sábado, 18 de setembro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [21] por Adília César


Tinha de haver uma apresentação condigna, solene, copiosa; e isso passava-se nesse pedaço de prosa de tipo largo, com citações latinas, que se chamava o «Prefácio». Aí, o autor modestement courbé, diante do leitor acolhedor e risonho, falava com prolixidade de si, das suas intenções, da sua obra, da sua saúde; dizia-lhe doçuras, chamava-lhe pio, perspicaz, benévolo: justificava os seus métodos, citava as suas autoridades: se era novo, mostrava, corando, a sua inexperiência em botão: se era velho, despedia-se do leitor à maneira de Boileau, numa pompa triste, como da borda de um túmulo.


Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)



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SER OU NÃO SER

poeta, não é uma questão. Estou até convencida que se alguém atirar uma pedra ao ar, acertará em três poetas, pelo menos, tal é a abundância de criaturas que pululam por aqui e por ali a escrever, a publicar e a divulgar a sua obra. Actualmente, a banalização da poesia, do poeta e do poema é merecedora de estudo porque está a transformar-se numa lavagem cerebral do leitor. As pessoas pouco ou nada leem e quando o fazem correm o risco de acertar "ao lado", tendo em conta as suas frágeis escolhas. Contudo, houve sempre alguns bons autores, em todas as épocas: mas, ultimamente, os potenciais autores nascem como cogumelos, reproduzem-se tal qual os coelhos. Ler quem ou o quê? Apesar de tudo, é possível escolher.

 

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A OBSCURIDADE

que envolve as escolhas assegura a nossa resistência ao fracasso. Não é possível ler tudo e, assim, vamos tentando agarrar as pequenas luzes que surgem um pouco por toda a parte nos suportes de comunicação ao nosso alcance: os jornais e as revistas da “especialidade literária”, bem como as democráticas e democratizadoras redes sociais, são como livros abertos a indicar caminhos da “verdade”. Contudo, são como as casas com telhados de vidro. Parecem transparentes, mas as bases das suas afirmações são de uma fatal fragilidade. Venha o diabo e escolha ele.

 

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DA TOMADA

de decisão faz parte alguma arrogância. Não és tu que me dizes que autor devo ler, sou eu que preciso abrir as janelas para que alguma luz possa entrar no meu espírito ao longo desse trilho mergulhado no escuro. As escolhas dizem respeito ao indivíduo e são feitas através de um processo específico, imaginado e enriquecido por ele. Algumas janelas vão-se abrindo enquanto outras se fecham. O equilíbrio demonstra-se em si mesmo. O equilíbrio faz-se também de decepções inevitáveis.

 

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NÃO FAZ SENTIDO

fazer apresentações públicas de autores e de livros. Nem o autor é um fantoche, nem o livro é o que dele se apregoa. O autor já escreveu o livro – isso não basta? E a obra está à disposição do leitor que, entretanto, a descobriu (talvez por acaso) e a lerá com a sua própria curiosidade e a devida inteligência, delineando as suas conclusões e decidindo se é um bom ou um mau livro.

 

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NÃO FAZ SENTIDO

apregoar as propriedades literárias e estéticas de um livro num artigo supostamente “crítico”. Mas alguém sabe fazer crítica literária em Portugal? Pregões de pura indiscrição, empolados por uma falsidade a roçar a demagogia – e assim vai o leitor apropriar-se de enganos sobre enganos, em camadas de ignorância disfarçada de eloquência.

 

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UM BOM LIVRO

pode ser destruído pelos maus leitores. Um mau livro pode ser encarado e divulgado como um bom livro pelos maus leitores. E o que fazem os bons leitores pelos livros? Não sei, porque o bom leitor é uma raça em vias de extinção. Também os bons leitores podem ser corrompidos ao lerem excertos, versos ao acaso; às vezes, leem um poema, mas, entretanto, inoculados com a preguiça contemporânea, esquecem-se de ler o livro inteiro. Cansaram-se, perderam-se, desistiram. Já não são capazes de percorrer a via analítica de um poeta magnânimo ao longo de quinhentas e trinta e seis páginas.

 

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GOSTO POUCO

quando apenas dizem “gosto muito”. A expressão faz-me sorrir, de tédio. Tento compreender o que significa; depois passa. Respiro fundo e volto atrás. E de repente, entendo a minha entediante sensação: sou eu que não sou daqui, sou eu que não sei desfazer os laços e permaneço entrelaçada nas dúvidas das minhas próprias escolhas. Mas são as minhas dúvidas, elas pertencem-me e só a mim dizem respeito. Então, guardo-as, muito bem arrumadinhas nos espaços que existem entre as palavras. E calo-me, apesar de não me sentir apaziguada, porque o mundo da linguagem também é feito de silêncios reflexivos de preparação para o próximo discurso, e de exercícios imaginativos que facilitam a compreensão deste estado de coisas que me rodeia, tão superficial.

 

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ABRO O JORNAL

de referência, carregado de críticas tendenciosas ou encomendadas. Parece um jornal de amigos para amigos, ou de especialistas com interesses mais ou menos recíprocos. As relações de causa-efeito são bastante óbvias, a roçar a patologia – por isso, cuidado com os efeitos secundários…

Mais um livro “ímpar” (a sério?). Mais um que eu não vou ler, obrigada.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_307

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA