sábado, 24 de outubro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [4] por Adília César


Ora, fazer rapidamente, e cada semana, esta simplificação concentrada da história, como o Tempo detidamente a faz através dos séculos vagarosos, é tarefa mais arquejante do que fabricar uma nobre teoria social ou desenrolar uma nova fórmula de arte.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Arte de Michał Klimczak-SHUME

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A HISTÓRIA

da humanidade está cheia de pontos de exclamação. O Bem e o Mal, Deus e o Diabo, Eu e Tu. O que parece ser nome de oposição é, afinal, complementar, deliberativo; tantas margens para a mesma ponte que tentamos atravessar durante as nossas vidas coexistentes: nós e os outros. Como reconheceríamos uma boa nova, se a malignidade não existisse na comparação das respectivas consequências das nossas acções? Como invocaríamos um qualquer deus, se queremos fugir dos diabos a todo o custo? E por fim, mas talvez o mais importante, quem sou eu sem ti, nesta trama social onde construímos lugares mentais em constante movimento, nem sempre devidamente registadas nos arquivos do tempo?

 

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A ARTE

é uma tautologia. A arte existe na arte, é arte enquanto processo e produto (criativos), está omnipresente no ser humano, perpetua-se a si mesma numa projecção eterna. A arte, nas suas diferentes manifestações, é tudo aquilo a que chamamos arte. Insisto na arte da mesma maneira que pareço ansiar por uma doença, um eczema incomodativo: sinto um ímpeto e escrevo compulsivamente, mas não quero apesar de querer. A experiência estética vai muito além do mero entretenimento, da compreensão natural de um fenómeno artístico, causando-me, por vezes, uma espécie de náusea emocional. A obsessão pela escrita perdura para lá de um frágil equilíbrio, atravessa uma fronteira que eu nem sabia que existia. Escrever porquê? Só tenho uma "não-resposta": escrevo porque tenho que escrever, escrevo porque sim. Escrevo a minha escrita e chamo-lhe arte. Porque sim.

 

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A IGNORÂNCIA

sabe que tem um destino oculto. O dorso macio e morno, os olhos pestanejantes e assombrosos, o discurso fácil e comovente. De vez em quando volta-se do avesso: crescem-lhe cornos na cabeça, saem-lhe espinhos das mãos, torna-se cega e muda. E fica muito quieta, à espera dos incautos que caem na sua armadilha. A ignorância pode surgir na forma de uma ideologia política, uma religião, um provérbio popular, mas nunca é uma distracção ou um acidente de percurso. Pelo contrário, é uma tenacidade voluntária fundamentada na incompetência colectiva e no medo face ao poder – formal ou informal – instituído. Aceitar a ignorância, sem esforço de contestação, é uma espécie de morte. É um crime.

 

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O QUOTIDIANO

é superlativo. Noticiários infindáveis, decalcados uns nos outros, fazem a história da actualidade pandémica. As imagens e os sons passam a galope, parecem dirigir-se a mim, mas passam mesmo ao lado, sem deixar rasto. Por vezes, ocorre-me a infeliz ideia de que essas notícias não conseguem comunicar comigo porque eu não sou deste mundo. Não sou daqui, ocupo este lugar por mero engano cósmico. Não, eu não posso ser daqui quando não posso ausentar-me para parte incerta, longe dos velhos que morrem entubados, sozinhos; longe das barrigas inchadas por hérnias que parecem querer explodir sem que o SNS intervenha; longe das mãos estendidas; longe das obrigações impostas. A máscara não cobre apenas a boca e o nariz: é uma outra face total deste abominável mundo novo que nos caiu em cima da cabeça. A máscara serve para ocultar a tristeza. Eu agora uso máscara e assumo esta crua consciência de que sou de um país que ainda não existe.

 Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__269

sábado, 10 de outubro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [3] por Adília César

                                                 

A rotina, numa das  suas formas mais estúpidas, 

é a experiência caturra numa primeira impressão.


Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Atelier do Pintor" de Gustave Coubert


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A CEGUEIRA

é uma forma de desver. Olhamos e somos olhados nas colecções privadas da existência. Porque é do foro essencialmente humano que se trata, a matéria emocional assume-se como sendo da maior importância. Mas os estímulos visuais cansam-nos. Quantas vezes desviamos o olhar desse instante fugidio de miséria nos outros? Vemos a pedra, a árvore, o pássaro, a nuvem. Perdemo-nos num céu tão engrandecido pelo nosso sonho que se torna impossível organizar a nitidez das estrelas que o compõem. E de repente, eis uma pequena luz que se amplia e nos ilumina: é o desconhecido à nossa frente, na rua, no noticiário, no filme, no livro, no pensamento, no espelho. É aquele desvisto vezes sem conta, dia após dia na vida sobrevivida a tanto custo: é o meu vizinho, é o meu irmão, sou eu.

 

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O ENSIMESMAMENTO

das impressões causadas pelo quotidiano esmeram-se na possibilidade infinita de pormenores. Queremos ser o outro: aquele que é mais magro, mais rico, mais belo, mais talentoso do que nós. Tornamo-nos açambarcadores de ambição. O espelho volta sempre em cada dia que, logicamente, pode ser o último, mostrando a rotina do nosso rosto que parece nunca mudar na sequência breve do tempo. Demoro-me na visão desta longa caminhada, mas volto sempre a mim mesma. Retiro a poeira dos olhos e esqueço o sol e a lua. Componho o cenário antes da desilusão.

 

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DE VEZ EM QUANDO

a vertigem assoma-se no preâmbulo da tragédia sempre anunciada. É um cenário disponível para todos os seres vivos, inertes, colocados em frente ao écran. Tombam as pálpebras sobre a indisposição passageira, mas rapidamente se abrem perante o anúncio publicitário e manipulador. O que resta? A rotina da infelicidade dos outros ou o vislumbre nítido da nossa própria bondade? Ah, se as duas coisas fossem uma só, jamais adiada para o dia seguinte… Quantos de nós seriam capazes de tal proeza?...

 

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UM LUGAR

de surpresas. Imagino o mapa que me atravessa de lés a lés. Ele percorre as minhas estradas sem pressa, os faróis acesos para aceitar o desconhecido, mas ainda assim, perde-se para me encontrar. O caminho percorrido é, em cada noite, o caminho já percorrido numa outra noite. A isto chamo de amor, verdade, inocência.

 

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NO OUTRO LADO

do mundo, um homem escuta a sua música favorita num gira-discos tão velho como ele. Este tem sido o seu despertar rotineiro desde há muito tempo. Porque haveria hoje de ser diferente? Porque a explosão bélica se aquietou, por fim, no quarto destruído onde um velho liquefeito na cama não chegou a acordar e vai dormir eternamente naquela posição impossível? Não se vê o seu sangue na imagem a preto a preto, mas sei que o vermelho existe. Invento outras posições mais humanas para devolver dignidade àquele corpo, mais próximas do rigor necessário à redenção, mas não há dignidade na morte arrancada a ferros. O velho homem não entende o meu esforço e insiste em desfazer-se, confundindo-se com as ruínas da melodia. E eu, tão inútil na minha pretensão, adormeço exactamente à mesma hora em que todo o mundo acorda. O passado, esse espaço-tempo de incompreensão, rodeia-me através de um círculo sonoro de onde não pretendo sair. No sonho, sei que não pertenço a este monstro que agora acordou. No meu sonho, sei que sou a loba destemida que rompe os limites do impossível.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__267

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA