sábado, 17 de dezembro de 2022

A ARTE QUE SE RESPIRA

Texto interpretativo sobre a exposição “O ar que se respira…”, Galeria Trem/Faro, organização ARTADENTRO, 1 OUT. 2022 – 7 JAN. 2023

 

"Não se pode fazer arte ao gosto das pessoas. Mas podemos levar em consideração o dilema, a perplexidade que existe num público despreparado a apreciar arte contemporânea, a não ser que lhe seja dado um anzol para saber o que identificar. O que há para identificar está limitado, mas há a primeira [apreciação] que se pode transformar numa experiência para elas."

Beverly Pepper (1922-2020),

transcrição de excerto de entrevista incluída no documentário sobre a artista,

“Uma Passagem no Tempo”, 04/10/2022, RTP2

 


Fim de tarde, quase crepúsculo. A palavra nua parou no meu olhar obscuro, analisou a cegueira desse negrume passo a passo, de onde se opôs à espessura e à profundidade num processo de purificação mental. Respiro com dificuldade enquanto a expectativa perdura no abismo do vazio. Também as pequenas dobras da respiração esqueceram o odor das palavras porque o outono não cumpriu ainda a paz da chegada. Está demasiado calor para esta época do ano, digo, em tom de aforismo a toda a prova. Sinto o movimento insinuante dessa presença e nunca o cheiro da expectativa foi tão místico. A brisa e o vagar de todos os crepúsculos. O ar. Sente-se o ténue movimento do outono na trama dos perfumes e o mistério da sua ausência perdura no nada como uma expressão silenciosa de flores cegas a dançar no apelo da brisa. Contudo, este momento antecipatório é preenchido com dúvidas. Caminho lentamente sobre as pedras lisas da calçada, que denunciam um mundo raro e carregam figurações das imagens provisórias que guardo na minha cabeça. Outras artes, outras intenções, outros modos de delegar no produto artístico os riscos da nossa própria existência. Os pensamentos acumulam-se e a eventual narrativa começa a deformar-se. Este ar que agora respiro nunca mais será o mesmo. Há um antes e um depois. No meio, a narrativa crítica que eu escolher corre o risco de não fazer justiça à subjectividade da apreciação artística e de não conseguir ultrapassar o papel complementar da arte na vida social das pessoas, no sentido de se considerar a arte apenas como um acompanhamento agradável e facultativo.

Ainda assim, estou atenta e gosto de visitar exposições de arte. O que vejo, o que sinto, o que interpreto, o que efabulo. Pensar em arte é pensar em interpretação do objecto artístico. O observador possui um olhar apreciativo, avaliativo, interpretativo, crítico. Na verdade, o sujeito-intérprete lida com problemas estéticos complexos, quando, diante de uma obra de arte, desenvolve uma experiência estética relativa à apreciação da mesma. Uma qualquer fruição. Insisto na qualidade estética do objecto-obra, pois só assim entendo que possa ser desenvolvida uma apreciação: a obra de arte é um objecto estético e exige uma compreensão muito diferente da exigida em relação a objectos de outro tipo.

Respiro fundo, em modo de preparação para o que se segue. Sem máscara, a inspiração que recolhe o ar recorda-me a epidemia, agora camuflada com uma falsa alegria de exibirmos os rostos desnudos. É aqui. O cartaz da exposição não deixa margem para dúvidas: “O ar que se respira…”. As reticências do título comovem-me e procuro de imediato a obra que anuncia o conceito criativo da experiência que me aguarda. A ampla porta verde esconde o interior da Galeria Trem, onde um grupo de artistas se propõe reunir metaforicamente algumas propostas que incluem diversas disciplinas visuais: pintura, desenho, escultura, fotografia, projecção. Ana André, Christine Henry, Miguel Cheta, Paulo Serra, Vasco Célio e Vasco Vidigal são os seus criadores. A filosofia do acto de respirar, a perplexidade do profundamente humano, a certeza do primeiro passo a dar. A segunda porta começa a desvendar o mistério.

“O nariz e o odor”, primeiro como imagem de cartaz e depois como obra de origem, parece dominar o cenário. O odor tem cor e forma? Vasco Vidigal responde com uma espécie de sinestesia impressiva que, por ser tão quente e poderosa, é preciso aprisionar-se a pintura numa caixa de vidro emoldurada, sem possibilidade de fuga; as cores que se repetem na superfície pintada têm o ritmo do bafo do dragão. O odor perpetua-se na nossa fatalidade presente. Já “A Batalha” é uma pintura que se liberta nos movimentos das duas figuras, uma mulher e um homem que se cansaram da atracção fatal revivida continuamente na guerra da reconciliação. Eles querem e não querem. Por isso, as fronteiras são flexíveis e permissivas.

Do outro lado, Ana André exibe um grande desenho de traços minuciosos a carvão e grafite que evoca a cidade engolida pela decadência da civilização; túneis, recantos escuros, árvores contorcidas pela sede, a titularidade da inquietação. Apetece-me entrar ali para descobrir um sítio onde deitar a minha própria melancolia e esperar serenamente um fim que talvez esteja mais próximo do que imaginamos. O dia nocturno que a todos aguarda.

A “Engrenagem”, de Christine Henry, mostra-se delicadamente sobre o chão da Galeria. Procuro palavras para definir a sucessão de curvas que protagonizam a suave e sólida escultura de contraplacado de pinho. Chamo-lhe cenário de redenção. Ali, podemos assistir ao espectáculo da nossa derrota perante o infortúnio. A máquina pára e avança até que todos caiam no vazio. Mergulhar no poço central da existência talvez seja o último reduto da salvação humana, perante a inexplicável ausência de espectadores.

Ao canto, a luz projectada pelo vidro de catedral chama por mim: aí, Miguel Cheta assume que “Hoje não tenho cabeça para…”; a preocupação do que é inerente ao humano não nos deixa vacilar. O pensamento é luz de dimensões variáveis e divaga na nossa mente, alimentado pelo mistério. De repente, aquela instalação invoca a possibilidade de um planeta mais respirável. A alguns metros de distância, fixo-me na transparência simétrica de outra obra de Miguel Cheta. Aqui, o artista trabalha o vidro float termoformado e o ferro, sem necessidade de lhe dar um título, mas a minha obsessão pelas palavras encontra a pureza, a virgindade do ar nunca antes respirável. É fresco e reconfortante.

Vasco Célio propõe a obra “O Javali”, uma fotografia (impressão de jacto de tinta sobre têxtil). A besta, a vegetação, o edifício por trás. Numa primeira interpretação assumo que uma qualquer fotografia pode ser enganadora, por denunciar um momento ficcionado, ou seja, a pose. Contudo, a impressão desta imagem tem inerente uma verdade sem filtros: a construção psicológica dos seres humanos deveria privilegiar a podestade do javali numa cidade-selva. 

E, por fim, observo as seis obras (técnica mista sobre papel) de Paulo Serra. Vejo o conforto das cores que posso dar à minha melancolia, onde o negro predomina, e a inquietação de não conseguir integrar-me num mundo que parece já não me pertencer. O “não” repete-se na minha narrativa interior, mas a afirmação de um juízo estético pessoal predomina para lá da visão. O que os meus olhos vêem são cenas imersivas de um quotidiano poético assolado pelo ruído das outras imagens que não são arte, as que me acompanharam antes da entrada na Galeria e que me seguirão furiosamente depois de passar a grande porta verde por onde entrei.

Cheguei ao fim da visita e concretizei a primeira apreciação: ver, sentir, interpretar. Eu sou o olho interpretativo do espectador inexperiente. Através do ar que respiro retomo o início da pessoa que agora sou, mais experiente, menos camuflada. Sedimento, lacre, sombra, totalidade infinita: eis a cerimónia da eternidade. E, todavia, o ar que respiramos já não existe no próprio ar. E, todavia, as reticências abrangem todas as nossas súplicas de compreensão artística. Voltarei.


 Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_368

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Link de uma reportagem sobre a exposição "O ar que se respira..." na RTP1 a 10 de outubro, às 18:42h (Portugal em Directo, parte 3) com apresentação de Dina Aguiar:

https://www.facebook.com/Artadentro/videos/647370590281345/

sábado, 3 de dezembro de 2022

PERFIL - OPHELIA QUEIROZ*

«Todas as cartas de amor são ridículas» – Carta de Ophelia a Fernando Pessoa

 

«Todas as cartas de amor são ridiculas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridiculas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridiculas. As cartas de amor, se ha amor, têm de ser ridiculas. Mas, afinal, só as creaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridiculas. Quem me dera no tempo em que escrevia sem dar por isso cartas de amor ridiculas. A verdade é que hoje as minhas memórias d’essas cartas de amor é que são ridículas. (Todas as palavras esdruxulas, como os sentimentos esdruxulos, são naturalmente ridiculas.)»

 

Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, 21/10/1935



Ophelia Queiroz (1900-1991)

 

     Amo-te e quero escrever-te uma carta de amor. Mas porque a carta e o amor te pertencem e a ti se destinam, quero apenas expressar o que te apraz ouvir, o que tem a ver contigo: o sentimento de ti. Aprofundar a relação entre a pessoa que ama e a pessoa amada, em vez de aperfeiçoar uma qualquer correspondência banal entre nós. Deste modo, entenderias o meu mundo preenchido com a totalidade da tua imagem.
     Tento escrever esta carta de amor e implicitamente desejo uma resposta voluntária, vinda da tua pessoa. Mas persiste uma pequena e corrosiva agonia, como se a casa do amor fosse uma zona de angústia, as tuas angústias. A resposta talvez nunca chegue e assim, a imagem da pessoa amada que és altera-se. Há um desfazamento na realidade desse amor que me preenche. O amor, antes irreal e idealista, torna-se agora "a-real", uma fuga à percepção viva do que julgo ser a nossa realidade, através de um imaginário sentimental. Tu e as tuas pessoas. O amor, antes fantasiado - a fuga à realidade impõe-se através da fantasia - torna-se agora estéril e imutável, pela impossibilidade de existência no meu mundo que penso ser real. O meu amor, preso nas franjas da ausência da tua resposta. A essência do que sinto não existe, apenas insiste num gesto de telepatia espiritual – a realidade inatingível. 

     Hoje, ainda não sabes que te amo. Hoje, é mais um dia destruído pela tua ignorância. Amo-te e desisto de escrever esta ridícula carta de amor. Amanhã (ainda te amarei?), fantasiarei sobre a minha irrealidade amorosa, com a mesma caneta sobre o papel rasurado, um acto contínuo de insatisfação, bem no centro da tua ausência "a-real". Mudarei talvez uma palavra que, entretanto, se perdeu naquela hora diária em que os pássaros gritaram e esvoaçaram à procura de um lugar para pousar a sua frágil loucura. A minha loucura.

      Sei que nem os meus pensamentos sobre ti são uma realidade verdadeira. Porque tu não és real. Tu e os outros. As pessoas que tu és. Hoje, quem sois? O meu amor por ti e pelos outros não é verdadeiro. Real, será apenas o esquecimento. O pensamento é o regresso repetido do esquecimento. Acredito nisto porque todos os dias, à mesma hora, os pássaros esvoaçam e gritam, desesperadamente, à procura de qualquer coisa que parece não existir.  O espaço-tempo dessa penumbra que continuamente esqueço é o lugar onde vivemos quando amamos, e ao qual repetidamente regressamos. O espaço-tempo do esquecimento é o ninho do pensamento, é a cadeira onde descanso depois de escrever cartas de amor ridículas.

     Eu, aqui sentada nesta cadeira incómoda depois de quase escrever uma carta de amor. Fecho os olhos, guardo este instante sublime no meu colo e percebo que acabei de nascer. Esqueci o que era e o que escrevi antes. Não tenho passado, nasci mesmo agora, enquanto te peço que me leias. Os pássaros pousaram nos ramos da minha árvore e calaram-se. Agora, podes ouvir-me? Queres ler-me, conhecer-me melhor, descobrir o significado da minha narrativa inacabada? Vais perceber que há um instante em que o autor morre e o leitor nasce, precisamente ao mesmo tempo. Eu dou-me e tu acolhes-me no teu colo interpretativo, essa espécie de abraço. Descodificas as minhas palavras, mas eu já não estou aqui, já não sou a mesma natureza sentimental. Voltarei quanto te escrever outra carta de amor, outra complexidade ridícula. É um sacrifício quase divino, na ausência do autor-deus que valide as minhas considerações transitórias. Inútil, indecente filosofia.

     Ainda te amo, mas não sei o que isso significa. Dou-te a minha vida, a amplitude do meu último instante, mas não consigo perceber a resposta do tempo e da razão na imagem do que sinto. Tu a ler-me: lês o amor e decides escrever uma resposta. Amas-me e queres escrever-me uma ridícula carta de amor.

 

Adília César

 

*Ofélia Maria Queirós Soares (1900-1991), a única namorada conhecida de Fernando Pessoa


in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_366

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