sábado, 14 de janeiro de 2023

PERFIL - ARVO PÄRT

Tintinnabuli[i], o murmúrio infinito do mundo

Tocas uma harpa de ideias

que emite a autêntica filosofia.

 

Fernando Esteves Pinto, Um estudo do humano, Edições Húmus, 2021

 

Arvo Pärt, foto de Kaupo Kikkas

Há palavras que perderam o significado. Ou simplesmente se desgastaram na poeira dos dias, por força de repetições inábeis e exaustivas. Por exemplo, é comum aceitar que a palavra "silêncio" significa "cessação de som". Contudo, já toda a gente experimentou a sensação de uma espécie de barulho dentro da cabeça, ao tentar atingir a perspectiva utópica de completa ausência de ruído. Assim, nunca há silêncio absoluto. Pelo contrário, é audível um murmúrio infinito – a voz do mundo, um caos melódico de sons humanos, da natureza e dos objectos: máquinas de fazer ruído. Por vezes, percebe-se a fala de um anjo, como um instrumento musical que dita as regras do dia que há-de vir. E, muito raramente, uma voz pode assemelhar-se à profundidade espiritual da condição humana.

Desde criança que Arvo Pärt escolhera uma melodia que ninguém ouvira antes. Ouviu-a durante muito tempo na sua cabeça, sem saber o que fazer com aquilo. Primeiro o caos, depois a passada lenta e meditativa até que a verdade aparecesse em forma de som. Mas não havia nome para nomear essa descoberta intencional e foi necessário recorrer à substância poética para resolver a questão: tintinnabuli, o caminho percorrido onde a procura de respostas faz surgir traços de uma coisa perfeita e tudo o que não é importante desaparece. Nas palavras de Arvo Pärt, a sua música poderia comparar-se à luz branca que compõe todas as cores; somente um prisma pode dividir as cores e fazê-las aparecer; esse prisma pode ser o espírito do ouvinte (do ensaio White Light de Hermann Conen).

Aspirar ao divino não é uma circunstância ocasional de Arvo Pärt: é, pelo contrário, a forma como respira, lenta e meditativa. Sinos intermitentes e resplandecentes, o tilintar da harmonia musical numa composição inspirada no canto gregoriano. Do silêncio ao murmúrio utópico. Do silêncio a algo que eu não imaginava sequer que existisse. O estético divino, portanto.

Arvo Pärt ficará para sempre ligado à música erudita e religiosa, não distanciada, contudo, do povo eslavo, que o compreende e admira como nenhum outro. Escutá-lo é definir a transcendência como uma possibilidade. O divino, o etéreo, a invocação das causas humanas mais actuais e urgentes. Apesar de tão especial e peculiar (a sua música é distinta da obra musical de qualquer outro compositor), remetem-se os sons tintinnabuli para a existência de um sentido universal da humanidade como algo muito amplo e eterno. No entanto, Arvo Pärt é um ser que se metamorfoseou ao longo da vida, sempre de olhos postos em algo mais elevado que a própria condição humana. Ele, a sua própria condição de homem imperfeito e falível, a sua música e o espírito triunfal da arte ao alcance de todos.

Arvo Pärt é o compositor vivo mais tocado do mundo em 2022, de acordo com o banco de dados de eventos de música clássica Bachtrack (Bachtrack calcula uma série de estatísticas relativas a cada ano que mostram o número de vezes que a obra de cada compositor foi executada, juntamente com informações sobre os maestros, orquestras e obras individuais mais executadas). É considerado o mais conceituado compositor contemporâneo da actualidade, tendo obtido numerosos prémios, galardões e homenagens. Nasceu na Estónia em 1935.

 Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_370



[i] Tintinnabuli (singular. tintinnabulum; do latim tintinnabulum, “um sino”) é um estilo de composição criado pelo compositor Arvo Pärt. Ele diz: “Tintinnabuli é a conexão matematicamente exacta de uma linha para a outra… tintinnabuli é a regra onde a melodia e o acompanhamento [a voz que a acompanha]… é um. Um e um, é um – não são dois. Este é o segredo desta técnica.” (excerto de uma conversa entre Arvo Pärt e Anthony Pitts gravada para a BBC Radio 3 na Royal Academy of Music, Londres, 29 de março de 2000).

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA