sábado, 18 de janeiro de 2020

DE TÃO AZUL


Afinal antigamente não havia palavra para azul,/ cor a que os olhos ainda não se tinham habituado:/ o céu era de um tom indistinguível,/ o mar vinho escuro. (…) Pois só damos nomes às coisas que encontramos/ e sentimos ao rés da realidade/ como a ave excêntrica que nos bica os calcanhares.

Catarina Costa, in CHIAROSCURO


"O Naufrágio" de J. M. W. Turner (1775-1851)

A história das cores deve ser uma história social das cores, uma vez que é a sociedade de cada época que faz a cor, que a define e lhe dá sentido – o espectáculo do azul na natureza, o modo como a biologia do ser humano percepciona o azul, mas, sobretudo, práticas, códigos, sistemas, mutações, desaparecimentos, inovações e fusões que afectam todos os aspectos da cor azul historicamente observáveis, ou seja, todas as implicações sociais do azul. Ah, o imenso céu (azul?) num claro dia de uma qualquer amena estação do ano… Sendo um fenómeno natural, é também uma construção cultural complexa e ainda se assume como raridade do ponto de vista dos historiadores, enquanto “objecto histórico de pleno direito” – diz-nos Marcel Pastoureau. Existem várias razões para o fenómeno, que se prendem com dificuldades documentais, metodológicas e epistemológicas.

Estamos perante um terreno transdocumental e transdisciplinar, ou melhor, estamos perante um problema de definição: se pesquisarmos textos antigos como a Odisseia, a Bíblia, o Alcorão, as sagas islandesas, conseguimos encontrar amplas descrições do céu e do mar, que nunca referem, no entanto, o termo azul propriamente dito, utilizando em seu lugar o cor-de-vinho, o vermelho, o preto, o branco, o verde… mas nunca o azul, que parece ter sido a última cor a aparecer em todas as línguas conhecidas. A cor azul do céu e do mar foi alvo de desinteresse e desconfiança, do Neolítico até à Baixa Idade Média. E na Roma Antiga, ter olhos azuis era uma espécie de deficiência física… O excerto do poema de Catarina Costa em epígrafe abre a perplexidade – a palavra azul não existia porque não havia a correspondência com objectos concretos, definidos e visíveis?

YInMn, o novo tom de azul

Presentemente, o azul é a cor preferida de cerca de 45% de pessoas do mundo inteiro, com 111 tons diferentes nomeados, sendo que um desses tons – o novíssimo YlmNm Blue – foi criado em laboratório, acidentalmente, em 2016. Todos os tons de azul são frios e estão associados a diferentes estados emocionais e/ou espirituais: frieza, paz, depressão, ordem, monotonia, harmonia, melancolia, tranquilidade, tristeza, paciência, amabilidade, confiança. E também é uma cor ligada à ciência e tecnologia, inteligência, liberdade e progresso. Não será por acaso que as redes sociais Facebook, Twitter, Tumblr, Instagram, Linked in têm a cor azul no seu logo ou nas suas interfaces, assim como as marcas IBM, HP, Intel. Inconscientemente, a cor está ligada a tecnologia, alivia o stress e significa inteligência, liberdade e progresso; o hyperlink também tem uma explicação simples para a origem da sua cor: nas primeiras telas de computador, o azul era a cor mais escura depois do preto e uma vez consolidada esta tendência, a web também aderiu. Talvez este gosto tão enraizado pelo azul na internet seja a primeira evidência de um consciente colectivo virtual. 

Pantone, o sistema de cores mundialmente conhecido e largamente utilizado na indústria gráfica desde a década de 60, anunciou a Cor do Ano para 2020 – Classic Blue, um favorito universal, atemporal e clássico. Diz-nos Leatrice Eiseman, directora executiva do Pantone Color Institute: “Um azul evocativo sem limites do vasto e infinito céu noturno, o Pantone 19-4052 Classic Blue encoraja-nos a olhar além do óbvio para expandir o nosso pensamento; desafiando-nos a pensar mais profundamente, aumentar nossa perspectiva e abrir o fluxo de comunicação”.



Inúmeros significados atribuídos aos diferentes tons da mesma cor-luz dignificam uma ampla criatividade ligada às artes. Alguns nomes de tonalidades azuis, como por exemplo, azul-pacífico (tom de lavanda) e azul-eterno (azul intenso), correspondentes a duas espécies de rosas que ostentam pétalas nesses tons, remetem-nos para uma profusa variedade de textos criativos experimentados por poetas. Eis uma intenção de poema.

DE TÃO AZUL

Os dedos das rosas muito compridos e unidos, como membranas de asas ou barbatanas de peixes. Em ousadia de voo, as rosas caem de uma altura onde o céu está parado da cor azul-pacífico que veio do futuro da inteligência. Mergulha abruptamente nas ondas do mar, esse azul-eterno que veio do passado do esquecimento. Chamam as rosas a cor que lhes pertence, em vão. Rasgam-se as pétalas com os espinhos desse chamamento. Mas há uma rosa que ainda é azul-espanto, respira azul, canta azul. De tão azul, é uma rosa que sangra e o sangue vermelho dela em céu azul se transforma. Rosa pacífica e eterna, a fazer-se bandeira da humanidade esclarecida. De tão azul, essa paz dos teus olhos nos meus.

Adília César, Janeiro de 2020
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__232

"Azul" de O. Lolijov, para ouvir: https://youtu.be/RgCA8zTeFOQ

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

VERDADE OU MENTIRA

Princípio de linha XX

Foto de Adília César


Aqui, onde moro, o céu é sempre verdadeiro. 
Ainda assim, preciso de estar atenta para separar a verdade da mentira.

Oswaldo Golijov - 'Azul' for cello, obbligato group and orchestra (Live):


https://www.youtube.com/watch?v=RgCA8zTeFOQ

SOBREVIVÊNCIA CITADINA

Princípio de linha XIX

Foto de Adília César


Na cidade, a vida chama-se sobrevivência. Que raízes são as nossas?

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

SER PESSOA - CORPO, INTIMIDADE E PODER


Sou uma pessoa. Tenho um nome e uma família. Cumpro as regras. Sou uma cidadã igual a outros cidadãos, peças de uma grande máquina, células de um organismo universal. Mas na verdade, o que eu sou não me define a nível individual: sou apenas body count na demografia da contemporaneidade. A minha realidade foi constantemente adaptada ao plano estruturado do espaço e do tempo onde me situo, por exigência minha, dos outros, das instituições, do sistema. Um corpo responsivo às modas e costumes, aos padrões de saúde e de beleza, ao expectável de acordo com o meu género, idade e condição. Um corpo débil, adequado e corrigido neste mundo organizado e formatado.


Pintura de Guilherme Pinto*

Nasci e cresci numa casa citadina e o meu corpo foi treinado para viver entre essas paredes rectilíneas, protegido dos perigos exteriores: das alergias na Primavera, dos escaldões no Verão, da queda do cabelo no Outono, das pneumonias no Inverno; dos atropelamentos, dos raptos, dos piropos, das agressões sexuais, dos maus candidatos a marido; e de outros crimes e flagelos, tendo em conta a eminência constante dos perigos vulgares e invulgares que assolam as raparigas. Durante a minha infância, usei a casa como se fosse uma outra barriga de mãe, uma metáfora da primeira gestação, na qual o cordão umbilical permanece ligado para sempre. E a casa usou este corpo como fonte metafórica, para se alterar, ampliar, uniformizar, enquanto vivi através da interpretação dos sinais do meu corpo com base na metáfora gestacional eterna. O corpo molda-se à casa e a casa adapta-se ao corpo. A casa alimenta o corpo e o corpo comunica com ela, de modo visível e invisível. Uma zona mútua de conforto, física e psicológica. Vejo uma clareza absoluta na decoração da casa (que é como quem diz, no embelezamento da vida): a harmonia das cores, a limpeza e a eficiência energética, tudo contribui para que o meu corpo se prolongue, seco, enrugado, perplexo. No espaço e no tempo. A comunicação entre o corpo e a casa faz-se através de corredores que ligam as divisões, tornados seguros pelos acessos fechados: as janelas e as portas com trincos e fechaduras. Ferrolhos e chaves. Cortinas. Se eu me fechar, tu não poderás entrar. Mas como poderei sair? Se não me permito olhar a escuridão, como posso ver a luz? Abro e fecho essas divisões da casa de acordo com os graus de intimidade exigidos pelas tarefas ou acções do meu corpo: a cozinha, a sala, o escritório, a casa de banho, o quarto… Nas cidades, já quase ninguém privilegia ou sequer possui quintal, jardim, varanda. O céu e as nuvens estão ali, mas são adereços inúteis, danos colaterais da nossa civilidade.

O meu corpo sai da casa e entra no corpo da cidade, onde percorre as artérias que se organizam como se fossem outros corpos. Circulo numa extensão do corpo – o automóvel – e vejo outros corpos a deslocarem-se em ramificações desse mesmo sistema circulatório da cidade, como os autocarros, os comboios, os barcos. Os corpos que circulam são o sangue que alimenta a cidade. E desloco-me: Loja do Cidadão, Serviços Municipalizados, Hospitais, Bancos, Supermercados, Companhias de Seguros, Finanças, Tribunais. Anexos construídos compulsivamente no grande Edifício da Burocracia. Toda a minha vida é um sistema venoso e arterial entre a casa-corpo e as instituições-corpos, uma metáfora contínua entre o privado e o público, entre o individual e o colectivo, com uma calendarização pré-exigida para tudo e todos. O Estado vigia as minhas acções e define as fronteiras de todas essas metáforas, onde somos uma grande família portuguesa, através da língua que falamos e das leis que cumprimos. Os corpos são contados pelo Serviço Nacional de Estatística: quantos somos? Quantos trabalham? Quantos se reformam? Quantos cometem crimes? Quantos são pobres? Quantos morrem por abandono e inércia moral? Somos body count: nas filas de espera, nas mesas de voto, nas bases de dados. Somos apenas um número estatístico, uma metáfora matemática da individualidade.

Estes pensamentos sócio-antropológicos exasperam-me. Está na hora de abrir uma janela para deixar entrar a luz. Quero escutar o meu coração, separar os batimentos interiores dos ruídos grotescos do coração doente da cidade. Afinal, é o poder do Amor que me move, o Amor que veio de longe e agora está a morar comigo. Amo e sou amada. Sou uma Pessoa.

Adília César, in Algarve Informativo Nº 129

domingo, 5 de janeiro de 2020

DA INOCÊNCIA QUE NÃO NOS É PERMITIDA


Existem muitas pessoas que têm uma relação
naturalmente saudável com o espaço virtual.
Para mim, a história dessas pessoas podia acabar aqui.

(in Identidade e Conflito, Fernando Esteves Pinto)


Há já alguns anos que tenho uma conta activa no Facebook. Com o tempo, senti necessidade de perceber o que é de facto esta plataforma e que tipo de sujeito sou eu na rede social, tendo em conta que parecia haver uma certa tendência para os outros pensarem que me conheciam através do que eu partilhava, ou seja, acreditavam que “eu era a mensagem” e não uma pessoa real. Também eu própria cometia o erro de imaginar que os meus interlocutores estavam do outro lado, à espera das minhas publicações, dispostos a prestar-lhes alguma atenção. Como se eu os tivesse convidado a entrar na minha casa, para conversarmos na sala, à volta de uma mesa disposta com um saboroso lanche - chá, torradas, biscoitos, compota de framboesa, talvez para aconchegar o espírito. E depois eram essas ou outras visitas que me convidavam a entrar na sua casa. Mudamos de mural ou de cronologia e transforma-se a “sala”. O “lanche” não tem o mesmo proveito. É um flash. Entramos e saímos da casa das pessoas, atravessando as portas sem as abrir, e sem pedir licença. Magia.

"Breakfast Table" de Norman Rockwell

Se é uma “rede social”, a seguinte questão central faz todo o sentido: o que se aprofunda na relação entre os “amigos” virtuais? As questões secundárias alargam a minha perplexidade: o que podemos então levar a sério e aceitar como verdadeiro? Os “gostos”? Os “comentários”? A possibilidade de alguém nos “ler” e não intervir, permanecendo incógnita? Reformulo a questão principal: o que tem realmente valor no cenário virtual? Adianto como hipótese: apenas a comunicação entre pessoas que se conhecem na vida real terá alguma importância e validade, por podermos acrescentar à mensagem virtual outros dados e informações decorrentes do convívio presencial. Só com esses a frontalidade pública fará sentido e terá consequências, tirando cada um o proveito que muito bem entender, nem que seja passar ao lado sem se manifestar.
Na verdade, aqui vale o tudo ou o nada, o disparatado, o pedagógico, o chocante, o consolador, o medíocre, o belo: gato, sangue, céu azul, desabafo, pôr-do-sol, notícia, sorriso, receita, pássaro, aforismo, mar, desabafo, rosto, poema, publicidade, flor, luta, banalidade, corpo, negócio, arte - vaidade, talento, ingenuidade, estupidez. Há uma liberdade (de expressão) que todos podem usar a seu favor e de acordo com a vontade e gosto pessoais. A forma como utilizamos a rede também é um exercício de cidadania, ao olharmos, ouvirmos e reflectirmos.

Mas também sei que há uma inocência que não nos é permitida. Este solitário jogo é uma conversa de circunstância com aquelas pessoas que entram no coração de uma qualquer sala. Entram e saem. Chá frio, torrada queimada, biscoitos duros, compota de framboesa com grunhos. As mensagens que nos passam pelos olhos são como lâmpadas intermitentes das memórias afectadas pelo esquecimento. Isto e aquilo. Ligar e desligar. Aquela mesa facebookiana é um instrumento de coordenação da falta de conteúdo. Dispõe os utensílios do diálogo com uma absoluta determinação da sua manifesta necessidade, mas falha frequentemente o alvo, por ser apenas uma frágil sintomatologia da indiferença. Não bebo nem como nada. O jejum facebookiano pode ser terapêutico para o meu equilíbrio emocional e intelectual.

“O tempo está bom e ontem também esteve”. Escrevo isto ou qualquer coisa do género. Partilho aquilo nem sei com quem. Depois calo-me. Espero. O clima (o tema) é uma ideia tumultuosa para a minha disposição mental. “O tempo não está bom”, queria dizer. Céu muito nublado com poucas ou nenhumas abertas, assim é a minha meteorologia interior. Mas quem é que quer saber o que eu sinto ou o que eu penso?! Permaneço invisível e as visitas vão-se embora sem se despedirem. Convicta explicitação de desapego.

E assim é esta paisagem sócio-virtual à qual damos tanta ou nenhuma importância: um longo desfile de gente ausente das nossas vidas.


Adília César, in Algarve Informativo Nº 127
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__127

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA