sábado, 26 de setembro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [2] por Adília César

A ciência realmente só tem alcançado tornar mais intensa e forte uma certeza:

 - a velha certeza socrática da nossa irreparável ignorância.

De cada vez sabemos mais - que não sabemos nada.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)



Niymas Najafov, "A Conversação", 2013

 

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A DEMAGOGIA

é uma doença assintomática e conduz o ser humano a um estado letal de ignorância e até de indiferença perante o mundo. Estamos todos doentes, mas ninguém o admite. Uma quantidade enorme de informação rodeia-nos por todos os lados, é como um oceano de plástico. Está ali por via da nossa própria insensatez, mas parece não nos dizer respeito. Compadecemo-nos dos pobres animais marinhos presos no lixo que lançamos às águas, vistos com os nossos olhos lacrimosos no documentário televisivo, e depois comemos uma bela sandes muito bem embrulhada em papel de alumínio e acondicionada dentro de um saco de plástico, enquanto molhamos os pés na babuja da praia mais próxima, para onde nos deslocámos no nosso BMW a gasóleo e gastamos meia hora, às voltas, à procura de um sítio para estacionar. É só esta vez, pensamos. E o mar, tão puro na relação que estabelece com todas as criaturas que serpenteiam por entre as algas, ainda cumpre a sua intenção de vida: o vai e vem das marés é isso mesmo, a oscilação da sua luta inglória nas correntes de vida, de morte e de demagogia. Quais serão as correntes mais fortes? Siza Vieira disse que “nenhuma árvore ou pedra arrancada à natureza nos é restituída”. Eu diria que o planeta é um parceiro de peso neste desumano jogo de xadrez: a causa e o seu efeito, tão conhecidos e ao mesmo tempo tão ignorados em cada jogada.

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A VIDA

tem os seus próprios direitos, mas nem sempre deles goza. Cometem-se crimes, mas o que mais impera são as absolvições. Tudo é perdoado, tudo é passível de um qualquer esquema de subterfúgios lamechas. É só esta vez, pensou ela quando ele lhe deu a primeira bofetada. Mas ele gostou da sensação que o ciclo de violência lhe soprou ao ouvido: a mão que bate é a mão que acaricia e limpa as lágrimas. É a mesma mão feita de osso, sangue, força bruta e adrenalina. Ela também gostou desta espécie de desamor, porque a face é feita de medo e o medo alimenta-se do ensimesmamento da rotina diária do crime e da sua inevitável absolvição. Ela acredita no seu precioso pensamento de luxo e adorna o seu pescoço, a sua garganta, a sua voz com um colar de pérolas feito de ideias nocivas: é melhor ter uma desilusão do que não ter coisa nenhuma.

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O SER HUMANO

está a transformar-se no seu maior inimigo. Somos indivíduos predadores em relação a todas as outras criaturas vivas, o que quer dizer que também somos auto-destrutivos. Lutamos pela terra, pela água, pela comida, pelos valores em que acreditamos. A cidadania tem muitos apelidos: somos feitos de sonhos, queremos ir mais rápido e mais longe, possuir mais coisas: equipamentos mais eficientes e gagdets com mais funcionalidades, comida rápida, medicamentos para curar todas as doenças, objectos essencialmente inúteis para usar e deitar fora. Não olhamos a meios para atingirmos os fins – corrupção política, destruição planetária e desigualdade social em larga escala. Mais, mais, mais. E se o futuro for mais do mesmo, não haverá um ponto sem retorno em que a única velocidade seja, inevitavelmente, a da câmara lenta? Menos, menos, menos, por favor. Nós, os humanos e a nossa irreparável ignorância num mar de destruição.

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A FUTUROLOGIA

define cenários possíveis, prováveis, desejáveis. Hoje em dia somos todos peritos. Cada um invoca o seu oráculo: uns, consultam a sua divindade favorita e outros, lêem a legenda curta que aparece a correr na parte inferior ou superior do ecrã da televisão durante a emissão do telejornal. Qual será a informação mais fiável? Só o futuro o dirá.

Vamos ficar todos bem?

Isto vai piorar e muito?

Vem depressa, espírito (o futuro não tem corpo), ajuda-me a contar essa história. A invocação do real é erro, pavor. E mortalidade suspensa sobre as nossas cabeças. A ciência como cura para todos os males, enfiada na nossa carne através do buraco feito por uma agulha.

É mesmo isso que querem? Um deplorável mundo novo?

Na verdade, faltam poucos meses para acontecer a melhor coisa deste ano: o fim dele. E depois, na medida do possível, tudo irá recomeçar num novo ciclo temporal mergulhado no mesmo molho agridoce. Mais do mesmo. E ainda assim, não escaparemos ilesos.

Adília César, https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__265

 

sábado, 5 de setembro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [1] por Adília César

 

 

Nada facilita mais uma civilização que um bom clima.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)



Pintura de William Blake
 

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O SOM

predestina-se ao desprezo. Não ao ruído de fundo, sim à escuta. Estas teias de pequenos massacres diários cansam-me. E de repente, na cidade saturada de sons, há qualquer coisa que se sobrepõe ao resto: é a mansidão do bando de pardais que se recolhe na folhagem fresca. Agora mesmo: olho, mas nada vejo, apenas sinto o essencial. O coração é o ouvido absoluto da existência.

 

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A MÚSICA CLÁSSICA

tem uma relação imediata com a saudade que sinto pelo meu pai, essa linha efémera de água a brilhar ao sol, ao alcance da melodia da vida. E depois outras gotas vão passando pelo mesmo lugar, dando de beber à sede das memórias da infância. Não é uma tristeza verdadeira, nem sequer um desalento perante a respiração da ausência. A morte do meu pai aconteceu há muito tempo. Hoje, ele é este leve peso interior, como se fosse um acorde perfeito que se ouve com o coração. O andamento lento da vida perante a inevitabilidade da morte. Há vida para além de tudo o que nos atormenta.

 

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O RITMO

incentiva a velocidade até ao infinito. Um calendário não mede apenas a passagem do tempo. Afinal, os dias são provisórios, efémeros, tornam-se passado, mas também são o futuro comprometido com a tragédia humana. Que fazer com os dias? Têm assim tanta importância? Sim, os dias são meus, guardo-os amorosamente na carta sem princípio nem fim que escrevo aos meus herdeiros. Quero difundir a ideia banal, mas tão verdadeira, sobre a urgência de ter opinião formada sobre as vicissitudes que transformaram o tecido social, no sentido de cada um optar por uma atitude cívica perante si e perante os outros. Hoje, mais do que nunca, não há "bolhas" individuais: o colectivo impera nestes dias tão definitivos.

 

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O TEMPO

passa por nós ou nós levamos o tempo connosco: há duas velocidades (podendo ser um processo rápido ou lento), mas não há duas medidas: é preciso decidir, logo desde o início, que tipo de vida queremos viver. A obrigação de ter um espírito positivo, a toda a hora, é tão entediante como um ramo de flores de plástico na montra de um talho. Num mundo onde nos atiram com uma enjoativa diversidade de mensagens positivas, sublimares e explícitas, pensar sobre a depressão é ainda um preconceito; e admiti-la parece constituir uma fraqueza do próprio espírito.

 

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O CLIMA

predispõe-se a amuos e incongruências. As estações do ano exibem visíveis devaneios, bem diferentes de outros tempos. Este fenómeno climatérico influencia, em larga escala, as mentes caprichosas dos criadores de canções populares. Até a fadista Mariza canta Quem me dera/ abraçar-te no outono, verão e primavera/ quiçá viver além uma quimera/ herdar a sorte e ganhar teu coração. O inverno desapareceu da equação amorosa, vá-se lá saber porquê. Matias Damásio, o autor da canção, provavelmente não gosta do inverno, estando em perfeita sintonia com Eça de Queirós, quanto este afirma: Nada facilita mais uma civilização que um bom clima.


Imagem: William Shakespeare, “A Midsummer Night’s Dream” (1590-7). Act V, Scene I. Painting: William Blake, “Oberon, Titania and Puck with Fairies Dancing” (1786). Tate Britain, London

Adília César, in  https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__263


AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA