sábado, 22 de outubro de 2022

PERFIL - Maria Judite de Carvalho

- Tanta gente, Judite - 


Plano Nacional de Leitura, pnl.gov.pt
 

Este tempo

No corpo e no espírito não existem espaços vazios. Tudo é preenchimento do passado, memória, tempo. Há instantes que vêm ao de cima, como azeite na água. Sujam, ficam por ali a contaminar a pureza do branco e não se misturam com circunstâncias atenuantes. Na língua deposita-se o veneno, o sal, o rumor e a transparência dos sentidos enquanto nas rugas do rosto ainda dorme a tua infância.

 

Som de não dizer nada

Mas o que poderá ser mais eloquente do que uma lágrima? Rasgas a carne quando viajas para fora do teu corpo. Quando deixas a porta aberta e entra o fervor ruidoso das coisas pensadas. Uma eloquência tão calada, sem dizer uma palavra. E, todavia, isso ainda não é o silêncio. Não, isso ainda não é o silêncio: é apenas o teu umbigo a verter cascatas de lágrimas sobre o jardim do idioma humano. O silêncio é uma flor discreta.

 

As palavras e as vozes

Apenas as asas são matrizes mentais dos sonhos, fundamentos alados que se deitam na bruma, esse céu que para sempre te abandona numa inspiradora rajada de vento. Tudo é secura no deserto. O tempo, andando submisso desde a paciência dos séculos, estremece perante a visão de já não haver rio nem mar. E nós, talhados na pedra em corpo presente, somos ornamentos da fonte dos desejos recolhidos no espaço selado e separados da tormenta, pelos reposteiros altos como cordilheiras. Estamos tão presos aos umbigos das horas num orifício onde o chão se abriu em sequelas de pasmo e redundância. Tanta gente, Judite. Tantas vozes, tantas palavras dementes, deitadas nas camas das enfermarias da civilização. E sobretudo, ainda não somos capazes de voar ou sequer de matar a nossa obstinada sede.

 

E tempo?

Vai a indiferença andando sobre quatro patas. Vai a demagogia crescendo a um ritmo alucinante. Sentes que enlouqueces nas margens da pele. Sempre esta espécie de pele como substância de fronteira nos espíritos em combustão comovida, aura no limite da imagem inscrita, na vontade de querer voltar a entrar por dentro das retinas. Os olhos tão abertos. Outra vez as sílabas incendiadas de dentro para fora. A solidão exibe um encantador retrato de menina: é a matriz do tempo à procura de onde fazer o corte mais límpido, a cicatriz mais invisível, a dor mais efémera. No início de cada palavra, o peito aberto do fogo.

 

As frases mortais

És ainda tu, galgando espaços inquietos, adiando a melancolia. Não vais conseguir, digo. Voltas a página, enquanto eu seguro, com firmeza, o feminino escrito. A angústia desvia-se, deixa-te passar, mas segue-te de tão perto. E tu pensas que a luz ilustra o corpo das mulheres martirizadas, torna-as visíveis na escuridão. Voltas à página de onde nunca quiseste sair. Os olhos tão fechados. Os dedos a desenhar a vida possível, a eternidade. A menina desapareceu no sabor agridoce das palavras: parece que é merecida a sujeição à derrota. Afinal, há frases que matam. A tua cabeça permanece ilegível na sentença de paz forçada. Perdoa-me este dia que te imponho, esta comemoração sem brilho, este dia de ilusão fora da vida.

 

A escrita certeira da angústia feminina

O corpo da linguagem é o único espaço que habitas: esperas ainda um espírito do mundo que se escreva com outro alfabeto a disparar flechas através de um arco esticado até ao limite do impossível. Quando existem feridas antigas não há tempo para a cura e moldam-se arco-íris perfeitos para as diluir em poesia. Tanta gente, Judite. Por exemplo, Adília.

 

Adília César

in Algarve Informativo nº 360 (2022) https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_360

in Antologia "Água Silêncio Sede" (2021, Poética Edições)


Nota da autora:

Este texto resulta de um diálogo entre a escritora Maria Judite de Carvalho (1921-1998) e Adília César. Os itálicos transcrevem expressões da autoria de MJC retiradas do volume V das suas Obras Completas (Este Tempo, Seta Despedida, A Flor Que Havia na Água Parada, Havemos de Rir! – Minotauro, Setembro de 2019). 



domingo, 9 de outubro de 2022

PERFIL - António Gancho

  - O gancho poético que fere e nos segura -

 

«Quando desaparecer/ hei-de pedir à noite/ que me consuma com ela/

que me devaste a alma/ não quero mais/ quero desaparecer na noite/

e só de noite consumir-me» (p. 139).

 

António Gancho (1940-2005), in O Ar da Manhã, 1995

 

António Gancho

     Ele tinha umas «mãos curvas de milagre», molhadas de nervosismo, mãos-delírio, mãos-pensamento. Que guardava António Gancho nas mãos que tão cedo deixaram de escrever? Via-se que ele – o rapaz de vinte anos – estava ali; mas ele – o homem de sessenta e cinco anos – não estava realmente ali, enquanto entontecíamos nos seus olhos muito azuis, nas suas mãos mergulhadas no tempo todo de uma vida: após uma tentativa de suicídio, aos 18 anos, António Gancho foi declarado esquizofrénico e acabou por passar trinta e oito anos em instituições psiquiátricas até à sua morte na Casa do Telhal em Sintra. Ficou assim a sua vida suspensa, por vontade do pai e dos médicos, pouco depois do episódio atabalhoado da tentativa de pôr fim à vida com o fio do telefone. Vida ferida pelos ganchos dos dias, vida atada e desfeita em fios de linguagem. Uns e outros – os ganchos e os fios – sempre presentes na escrita e na ausência da própria escrita, nos poemas aniquilados pela dificuldade de transmutação de todas as coisas – as horas que passam tão sem passar, a materialidade sonora dos versos mais lúdicos e surrealistas, a totalização do homem na natureza, a mulher que se ama e se erotiza, o amor puro e duro no acto sexual transcendente; e a poesia, a sua função e o processo maravilhoso da criação poética, ao considerar que quando «A poesia nasce e faz-se aqui neste fazer-se poesia / (…) faz o homem o ser absoluto por natureza» (p. 9).

     António Gancho imaginava uma comunhão total na origem das coisas, o sol e o poema feitos de luz. É luminoso o sol nascente a cada dia; e o mesmo poder brilhante é dado a cada poema escrito na folha de papel: «Nasce o sol e nasce o poema/ e com esta simultaneidade / o que o poeta significa é que a sua arte é luz / esta manhã o poema nasce no ventre do papel e nasce o Sol no horizonte do papel» (p. 38). Parecia caminhar no sentido inverso da prisão em que se encontrava há tanto tempo, na procura de uma alusão poética que desse sentido a tudo o que tinha e não tinha acontecido na sua vida. Uma vida em pausa, à espera de qualquer coisa que nunca chegou. E para isso, o poeta escreve e “abre” aquilo que tem ao seu alcance, distanciando-se da sua esquizofrenia, o “tu” demolidor:


«Tinhas uma sensação absoluta de estares aberto com o espaço duma grade/ tinhas um ser-te grave o olhar para fora do dia/ inaugurado de verde/ Que se te abrisse a letra/ era desejo de teres fonemas no nada de uma mão aberta/ sem um rogar de branco./ O Sol aberto em sentido de alusão a uma palavra de si/ era nada de o poente estar em sentido inverso.» (p. 54)


     António Luís Valente Gancho nasceu em Évora em 1940. Foi para Lisboa aos 16 anos com a família, onde descobriu o Café Gelo, no Rossio, hoje desaparecido, mas que então era o ponto de encontro de um grupo surrealista, e que veio a ter grande impacto na sua escrita. É pela mão do amigo e poeta Herberto Helder que alguns poemas de António Gancho são publicados pela primeira vez, numa antologia editada em 1985 pela Assírio & Alvim: Edoi Lelia Doura das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa. Em 1995, a mesma editora publicou o volume O Ar da Manhã, reunindo quatro livros: O Ar da ManhãGaio do EspíritoPoesia Prometida e Poemas Digitais; e ainda o conto As Dioptrias de Elisa (1996).

     E depois, nada. Apesar destas publicações, parece ter permanecido à margem da poesia institucional portuguesa. E hoje, será um poeta esquecido? Na verdade, a partir de 1986 que António Gancho deixou de escrever poemas. Quantas palavras são precisas para imortalizar um homem? Muitas, decerto. Mas talvez bastem algumas dezenas de poemas, para considerar o frágil António Gancho como o ar intensamente poético que ainda perfuma as nossas manhãs de hoje:


«Faço um poema e nasce uma cidade/ invento o conteúdo geográfico das coisas. (…) Ah, se onde ponho a imaginação nasce um lírio/ derramem-me a história duma amante sobre a cabeça/ pois sou o amante duma perversão absoluta.» (p. 41)


     Esta era a obsessão e o poder do poeta António Gancho, o epicentro desconhecido do fio de tudo. O amor? Amar o quê? Uma mulher? Tinhas de saber o que amas, tinhas de saber quem amas e quem te ama a ti, António. Disseste que nenhuma mulher te amou. Mas casaste-te com esse lugar onde te encerraram e deitaste-te no seu coração de colmeia. Alvéolo antigo, prometido favo de mel com cura de fel. Fica atento, há uma grande excepção à regra: podes comer todo este mel, todo esse fel, sem nunca conheceres o amor. Enquanto vivias aí para sempre, à espera de um final feliz, querias ser o rei, mas morreste antes de fundirem o ouro com que seria feita a tua coroa. Não sabes das abelhas, as escravas que te amavam, as palavras que pairavam na tua cabeça, os bichos da tua esquizofrenia. Mandaste todas as escravas embora, obedientes, a zumbir, de cada vez que engolias os comprimidos que te ofereciam. E eu, quando leio os teus poemas, lavo os cabelos com a pureza do mel e encosto o espírito à rede desenhada com ouro líquido. Funde-se com o pensamento nas raízes de dor. Fecunda-se no seu súbito significado, os súbitos dos dedos hirtos. A dor é mais eterna do que o amor escondido numa grinalda velha cheia de pó. As mulheres não são princesas encantadas, não te cobrem com colchas macias de veludo. As normas gerais foram escritas pelos insectos presos no mel e o sol implodiu, levou com ele tudo o que sabia sobre a possibilidade do amor. A nudez, essa janela falsa sobre a noite tão escura. O erotismo, essa abstracta impossibilidade. Não és capaz de fechar o postigo, não consegues perceber a excepção. Vê que as abelhas inúteis, indecentes, já não voltam. Retiraram o ouro às tuas veias, esse metal omnipresente, alucinatório, cansativo e vil. Deixaram-te vazio, de coração apagado, carregado de ferrões alucinatórios. Pego nele com as minhas mãos curvas de milagre, queres? Isto é que é um coração cheio de amor? Entupido com bolas de pão duro? No enterro das nuvens ninguém tem fome, para que serve o teu corpo se as tuas mãos estão paralisadas, se os teus dedos são feitos de pó? Mas deixa-me ouvir as abelhas que dançam sobre os teus olhos azulinos de ninguém e que declamam os poemas que nunca chegaste a escrever. Toda a humanidade presa por ganchos poéticos nas nossas mãos curvas de milagre. Anda António, não engulas mais comprimidos, que te fazem mal ao coração. Vamos comer bolinhos e beber copos de leite.

     Dizes que sim, comes bolinhos e bebes copos de leite, mas tudo ficou por dizer, pois deixaste de escrever poemas há muito tempo. A tua vida foi uma narrativa intensa, embora desviada da plenitude. Na última linha esperava-se a outra metade da história: acontecimentos apenas habitáveis, mas nunca deveras vividos. E por fim, existindo um território comum, uma partitura criativa e fecunda, como se o silêncio da contemplação fosse a viagem eterna de regresso às nossas origens, o teu coração parou. Assim o tempo a passar é um grito azul clarinho: guarda-se em qualquer lugar despercebido, como uma marca d’água sem consequências. A perplexidade é sentimento quente que arrefece abruptamente no colo, sobre as mãos. Faz-se tarde. É sempre tarde quando o silêncio se funde com as nossas gargantas. É demasiado tarde quando o gancho nos rasga o pensamento e os milagres deixam de acontecer. Dizes que nada disso tem importância, que em redor daquela última noite ainda nasciam ruídos de boca e outros caminhos; mas não, afinal apenas tinhas voz no tempo em que as grades derretiam e os muros desmoronavam na boca da liberdade. Morreste-nos. Faz tanto frio nesta falha da memória sobre o que foi a tua vida. E ninguém sabe o que fazer com esse imenso frio do esquecimento.




Adília César

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA