terça-feira, 7 de janeiro de 2020

SER PESSOA - CORPO, INTIMIDADE E PODER


Sou uma pessoa. Tenho um nome e uma família. Cumpro as regras. Sou uma cidadã igual a outros cidadãos, peças de uma grande máquina, células de um organismo universal. Mas na verdade, o que eu sou não me define a nível individual: sou apenas body count na demografia da contemporaneidade. A minha realidade foi constantemente adaptada ao plano estruturado do espaço e do tempo onde me situo, por exigência minha, dos outros, das instituições, do sistema. Um corpo responsivo às modas e costumes, aos padrões de saúde e de beleza, ao expectável de acordo com o meu género, idade e condição. Um corpo débil, adequado e corrigido neste mundo organizado e formatado.


Pintura de Guilherme Pinto*

Nasci e cresci numa casa citadina e o meu corpo foi treinado para viver entre essas paredes rectilíneas, protegido dos perigos exteriores: das alergias na Primavera, dos escaldões no Verão, da queda do cabelo no Outono, das pneumonias no Inverno; dos atropelamentos, dos raptos, dos piropos, das agressões sexuais, dos maus candidatos a marido; e de outros crimes e flagelos, tendo em conta a eminência constante dos perigos vulgares e invulgares que assolam as raparigas. Durante a minha infância, usei a casa como se fosse uma outra barriga de mãe, uma metáfora da primeira gestação, na qual o cordão umbilical permanece ligado para sempre. E a casa usou este corpo como fonte metafórica, para se alterar, ampliar, uniformizar, enquanto vivi através da interpretação dos sinais do meu corpo com base na metáfora gestacional eterna. O corpo molda-se à casa e a casa adapta-se ao corpo. A casa alimenta o corpo e o corpo comunica com ela, de modo visível e invisível. Uma zona mútua de conforto, física e psicológica. Vejo uma clareza absoluta na decoração da casa (que é como quem diz, no embelezamento da vida): a harmonia das cores, a limpeza e a eficiência energética, tudo contribui para que o meu corpo se prolongue, seco, enrugado, perplexo. No espaço e no tempo. A comunicação entre o corpo e a casa faz-se através de corredores que ligam as divisões, tornados seguros pelos acessos fechados: as janelas e as portas com trincos e fechaduras. Ferrolhos e chaves. Cortinas. Se eu me fechar, tu não poderás entrar. Mas como poderei sair? Se não me permito olhar a escuridão, como posso ver a luz? Abro e fecho essas divisões da casa de acordo com os graus de intimidade exigidos pelas tarefas ou acções do meu corpo: a cozinha, a sala, o escritório, a casa de banho, o quarto… Nas cidades, já quase ninguém privilegia ou sequer possui quintal, jardim, varanda. O céu e as nuvens estão ali, mas são adereços inúteis, danos colaterais da nossa civilidade.

O meu corpo sai da casa e entra no corpo da cidade, onde percorre as artérias que se organizam como se fossem outros corpos. Circulo numa extensão do corpo – o automóvel – e vejo outros corpos a deslocarem-se em ramificações desse mesmo sistema circulatório da cidade, como os autocarros, os comboios, os barcos. Os corpos que circulam são o sangue que alimenta a cidade. E desloco-me: Loja do Cidadão, Serviços Municipalizados, Hospitais, Bancos, Supermercados, Companhias de Seguros, Finanças, Tribunais. Anexos construídos compulsivamente no grande Edifício da Burocracia. Toda a minha vida é um sistema venoso e arterial entre a casa-corpo e as instituições-corpos, uma metáfora contínua entre o privado e o público, entre o individual e o colectivo, com uma calendarização pré-exigida para tudo e todos. O Estado vigia as minhas acções e define as fronteiras de todas essas metáforas, onde somos uma grande família portuguesa, através da língua que falamos e das leis que cumprimos. Os corpos são contados pelo Serviço Nacional de Estatística: quantos somos? Quantos trabalham? Quantos se reformam? Quantos cometem crimes? Quantos são pobres? Quantos morrem por abandono e inércia moral? Somos body count: nas filas de espera, nas mesas de voto, nas bases de dados. Somos apenas um número estatístico, uma metáfora matemática da individualidade.

Estes pensamentos sócio-antropológicos exasperam-me. Está na hora de abrir uma janela para deixar entrar a luz. Quero escutar o meu coração, separar os batimentos interiores dos ruídos grotescos do coração doente da cidade. Afinal, é o poder do Amor que me move, o Amor que veio de longe e agora está a morar comigo. Amo e sou amada. Sou uma Pessoa.

Adília César, in Algarve Informativo Nº 129

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