sábado, 25 de dezembro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [28] por Adília César

Bem fazes tu! Colhes apenas a flor das cousas que pode ser roxa e melancólica ou amarela e festiva, mas é sempre uma flor; enquanto nós nos dobramos a analisar as raízes que são negras, que são feias, e vêm sujas de terra rude em que mergulham e sugam.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Foto por Adília César

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É NATAL

outra vez. Um certo tédio ou talvez melancolia. As cores são sempre as mesmas das de outros Natais, mas são também diferentes. Este Natal não tem cor ou então é uma sombra doentia, um papagaio lançado ao céu, feito de papel de embrulho e fitas. Olhamos para ele e vemos o que nunca deveríamos ter visto: a decadência da civilização. O papagaio de papel arrasta com ele máscaras, gel desinfectante, testes antigénio e PCR, zaragatoas e uma multidão de pequenas criaturas bem embrulhadas em SARS-CoV-2. A febre. Decididamente, este papagaio não se presta a brincadeiras, identifica-se mais com uma arma de extermínio humano.


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É NATAL

outra vez. Um certo receio ou talvez tristeza. Os hábitos são sempre os mesmos: comprar presentes inúteis, comer o pobre peru, doces até enjoar e beber para esquecer. Olhamos para a mesa da Consoada e os restos que sobram sabem a saudade. Já houve pelo menos um Natal Feliz? Sim, houve. Agora, não sei. O peru morreu e a alegria dura pouco na lâmpada que repentinamente se funde. No escuro, não sabemos onde pousar a inquietação.

 

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A MÃE

é uma velhinha de cabelos brancos. Está cansada de viver. Continua a rezar todos os dias, mas a convicção já não é a mesma: esta pandemia é o diabo!, diz ela. As cataratas reorganizam-se nas suas pupilas para que os olhos não desmascarem a face da civilização, que ela tão bem conhecia noutros tempos menos ambíguos. A mãe queria estar sozinha: isto já não tem volta a dar… olha filha, já que vens jantar comigo, traz-me um bolo-rainha daqueles com frutos secos, que as frutas cristalizadas do bolo-rei dão-me náuseas.

 

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O MENINO JESUS

não vai ser adorado, este ano. Os ajuntamentos de pessoas estão proibidos e existe o perigo real de infectarmos o recém-nascido com COVID-19 ou então a criança poderá infectarnos a nós. A inocência da infância deveria ter outro nome, como “estrela cadente” ou “mistério”. Assim, é melhor guardarmos as devidas distâncias neste Natal, mais uma vez (até quando?), de acordo com este miserabilismo de sermos agentes transmissores de uma doença real à escala global.

 

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MAS

e a flor? São capazes de ver a flor desta coisa recorrente a que chamamos Natal? A estrela da esperança que brilha sem esmorecer, o sorriso dos meus netos durante o ritual de abrir as prendas, as maravilhosas broas da Dona Angélica… Ao longe, ouve-se distintamente o som do sino a apregoar as horas natalícias. E recebo um telefonema: o jantar de Natal está cancelado porque uma das filhas está infectada. O resto da família fecha-se nas suas casas e todos se preparam para serem testados no dia seguinte. Enquanto esperam, esgaravatam na terra suja à procura das raízes da vida que tinham antes. Antes? Antes do quê?

 

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SINTO O ABRAÇO

invisível das pessoas nos votos de Boas Festas que me dirigem. Respondo o que se espera que eu responda e calo o que não se espera que eu diga. Tanto num caso como no outro, o discurso é indelével e ao mesmo tempo efémero. No final da conversa de circunstância dizemos: Com muita saúde! E a expressão de sentido duvidoso não se vai embora, fica por ali a pairar no tempo até que apareça o maldito arco-íris. Apesar de tudo, a esperança também pode ser uma doença, ao não aceitarmos o que ainda está para vir, como se ainda não tivéssemos percebido que as consequências sucedem os actos. O planeta está doente, os homens e as mulheres são seres corrompidos, e só o Amor não basta. Mas é Natal e nasceu um Menino. As crianças transformam-se em flores, unidas desde as raízes, porque sabem que são a salvação do mundo.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_320

sábado, 11 de dezembro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [27] por Adília César

Tudo esqueceu? Não. Desta difusa impressão, algumas imagens começam logo a destacar, muito precisas, muito claras, dando pela recordação o mesmo encanto que deram pela contemplação.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)



10ª edição London Design Festival, 2012 - "Mimicry Chairs", Oki Sato

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 A NOITE

parece um sonho. Uma certa leveza ou talvez transparência. A minha lucidez atraiçoa-me. Não sei do meu corpo, não reconheço a posição que ele ocupa, não assimilo a força da gravidade que o segura e o faz tombar. Há uma energia subtilmente enjoativa a povoar o ambiente do quarto. A um canto, surge a figura densa e perturbadora de uma construção humana que se vai desmoronando à medida que se constrói, que se reconstrói, digo. É um paradoxo sentimental de pensamentos sem nexo, de palavras sem ordem gramatical, como as ruínas que se sobrepõem de forma adversa a elas mesmas. A linguagem de circunstância não implica qualquer concordância moral com o que está certo ou errado, naquele preciso momento. E, todavia, faz todo o sentido que assim seja.

 

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NAQUELE PRECISO MOMENTO,

o silêncio da noite convoca o meu pensamento. Dormir não é uma opção. Levanto-me da cama, mas as forças do sangue abandonam-me e tento alcançar a mão gigantesca da humanidade que me poderá salvar da queda. Mas não se faz da fraqueza força, não encontro o ponto de equilíbrio inerente à minha frágil condição e apenas consigo apoiar-me na ideia matriz de uma apoteótica projecção emocional: vejo a cadeira e penso a cadeira, em toda a sua magnificência. Tento visualizar o objecto-cadeira e a sua imagem, a energia desses múltiplos significados como um caleidoscópio infinito de fraquezas e forças em espiral infinita. Talvez assim consiga chegar até ela, talvez assim consiga edificar uma construção não desmoronada.

 

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O QUE CHEGA

é uma linha contínua de angústia, como obscuras pinceladas de aguarela. De que cor? Não sei responder. Sei que a imagem de uma cadeira não é “a cadeira”, é apenas uma representação do objecto que entendo por “cadeira”. Compreendo que a cadeira e a sua imagem não podem coexistir porque são duas coisas diferentes que não partilham o mesmo plano. Mas uma cadeira nem sempre é uma cadeira e eu poderia, se quisesse, dar-lhe outro nome, como “abraço” ou “poço”. Podia ser, por exemplo, uma intenção de lugar ideal para o descanso, uma afonia do corpo que luta contra a gravidade. Ou um objecto que leio com o corpo todo: este livro aberto. A matéria securizante que envolve a minha substância, uma energia de contenção da minha própria energia. A fronteira de uma essência cósmica.

 

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IMAGINO

que a cadeira está ali à minha espera, palpável e tridimensional. Comunicativa. A cadeira fala uma linguagem reconfortante, macia; espera uma resposta que deve ser física – quer sentir o peso do meu corpo através do acto de me sentar – mas o que lhe responde é o meu alívio, o alívio do meu cansaço que agora descansa. A cadeira sente o meu sentimento de satisfação. A cadeira é um objecto que sente o que eu sinto. Não reage, mas aceita a minha presença. A cadeira onde me sento não é apenas uma cadeira. É o “outro” que me acolhe na paisagem delirante do meu silêncio cansado. Estou a dormir ou a sonhar?

 

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EU E A CADEIRA

imbuídas de um sentimento mútuo e fraterno. A vida pode ser assim tão simples? De tão profundamente humano, ambas somos matéria viva que se funde numa planície onde corre um rio de sangue a transbordar as margens, indefinidamente, aguarelando a serenidade metafísica do silêncio. É claramente um sonho, tão real como a cadeira onde me sento. Ao canto do quarto, recordo e contemplo toda a minha existência passada e irreal. Lá fora, o futuro. Afinal, estou bem acordada e contemplo a vida que ainda irá passar por mim.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_318

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA