sábado, 30 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [49] por Adília César

Vozes sombrias afirmarão de novo, em línguas ainda não faladas, que tudo se desconjunta, que a situação é medonha! Mas quando (…) se vir mais claro num céu mais limpo, reconhecer-se- á que, em suma, a humanidade deu outro passo decidido para a frente, no caminho da justiça e no caminho do saber. E assim, aos tombos e aos socos, ora destroçado, ora reflorido, o mundo avança irresistivelmente! Onde nos leva esta marcha dolorosa? Não sei – e, se conhecesse o augusto segredo, não o divulgaria na «Gazeta de Notícias». Leva-nos talvez a essas cousas sublimes e vagas anunciadas.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Mural "Olhar a Ria" - Xavier Franck, Faro

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TANTO

que ainda não sei. A cidade absorve a minha energia, fecunda o meu pensamento. Mas o que nasce é uma miscelânea insana, despojada de beleza. A cidade e os seus vícios. Percorro a calçada como se de um círculo vicioso se tratasse, a morder as acrobacias do tempo, revelando mundos irreais guardados em cada garganta. O banco de jardim é o aposento do pobre, um ninho de vida despojado. Assim se vão ouvindo os clamores do dia, no anverso e no reverso da linguagem.

 

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A LINGUAGEM

pode ser uma fraqueza humana. A mulher submersa nos nomes das coisas prefere ficar em silêncio. Ela é a silenciadora dos pecados. A coisa e o nome da coisa em círculos de nada, por entre espaços vazios de comunicação. A palavra, o nome, o arquétipo da coisa. A casa na palavra casamuda. O corpo na palavra corposentado. A casa sem a palavra sua e o corpo sem o nome seu. Resta a gigantesca e ofuscante palavra cidade que, não sendo um acaso linguístico, é, no entanto, acontecimento semântico. Por exemplo, cidadetransgressora. O cão rosna a toda a incompreensão sonora dos símbolos, enquanto o crepúsculo não chega.

 

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O AMOLADOR DE FACAS

percorre a imensa rua. Som soprado, vibração. No virar daquela esquina da memória, talvez seja o refrão da cantiga da minha infância, tão familiar, tão próxima. A subtileza ainda não inscrita no ouvido que desconhecia a catástrofe. Hoje, o drama citadino é pedra solta no chão, racha na parede, buraco no telhado, bebé recém-nascido jogado no lixo. Teatro do quotidiano. Pequeno horror que dura apenas alguns instantes. Um bebé recém-nascido jogado no lixo. Já está. E pessoas de todas as idades, predispostas ao erro, de facas em punho, por julgarem possuir essa necessidade bélica e intrusiva, esse dom trágico e miserável de difundir o mal.

 

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JÁ O AMOLADOR

de facas regressa. Morosamente regressa, para deter aquela hora entrelaçada entre nós e o crepúsculo, segurando a faca que não fere. Regressa para esculpir o meu assombro perante a indiferença do céu aberto ao calor e ao tédio. Fecho os olhos e vejo o sol que se deita em câmara lenta, recolhendo na sua garganta o ar alienado que respiro. O subtil veneno. Ainda mais lentamente, a guilhotina desce sobre a minha cabeça, dando-me o tempo necessário para a escolha, antes do fim do dia: sim ou não.

 

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DE NADA ADIANTA

a delicadeza do gesto. A lâmina tomba sobre o acaso deste episódio anónimo e abstracto. Resta um ser ainda vivo (ainda?), de quatro patas ao longo do discurso por decifrar: por exemplo, um cão, uma mulher submersa em culpa, um bebé recém-nascido abandonado no lixo. Já o amolador de facas descansa sentado no sofá, em frente da televisão. Chega por fim a noite. Afinal, o crepúsculo já não é o crepúsculo, é apenas uma palavra. Agora, o nome dela é noitedofim.

 

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A VIDA

deambula em vagas de bem e mal, numa (des)ordem convocada pela evolução humana. A finalidade das nossas acções incorpora os vazios profundos das escolhas. Estamos atulhados em escolhas impossíveis de resolver a entropia da matéria espiritual. As desordens ética e social proliferam como erva daninha, num combate corpo a corpo. A busca de uma ordem qualquer que nos apazigue, uma medida que substancie a quimera do tempo. Perdemos de vista a neguentropia das nossas vidas, a previsibilidade das nossas acções e, apesar das seculares cicatrizes, ainda não decifrámos os mapas que nos levarão até à alma do mundo. Sim ou não?


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_349

sexta-feira, 22 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [48] por Adília César


Aqui e além, repetidamente surge o lampejo fugidio de uma ironia. É o poeta que, no caminho por onde a Musa o leva, ao lado de uma coisa melancólica encontrou uma coisa risível. Nada, porém, sai de seus lábios que tenha aspereza ou amargura. Apenas uma ironia velada de doçura, que resvala, não apoia, lança, ao passar sobre uma fraqueza humana, o breve clarão de um riso amável: – e logo foge, se some, na corrente mais larga de simpatias poéticas…

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Imagem do filme "Endless Poetry"* (2016, Alejandro Jodorowsky)


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A VIDA:

silêncios, pensamentos e actos. Aqui e além. Entre uns e outros, a comunicação apresenta-se através de ecos nos vales do tempo. O tempo de uma vida é uma sucessão de perguntas e respostas, ecos propagados nos espaços que ocupamos junto dos outros. Não há palavras inconsequentes. A coisa emitida já é a resposta que merecemos, porque aquilo que recebemos tem a ver com o que acabou de ser emitido. A simplicidade deste raciocínio invoca a premissa "dar para receber". Eu acrescentaria "receber para dar", porque ninguém dá o que não tem. O equilíbrio nos relacionamentos assume-se nessa sintonia desejada de uma troca em plenitude. Só acontece às vezes e chama-se felicidade.

 

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A LITERATURA

traz-me momentos de felicidade. Não são assim tão raros como se poderia pensar à primeira vista. Por vezes, até um bom título me faz feliz. Por exemplo: “E Todavia” (livro de poesia de Ana Luísa Amaral); ou “Um homem parado na esquina do mundo” (romance de Fernando Esteves Pinto). Depois, percorrer as páginas com o ritmo necessário. Não há propriamente uma meta, mas sim a vivência de um processo muito pessoal. E, todavia, todos nós somos homens (ou mulheres) parados(as) na esquina do mundo, mais ou menos melancólicos. Aqui estamos, à espera que nos amem, à espera que nos admirem, à espera de momentos de felicidade… À espera.

 

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PARA MIM,

escrever e publicar livros nunca foi um sonho. Escrevo porque é um imperativo. Sinto que tenho algo a dizer e pretendo deixá-lo registado na biblioteca do tempo. O tempo é um espaço composto por espelhos; vamos envelhecendo e percebendo que é necessário agarrar as horas. Provavelmente, os meus leitores são uma minoria neste universo já de si austero, mas ainda assim, acredito que a minha missão é válida e persistirei nessa viagem que noutra época me pareceu impossível. Ao longo dos anos, vou reescrevendo um longo Poema dos Passos (a primeira versão deste poema consta do livro “O que se ergue do fogo”, de 2016); nessa linha de escrita descubro veredas idílicas, mãos com muitos dedos, espelhos infinitos, paisagens invertidas. E sinto a doçura das camarinhas. Mulheres submersas com tanto para dizer. Para mim, tudo isso é poesia.

 

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A PALAVRA

tem o dom de obscurecer ou de iluminar o espírito. O chiaroscuro da linguagem pertence a todos os séculos e habita o grande corpo planetário e estelar, nos corpos das coisas vivas e inertes. Sendo o silêncio a maior descoberta poética de quem se recolhe ao mundo da escrita literária, é preciso não descurar a importância do grito criador. Saber o que significa cada ímpeto e decidir o seu destino: inscrevê-lo num livro ou silenciá-lo para sempre. Contudo, a escrita com significado também pode ser silenciadora, quando damos demasiada atenção aos espaços entre as palavras. Que dizem esses intervalos que parecem vazios?

 

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A ESCRITA

não é uma arma, é a própria luta, como uma batalha emocional e metafórica que se trava interiormente. Quem escreve está a lutar contra o mundo, não há outra forma de fazer com que o acto valha a pena, mesmo que a alma seja pequena. A alma pode ampliar-se com as experiências e os pensamentos sobre o vivido e o pensado. Pode crescer com a ironia e a crítica, mas cuidado, nunca virá nada de bom da parte da amabilidade bajuladora: as falsas opiniões são o inferno dos escritores e as musas cobrem a sua nudez, com pudor, desaparecendo na escuridão da mente. Entretanto, as musas deram lugar aos tópicos, aos jogos de linguagem, à franqueza crua e descascada de qualquer estética. O que a literatura perdeu em floreados românticos ou barrocos ganhou em remates entediantes, e ler poesia ou prosa, contemporâneas, pode ser um autêntico martírio. Mas de vez em quando acontecem milagres, pois alguns autores improváveis (porque são fraquinhos) dão à estampa obras de uma tal qualidade que até parece mentira, dizem os especialistas. Eu acredito que este fenómeno de competência literária é obra das Musas, não achas ó Eça?...

 

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_348

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sábado, 16 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [47] por Adília César

Nada há mais ruidoso, e que mais vivamente se saracoteie com um brilho de lantejoulas, do que a política. Por toda essa antiga Europa real, se vêem multidões de politiquetes e de politicões enflorados, emplumados, atordoadores, cacarejando infernalmente, de crista alta.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

João Paulo, em Boa Vista, Leiria, fotografado por Paulo Cunha (Agência Lusa, julho 2022)

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A POLÍTICA

é, para mim, assim como uma espécie de prima afastada. Sei que existe, mas não a conheço bem, não sinto qualquer afinidade e até sou capaz de mudar de passeio só para não a encarar de frente e não ser obrigada a fazer conversa de circunstância. Eu bem sei que devia ser mais militante e pró-activa a nível da política social, já que é a vertente que eu poderia compreender melhor e dar algum contributo válido; devia conhecer os problemas nacionais e internacionais, emitir opiniões válidas, defender os mais fracos; devia tomar partido da esquerda, da direita ou do centro, ou ainda de outra coisa enviesada que, entretanto, parecesse fazer mais sentido num determinado momento da minha vida, tendo em conta a necessidade de encontrar um sentido digno na vida que hoje nos é oferecida. Devia, mas não tenho essa competência, apesar de aceitar, sem grande relutância, a máxima de Aristóteles: “(…) o homem é, naturalmente, um animal político (…)”. A história do mundo está, de facto, cheia de bons e de maus exemplos. A história do mundo transborda de políticos, politiquetes e politicões, dos quais vamos tendo notícias através da comunicação social. Uns são colocados em altos pedestais, aguentando estoicamente os furiosos ventos das alturas, e outros afogam-se na espuma dos acontecimentos.

 

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ASSUMIR

a minha fragilidade em relação ao ser, saber e saber-fazer do ponto de vista político, com tudo o que isso acarreta, não é fácil, apesar de perceber que a política está em tudo o que me rodeia. Apesar da minha assumida ignorância, admito que nos períodos de campanha eleitoral presto mais atenção ao que se passa, para poder tomar uma decisão de voto mais consciente e, sobretudo, mais válida para os problemas reais do meu país. Ponho uma ou outra garra de fora num comentário mais agreste, mudo de canal quando o discurso de campanha não me agrada, suspiro e volto ao princípio de tudo: não percebo nada do que se está a passar. E agora?

 

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NO CALENDÁRIO,

não há eleições à vista. Assim, a política está, para mim, em pausa, embora não completamente desligada. Assisto aos noticiários e vejo o fogo arder em praticamente todos os distritos de Portugal. O fogo arde para se fazer vida, mas ninguém o quer por perto a destruir os bens das pessoas, seja a pequena horta de Ansião, em Leiria, ou a turística Quinta do Lago, no Algarve. Queremos o fogo apagado, morto e enterrado. Creio que este é um assunto assumidamente político, se pensarmos um pouco: Estado, instituições, pessoas, bens; cidadania, educação, crime, planeamento; causas e consequências. Faz tudo parte do mesmo teatro de operações. No ano passado, foi assim. Este ano está a ser também assim. E para o ano?

 

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O QUE SE ERGUE DO FOGO

é um lugar comum, um déjà vu: o desespero dos cidadãos ameaçados pelos incêndios, os constrangimentos dos presidentes de junta, os abalos políticos dos nossos políticos de topo que repetem a ladainha que todos conhecem. Todos conhecem, mas, ainda assim, deixo-a registada, porque já a sei de cor e concordo com a lista de ser, saber e saber-fazer no que diz respeito a incêndios florestais: é preciso insistir na consciencialização social, educando a população para o uso racional do fogo; é preciso levar a cabo um estudo de fundo para um melhor planeamento da massa florestal, com a sua rede de caminhos florestais e depósitos de água; é preciso limpar as florestas e o mato; é preciso incentivar o Estado e as empresas a fazerem um melhor aproveitamento económico das florestas (como por exemplo, a biomassa); é preciso introduzir nos terrenos franjas delimitadoras de espécies de árvores com um baixo poder combustível; é preciso realizar queimas preventivas durante períodos de baixo risco de incêndio; é preciso adoptar medidas legislativas que previnam que pessoas ou empresas possam tirar benefício dos incêndios; é preciso reforçar a perseguição policial e judicial dos incendiários, bem como a vigilância destes após cumprirem pena e saírem em liberdade; é preciso oferecer recompensas a quem denuncie um incendiário criminoso; é preciso reforçar os meios de vigilância das florestas, nos períodos de alto risco de incêndio. É preciso. Então porque não se faz?

 

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PORTUGAL

é um isqueiro infinito. Não é preciso dar-lhe gás, basta dar-lhe vento e ele acende-se. Portugal é um território ofuscado por faíscas de ineficácia e cinzas de arrependimento. E eu, que não percebo nada de política, tenho vergonha dos políticos portugueses, esses politiquetes e politicões enflorados, emplumados, atordoadores, cacarejando infernalmente, de crista alta. A Europa começa aqui, com as suas políticas “europeias”. A Europa também começa aqui, com a labuta dos bravos bombeiros portugueses e, também, de muitos heróis acidentais que, de tronco nu, lutam com a arma da sua tenacidade. Portugal chama? Quem responde?


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_347

sábado, 9 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [46] por Adília César


A arte é tudo – tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)



"Cent Mil Milliards de Poèmes", Raymond Queneau, 1961

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A ARTE LITERÁRIA

confronta-se com ela própria. O que se lê está inscrito apenas nos livros ou a leitura artística pode vir de uma imagem? Ou seja, há outros idiomas que compõem as linguagens necessárias à definição de uma percepção estética. O silêncio-êxtase, por exemplo. Estou sentada no sofá, bem direita, atenta às notícias. Quero saber o estado do mundo. Naturalmente, vejo um pouco de tudo que, no final, vai-se a ver e nada. E eis que ela me olha de soslaio: bem direita, mãos depostas sobre o regaço, vestida de escuro. Os cabelos são longos, como os meus. Escuros, como os meus. O sorriso é enigmático e parece decorar o rosto de uma alma antiga. Sim, ela é uma alma antiga e se se visse ao espelho, diria: eu sou a Mona Lisa. Repito: eu sou a Mona Lisa. Eu diria que a Mona Lisa é um livro aberto. Ela é arte, literatura, poesia. E, todavia, neste preciso momento, não há palavras ali. Apenas uma resignação escura vestida à pressa, ou, se preferirem, uma imitação barata. Ainda que reconheça o carácter não-artístico da peça, o biombo com a reprodução gigantesca da figura de Mona Lisa, no canto da sala, é o meu ângulo preferido de visão. Desviar os olhos da televisão para a esquerda e ei-la, é-me oferecido todo aquele esplendor. Em redor, seis estantes altas arrumam cerca de mil e quinhentos livros.

 

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HÁ MAIS LIVROS

espalhados pelas outras divisões da casa. Na verdade, há livros por toda a parte. Eles possuem todos os ângulos da minha casa. Observam-se uns aos outros e tentam imaginar o que cada um contém. Às vezes passa-me pela cabeça uma ideia de acção invertida: imagino que os meus livros são os proprietários do espaço e eu apenas uma mera convidada de ocasião enquanto os livros também me leem. Depois de me lerem e de me conhecerem melhor, não sei o que poderá acontecer. Serei uma leitora interessante para os meus livros? Sinto alguma inquietação, que transformo rapidamente em questões de múltiplas respostas, sendo que nenhuma delas pode ser considerada absoluta.

 

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O MEU ESPÍRITO

apresenta as perguntas, mas, por enquanto, desconheço respostas satisfatórias. As perguntas continuam a surgir no horizonte, apesar do sorriso da Mona Lisa. Porque tens tantos livros? – pergunta ela. Porque cada livro lido é um mundo que nos permite criar mais mundos. – respondo eu. Ela sorri. Imediatamente, a memória atraiçoa-me e vejo as inúmeras apresentações de livros a que assisti.

 

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IRONICAMENTE,

Os livros são sempre lançados às feras, os leitores. Valha-nos o seu fraco apetite. Os leitores não comem papel e os livros escapam, incólumes, a esta espécie de predação literária. Na melhor das hipóteses, são levados para casa debaixo do braço e arrumados numa estante. De seguida, o inevitável esquecimento. Os lançamentos e as apresentações de livros têm os seus dias contados? A excessiva proliferação de obras editadas em Portugal é uma desordem cultural? As bibliotecas são bordéis de livros? As livrarias são uma espécie em vias de extinção? O caos literário que temos ao nosso dispor é uma bênção pela escolha diversificada de autores e obras que sugere ou um sacrilégio, ao não haver filtros de qualidade fidedignos para o público leigo? A cultura exibe, talvez demasiadas vezes, cenários destrutivos da própria cultura. Sendo lícito fragmentar primeiro para depois consolidar, a verdade é que Tanto sabe a Pouco. Que fazer para se ser um melhor leitor? Nada, cada um que procure o seu próprio caminho, é livre de o fazer. Livros...há muitos por onde escolher.

 

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PENSO

nos escritores da moda, nos monstros sagrados e em outras espécies menos vulcânicas, e confronto-me, por vezes, com o que já sei: não há muito a fazer em relação aos critérios de fama. Cada vez gosto mais de descobrir escritores que ninguém conhece e de quem ninguém fala: os marginais, os proscritos, os loucos, os ocultos. De vez em quando há palavras que se iluminam com uma luz só delas. Podia inventariar uma lista de nomes, mas não vou fazê-lo: cada leitor merece os escritores que lê e eu ainda luto para descobrir os meus.

 

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A CONTESTAÇÃO

é incómoda, para quem contesta e para quem é contestado. Decorre do sonho do/a contestador/a que pretende elevar algo ou alguém a outro patamar melhor ou mais sublime. Existe muita retórica à volta do acto de contestar, o qual deverá ser definido através de uma constelação conceptual. Se qualquer conceito é um objecto divergente, por conter um espelho poliédrico de significados, uma verdade (incontestável?) estará encerrada no seu nome: como escreveu o poeta António Gedeão, "eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos de uma criança", mas... a pedra filosofal da mudança assenta na contestação que implica a revolução, porque o sonho de alguém pode ser incomodativo para outros. Ousemos, então, uma ideia contestatária, um acto revolucionário, uma parcela nova do nosso mundo. Ousemos: o medo não entra aqui.

 Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_346 

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Imagem: Foto da obra "Cent Mille Milliards de Poèmes" de Raymond Queneau, 1961

Mais informação, aqui: http://emusicale.free.fr/HISTOIRE_DES_ARTS/hda-litterature/QUENEAU-cent_mille_milliards_de_poemes/_cent_mille_milliards.php

sábado, 2 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [45] por Adília César

E se realmente não pensamos mais profundamente do que em Atenas, sob os plátanos da Academia, nem combatemos mais heroicamente do que no desfiladeiro das Termópilas – temos decerto repartido entre nós mais justiça do que no tempo dos Gracos, e há mais saber divulgado entre nós do que no tempo de Aristóteles. E nesse século XX, de que já nos ocupámos com tão paternal solicitude, haverá ainda mais saber espalhado, e haverá mais justiça realizada.

  

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Imagem do filme "Princesse Mandane", de Germaine Dulac, 1928

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O MEU SÉCULO,

diria Günter Grass, para revelar histórias de acontecimentos relevantes e outros triviais relativos ao século XX. No centro, o indivíduo enquanto coral dramático da narrativa protagoniza o quotidiano, os hábitos e os valores subjacentes: política, ciência, guerras, dúvidas, interrogações. A escrita é indagação, mesmo quando se assume como afirmativa.

 

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O MEU SÉCULO XX

é, em grande parte, um tempo perdido no tempo. Como falar da existência real do passado, se o que parece vida concreta é apenas o que está a acontecer neste preciso momento? A vida concreta é a vida presente. E deixemos de lado o futuro, porque ainda não existe, é pura especulação conceptual. Podemos, no entanto, falar de um certo legado que deixamos aos nossos herdeiros, os filhos e os netos. Essa herança é responsabilidade nossa e chama-se “conhecimento”.

 

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SABEMOS HOJE MAIS

do que no século passado. Mas sabemos hoje menos do que no século passado porque repetimos os mesmos erros de percepção a partir de acontecimentos diferentes. Se o século de Günter Grass é de grandeza e horror, tendo em conta a forma como o escritor o narra, não poderemos dizer muito mais sobre estes vinte e um anos do século XXI, a não ser, precisamente, grandeza e horror.

 

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O FIM DO REMORSO

aproxima-se nas imagens que se desvanecem, procuram palavras sem lembranças nem ideias. Procuro dar um passo atrás de olhos bem abertos. Ver a ideia como um todo e depois o vislumbre da cena até à moldura. A seguir, ver a fragância das coisas que querem sair de si próprias. Vejo-te. Tu dizes: isto sou eu, isto não sou eu. Estás confuso. Vestes e despes os valores que o teu século te apresenta como se procurasses uma roupa com a medida perfeita, bem ajustada à ocasião, mas esqueces as medidas do teu espírito.

 

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ÉS UM SER HUMANO

e ousas a pretensão de seres destruidor, nesse lugar de onde não existe evasão. Penso no sem-abrigo que te estende a mão à porta do supermercado e que tu finges não ver. Tu tens fome e ele tem fome, mas não é a mesma fome, entendes? Todos os dias continuas a vestir e a despir esplêndidas fatiotas de ironia. Diz-me: também há saldos de emoções? Duas pelo preço de uma? Fica atento. Talvez encontres emoções em segunda mão. Ou então poderás pedi-las emprestadas ou até mesmo roubá-las! É tentador, mas não resolve o problema da existência.

 

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NA MINHA CABEÇA,

há palavras que andam de baloiço. Brincam, geram confusão, não desistem. Parecem dizer-me que as emoções do meu século deviam ter outro nome: por exemplo, medo. Repito vezes sem conta que não tenho medo, logo, o medo não existe. A palavra medo não existe. A emoção medo não existe. Percepciono com clareza um estado divergente onde a realidade fecha todas as fronteiras. Visualizo o lugar onde agora me encontro: uma galáxia imaginada ao pormenor, onde comando um exército de poetas iluminados para combater os incultos de todo o universo. Disseste que este plano bélico era apenas uma invenção da minha mente, que não era uma verdade real, que a poesia não serve para nada. Eu sei. Mas enquanto fujo de certas realidades específicas e flageladoras, aqui neste lugar onde me chamam louca, estou em paz e invisível. Na minha cabeça, sou uma pessoa e não tenho medo. Enquanto penso profundamente, o meu espírito desfila, triunfante, exibindo um soberbo vestido de justiça e esperança.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_345


AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA