Teias do Desejo, Amor Nu (Livro de Eros, II), No Amor Tudo se Move e Regresso à Ilha.

     É preciso revisitar Casimiro de Brito, o homem e o escritor. Depois de termos esvaziado o mundo do supérfluo, a sua obra permanecerá a ecoar no tempo.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_383

I FLIQ 2016 - Festival Literário Internacional de Querença

O 1º FLIQ - Festival Literário Internacional de Querença - teve lugar no Algarve, a 6 e 7 de agosto de 2016. 

Foi uma ideia, um sonho de Luís Guerreiro (1960-2017), o "Engenheiro das Letras". 


"Aos que nos dão raízes, sombras ou palavras."


No catálogo do evento, organizado por Patrícia de Jesus Palma, conta-se toda a história do FLIQ: propósitos, actores, apresentações, exposição e, principalmente, uma grande homenagem ao poeta Casimiro de Brito.

Este foi o meu contributo, registado no referido catálogo.


Adília César, in Catálogo FLIQ 2016
 

OS POETAS QUE ESCREVEM (PARA) O FUTURO

O poeta que escreve para o futuro é invisível no presente e já vive no futuro. É lá que se situa a sua zona de desconforto. No corpo e no pensamento dos poetas que transgridem, moram os poemas do futuro. O caos do desconforto é uma casa sem portas nem janelas. Nos silêncios que gritam, abrem-se as portas e as janelas que antes não sabíamos que existiam.

O poeta que escreve para o futuro retorna uma e outra vez ao tempo presente para deixar cair as camadas inúteis e exibir sem pudor a sua nudez interior, o corpo do poema. Mesmo que esteja inquieto ou apavorado, caminha sobre as dúvidas da sua existência e as brasas da consciência do mundo. Sente a tortura da melancolia e das dores dessa passagem, mas mesmo assim não desiste. Transcende a vulgar realidade poética ao seu alcance, que parece esculpir-se num bloco de gelo, a derreter à medida que a mediocridade do poema luta em vão pela sua sobrevivência.

Os poemas dos poetas que escrevem para o futuro são exactamente o oposto. São como um rio que desagua e congela na consciência dos homens e aí permanece, assumindo uma geografia emocional e racional, desenhada num mapa exclusivo daqueles intervenientes – aquele poeta e aquele leitor – ainda que situados em pontos tão distantes na linha do tempo, como as extremidades de uma ponte que une dois lados contrários do pensamento, uma ponte para a salvação do poema.

O poeta que escreve para o futuro procura continuamente, até onde a vista já não alcança, os limites da sua existência poética, que vive no seu corpo e no seu pensamento e respira com ele e também respira por ele. Quando morre, é o verbo do corpo eterno no cosmos da memória. Mas por enquanto, ainda está aqui, junto de nós, numa circunstância presente da sua existência poética, a unir-se a outras existências poéticas, outros pontos luminosos conscientes da sua própria incandescência, a diminuir as distâncias que os separam.

Os poetas que escrevem para o futuro são os profetas do mundo e mergulham no escuro para encontrar a claridade.

Adília César

Luís Guerreiro - Jornal Público de 2 de julho de 2017


Luís Guerreiro, "o engenheiro das letras":

Artigo de Idálio Revez in Jornal Público de 2 de julho de 2017


Casimiro de Brito, in Algarve Vivo de 12 de março de 2017

Poesia de Casimiro de Brito em exposição itinerante:

Artigo de Rui Pires Santos no Algarve Vivo de 12 de março de 2017 

sábado, 22 de julho de 2023

PERFIL - PAULA REGO

 Inquietação, inquietação

 

O desenho é uma pronúncia, como a da fala. Onde nascemos, que influência tiveram em nós as primeiras vozes que ouvimos, as corruptelas, o som e a intensidade que ele transmite, se de agressão ou carinho, tudo aparece no desenho da escrita.

Agustina Bessa-Luís

 

"Fada Azul e Pinóquio", Paula Rego, 1995

     Inquietação – é o que me ocorre quando observo as obras de Paula Rego. Inquietação – é o que sinto quando ouço as palmas de alguém que quer afugentar as centenas de pássaros chilreadores que regressam a casa, ao fim da tarde. Sim, é um espectáculo merecedor de palmas. Eles – os melros e os pardais – cantam, todos juntos, uma canção de reencontro que conta uma história, como se de um ritual se tratasse. Primeiro chegou a árvore, a explosão lenta de uma semente no meio do asfalto. Depois veio o primeiro pássaro para morar num pequeno ramo. A seguir, esse pássaro chamou todos os outros para habitarem a copa daquela enorme árvore entalada entre a estrada e o prédio de quatro andares. Inquietação e angústia. Sinto compaixão pelos pássaros, essas criaturas tão frágeis e preciosas, chilreadoras, mas que ninguém quer perto das suas janelas. As pessoas batem palmas e eles calam-se durante três segundos. E logo recomeçam o poderoso chilreio em voo vertiginoso. A liberdade dos pássaros é um espectáculo a que assisto, humildemente, ao crepúsculo.

     Paula Rego foi estudar na Chelsea School of Art (1952), em Londres e, mais tarde, enquanto Artista Associada da National Gallery teve direito a um atelier no edifício do museu e a um salário. Isso permitia-lhe dedicar-se à pintura, a tempo inteiro. Era um espaço estranho, com um grande pé direito, sem janelas. Que impressão daria à artista? Atrevo-me a inferir que aquele atelier não seria o ideal para ela, uma vez que a amplitude do espaço poderia provocar-lhe uma sensação de contenção.  O atelier: demasiado amplo, demasiado largo nas suas linhas direitas, nada reconfortante. Digo reconfortante no sentido da ingestão de comida que implica a adjectivação do paladar: doce, amargo, acre, ou apenas insonso. A obra de Paula Rego é tudo menos insonsa, tem qualquer coisa de grave e assustador.

     Paula Rego nasceu em 1935, em Portugal. Os seus temas de eleição partem de uma cultura familiar, e nos seus quadros são pintados os porquês das coisas que acontecem às pessoas retratadas. A pintora reconhecia os actos quotidianos como possibilidades de procedimentos artísticos complexos, os quais sempre me escaparam. Lembro-me que, até há bem pouco tempo, desviava o olhar dos seus quadros, com o pudor próprio de uma espectadora preconceituosa e submissa ao surrealismo romântico: eu. A pintora faleceu em 2022 e senti a imperiosa necessidade de pressupor que eu estaria, de facto, enganada a seu respeito. Acredito que devemos interessar-nos pela obra artística enquanto os artistas estão vivos e, deste modo, foi uma necessidade envergonhada, confesso, por tardia.  

     Observei reproduções de obras de Paula Rego e dei por mim a inferir que os seus desenhos eram a sua escrita. Uma escrita intensamente barroca e complexa, mas ao mesmo tempo permissiva, deixando entrar as minhas próprias impressões leigas. Vislumbrei a realidade aguda dos universos femininos, simbólicos, controversos, que a artista quis deixar inscritos no tempo. A pintura "Fada Azul e Pinóquio" (1995) falou-me de temas da infância, esse universo onde fui plantada desde que nasci e de onde nunca mais saí: sou filha, mãe, sou educadora de infância. Sou mulher e também sou uma fada, tendo em conta tudo o que passei na resolução de inúmeros constrangimentos e problemas que assolaram a minha vida, de uma forma apenas subtil, quase por magia. As mulheres são assim, como fadas azuis para as crianças. A mãe, por exemplo. E todas essas fadas acreditam que têm o condão de esculpir as crianças como se estas fossem bonecos de madeira, com recompensas e castigos. A mãe e o seu filho, por exemplo. Mas não: uma criança é muito mais do que matéria a esculpir e a fada de hoje já não faz magias. Paula Rego cumpriu o seu propósito de nos contar histórias de mulheres que não sabiam onde pousar o medo. Elas não sabiam, mas Paula Rego atirou esse medo para o sítio certo: a pele da tela. Agora, podemos olhar o medo de frente, durante o tempo que quisermos, sem termos medo daquele medo. 

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_396

PERFIL - MINOU DROUET

 A fraude ou o génio – O pouco ou o muito

 

Na verdade, você não pode encontrar um livro de Minou Drouet em qualquer livraria de Paris, nem mesmo o seu sucesso fenomenal Arbre, Mon Ami, que foi publicado há pouco mais de cinquenta anos - no começo de 1956 - pelo agressivo René Julliard, que no ano anterior havia conseguido um triunfo internacional com Bonjour Tristesse, de Françoise Sagan. Mas Sagan tinha dezoito anos; Minou tinha oito anos.

Robert Gottlied in “A Lost Child” (2006)

 

 

Minou Drouet

     Minou nasceu em julho de 1947 e foi adoptada por Claude Drouet, professora particular e aspirante a poetisa. A menina evidenciava problemas sérios de saúde: era quase cega e comportava-se de modo muito alheado, tendo dificuldade em relacionar-se com as outras crianças. Diz-se que até aos seis anos de idade nunca pronunciou uma palavra. Talvez por estes motivos de recolhimento interior, as suas emoções eram dedicadas quase inteiramente à natureza – os pássaros e outros animais, a grande árvore do jardim. Claude Drouet amou aquela criança para além do esperado, acreditando que através desse amor seria possível transformar um bebé doentio e fechado numa menina saudável, feliz e criativa. Não se sabe bem como começou esse milagre do desabrochar, do despertar para o mundo. Toda a infância de Minou foi cercada de mistérios e ambiguidades, e vários médicos afirmaram que ela nunca seria uma criança normal.

     Em 1954 teve início um processo extraordinário de desenvolvimento do caso Minou: por volta dos 8 anos de idade a criança começou as suas lições de piano com Ninette Ellia, a quem escreveu cartas e poemas; por sua vez, a tutora mostrou-as ao Professor Vallery-Radot da Academia Francesa, que ficou fascinado e dela falou ao editor René Julliard; este veio a conhecer Minou pouco tempo depois.  Entretanto, a menina fez uma cirurgia e recuperou a visão. Julliard fez uma edição privada de um livreto com uma selecção de poemas e de cartas de Minou e a controvérsia instalou-se. Os textos, de grande qualidade literária, implicavam indiscutivelmente a questão da sua autoria: seria a criança ou a mãe, uma poetisa considerada de segunda categoria? Um sem número de acções de diversos quadrantes da sociedade francesa e até internacional moveram todas as estratégias ao alcance numa tentativa de decifrar a personalidade poética de Minou Drouet: entrevistas à família, artigos de opinião, testes de competência. A 14 de janeiro de 1956, René Juillard publicou o primeiro livro de Minou – Arbre, Mon Ami – com 21 poemas e algumas cartas que ela escreveu para diversas pessoas: uma imaginação extravagante, metáforas poderosas, neologismos, uma enorme sensibilidade. E nada disto se sintonizava com uma menina daquela idade. Seria Minou Drouet uma criança prodígio ou uma farsa? O livro teve sucesso imediato, vendendo quarenta e cinco mil cópias em poucos meses. A batalha literária continuou por mais algum tempo, a par dos filmes, canções, entrevistas, programas de televisão. Um boom mediático e avassalador que explorou o caso Minou Drouet até à exaustão, com posições altamente contrárias evidenciadas por personalidades relevantes do meio cultural da época – escritores, jornalistas, críticos de arte. Nunca se chegou a uma conclusão válida.

     “Eu era uma criança perdida, eu era apenas um animal patético, que crime cometi para ser perseguida desta maneira?”, perguntou ela. Não obteve resposta. Depois de ter publicado um segundo livro de poesia em 1959 – Le Pêcheur de Lune – ela começou a hesitar. Tentou escrever fábulas, romances, e também seguir carreira como cantora, estudou enfermagem, casou com o artista e cronista de rádio Patrick Font e divorciou-se de seguida. O impulso irresistível para escrever tinha-a abandonado aos 14 anos e pouco a pouco remeteu-se ao silêncio. Contudo, ela encontrou uma forma de sobreviver: deixou cair a Minou da infância e tornou-se Madame Le Canou, instalando-se na localidade de La Guerche-de-Bretagne – onde poucos habitantes conhecem o seu passado. Era o preço que estava disposta a pagar.

     É possível encontrar a bela mulher loira de 75 anos a fazer compras no mercado; já não escreve e recusa-se a dar entrevistas. O enigma persiste.

     No contexto da época, o caso Minou Drouet foi considerado o maior enigma literário do século XX, em França. Fascinante. Um enigma dentro de outro enigma. De um lado, a poesia. Do outro, uma criança. De tudo o que se sabe sobre uma e outra – a poesia e a criança – não se tem grandes certezas. O que é a poesia? O que é uma criança? E, assim, resta-nos a grande questão que ultrapassa o caso Minou Drouet: pode uma criança escrever poemas?

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_391

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA