sexta-feira, 1 de setembro de 2023

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA


Adília César nasceu no século passado, em Lagos, Portugal. Só tem uma ruga – a da linha de escrita. Se não se chamasse Adília César o seu nome seria Baudília ou Monadília, e depois de ter descoberto a Área Branca perfeita e imaculada, naturalmente chamar-se-ia Fiamadília. Adília é singular – o seu ser está na primeira pessoa. Tem uma voz parecida com os poemas que escreve e ama de olhos bem abertos. Nunca escreveu uma ode, nem quando está em viagem, mas é capaz de despertar a Europa num só verso. Adília é o lugar-corpo da poesia com uma agulha no coração. Está bem acordada durante o dia e não toma Xanax; talvez por isso o seu lado negro esteja sempre à espreita, em lúcido delirium. Detesta vermes e poluição sonora. Quando tropeça e cai, levanta-se muito rapidamente para ninguém ver: é o que se ergue do fogo. Nunca recebeu postais de férias nem telegramas com notícias amargas. Adília podia ser uma Deusa: tem um discurso sonhador e escreve poemas contra o tempo o tempo. Desde criança que ela deseja ser uma Sereia coberta de pérolas, mas a Ria Formosa ainda não lhe fez a vontade. Em seu redor, o gelo vai derretendo. Adília, essa palavra nocturna e negra. É fundadora da Sociedade dos Espaços Vazios Entre As Palavras.

BOM APETITE!

 "Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (…)”
 

(Fernando Pessoa, excerto do poema Tabacaria, 1928)

 

Foto de Adília César, Faro


     A noite quente entranhava-se na pele e quase ardia. Ela, a mulher cansada e submersa no tédio, sonhava por dentro do sonho, sem querer acordar. O cenário parecia desconhecido e surreal, como uma casa torta ou uma antologia de percepções de medo e inquietação. As paredes rachadas, o chão inclinado, o tecto absolutamente inacessível. Tropeçava frequentemente no mesmo sofá atafulhado de panos: lençóis, almofadas, roupa de homem. Ao fundo do corredor, uma porta feita de ossos. Ela tinha uma respiração ofegante de quase asfixia. Os dentes rangiam, demonstrando uma raiva contida ao longo dos dias de férias. De vez em quando, as mãos e os pés pareciam avisar sobre qualquer coisa prestes a acontecer, um perigo iminente a latejar. O sonho tão lúcido. A porta de ossos abriu-se lentamente, a ranger, como nos filmes de terror em que se caminha pelas ruas e se tenta estabelecer conversas filosóficas com as pessoas sobre os problemas graves que assolam as nossas vidas. Pode ser um autêntico pesadelo.

     No sonho dentro do sonho o tempo regressou ao fim da tarde do dia anterior. O tempo a fazer o seu trabalho: presente, passado e sonho. Ela tinha uma perfeita consciência deste momento, único e intransmissível, e acalmou-se de uma forma pré-estabelecida, como sempre acontece quando a sensação da realidade não muda, mas ao mesmo tempo é absolutamente necessário mudá-la. Ou seja, antes da transição para a vigília, ela teria de encontrar a solução para o seu problema – a presença dele. Ele, o primo chegado à sua casa no Algarve, há precisamente um mês. Um mês. Todos os anos o primo telefonava a dizer quando chegava, geralmente com um dia de antecedência. Chegava e instalava-se no sofá da sala. A casa dela transformava-se num acampamento de verão. Outra vez.

     Mas este era um dia muito especial – o último dia de férias de ambos (que alívio para ela…). Para assinalar a data, o primo tinha decidido fazer o jantar, uma perna de perú estufada, mas ela não a tinha tirado do congelador, para implicar, assim como uma pequena vingança. Ele não se irritou. Na verdade, nada parecia contribuir para lhe estragar as férias – aqueles dias todos de agosto passados na praia, a banhos de sol e de mar, com cama e comida de graça, roupa lavada, duches, aftershave, refrescos e festas de verão. O primo iniciou os procedimentos necessários ao único gesto de boa vontade de que era capaz, assim como uma manifestação de agradecimento pelas maravilhosas férias que a prima lhe tinha proporcionado. Entre parêntesis, ela pensou que ele podia ter comprado uma perna de cabrito ou borrego, sempre era mais gourmet, mas enfim, ficou-se pela perna vulgar de perú talvez para não gastar demasiado: bem sabemos que a vida custa a todos, principalmente aos primos nortenhos que não gastam um tostão em férias no Algarve. Ele dispôs todos os ingredientes em cima da pequena bancada, bem alinhados, como uma linha de montagem. Azeite, cebola, alho, pimentão, cenoura, louro, sal. E a perna de perú, ainda congelada. De faca em riste, o primo cortava a cebola e o alho, para fazer o refogado, bem regado com o azeite e decorado com a cenoura e a folha de louro. Tens a mania que és bom cozinheiro, pensou ela. Fazes sempre isto, cozinhas pacientemente, sujas a cozinha toda, para eu depois limpar. O primo falava ininterruptamente e ela fazia de conta que ouvia, sem responder, deambulando pela cozinha de ossos, enquanto sonhava tantas e ainda outras maneiras de o calar.

    Pitéu. Ele estava sempre a usar esta palavra. Que palavra horrível. Parecia um esgar de arrogância. Continuava a falar, explicando pela milésima vez como se cozinhava uma bela perna de perú, mas nem lhe distinguia as palavras, só via o abrir e o fechar da boca, parecia agora um peixe fora de água.

     Prima, passa-me aí outra cenoura!

     Ela levantou-se com alguma dificuldade. Tantas férias passadas com o primo, ano após ano. Que tédio, que cansaço, que raiva. O sonho pesava dentro do sonho. Abriu a porta do frigorífico e a frescura alertou-a para a vida toda que tinha à sua frente, em todos os verões do futuro. Voltou-se lentamente e viu a perna de perú ainda meio congelada, forte, como uma arma carregada de possibilidades criminosas. Pegou nela com todas as mãos de que dispunha – eram mais de mil – e levantou-a no ar, bem alto até à ao lugar onde os pássaros voam, e aterrou-a na cabeça dele. Uma pancada. O primo tremeu um pouco como a gelatina no pires, caiu lentamente e ficou dobrado naquela posição estranha da morte, com os olhos abertos. De seguida, a prima lavou a perna de perú, colocou-a no tacho e polvilhou-a com um pouco de sal, não muito, no verão anterior tinha ficado salgada. Ficou a olhar para a carne até que ficou bem passada, durante duas horas. Depois, apagou o lume, tapou o tacho e ligou ao 112, para avisar que a sua casa tinha sido palco de um acidente fatal. Acordou com as sirenes da ambulância e da polícia, com a sensação real de que este seria o melhor verão da sua vida: aventureiro, misterioso, sibilino. Dramático. Os olhos abertos do primo diziam exactamente o mesmo. Bom apetite, primo!

     Serenamente, ela, a prima, a mulher rejuvenescida, abriu a porta às autoridades e reiniciou o sistema de dependência do tabaco, acendendo o primeiro cigarro da sua vida: na verdade, ela nunca tinha fumado, mas era completamente viciada em nicotina, naquele sonho dentro do sonho.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_402

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