sexta-feira, 22 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [48] por Adília César


Aqui e além, repetidamente surge o lampejo fugidio de uma ironia. É o poeta que, no caminho por onde a Musa o leva, ao lado de uma coisa melancólica encontrou uma coisa risível. Nada, porém, sai de seus lábios que tenha aspereza ou amargura. Apenas uma ironia velada de doçura, que resvala, não apoia, lança, ao passar sobre uma fraqueza humana, o breve clarão de um riso amável: – e logo foge, se some, na corrente mais larga de simpatias poéticas…

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Imagem do filme "Endless Poetry"* (2016, Alejandro Jodorowsky)


 *

A VIDA:

silêncios, pensamentos e actos. Aqui e além. Entre uns e outros, a comunicação apresenta-se através de ecos nos vales do tempo. O tempo de uma vida é uma sucessão de perguntas e respostas, ecos propagados nos espaços que ocupamos junto dos outros. Não há palavras inconsequentes. A coisa emitida já é a resposta que merecemos, porque aquilo que recebemos tem a ver com o que acabou de ser emitido. A simplicidade deste raciocínio invoca a premissa "dar para receber". Eu acrescentaria "receber para dar", porque ninguém dá o que não tem. O equilíbrio nos relacionamentos assume-se nessa sintonia desejada de uma troca em plenitude. Só acontece às vezes e chama-se felicidade.

 

* 

A LITERATURA

traz-me momentos de felicidade. Não são assim tão raros como se poderia pensar à primeira vista. Por vezes, até um bom título me faz feliz. Por exemplo: “E Todavia” (livro de poesia de Ana Luísa Amaral); ou “Um homem parado na esquina do mundo” (romance de Fernando Esteves Pinto). Depois, percorrer as páginas com o ritmo necessário. Não há propriamente uma meta, mas sim a vivência de um processo muito pessoal. E, todavia, todos nós somos homens (ou mulheres) parados(as) na esquina do mundo, mais ou menos melancólicos. Aqui estamos, à espera que nos amem, à espera que nos admirem, à espera de momentos de felicidade… À espera.

 

* 

PARA MIM,

escrever e publicar livros nunca foi um sonho. Escrevo porque é um imperativo. Sinto que tenho algo a dizer e pretendo deixá-lo registado na biblioteca do tempo. O tempo é um espaço composto por espelhos; vamos envelhecendo e percebendo que é necessário agarrar as horas. Provavelmente, os meus leitores são uma minoria neste universo já de si austero, mas ainda assim, acredito que a minha missão é válida e persistirei nessa viagem que noutra época me pareceu impossível. Ao longo dos anos, vou reescrevendo um longo Poema dos Passos (a primeira versão deste poema consta do livro “O que se ergue do fogo”, de 2016); nessa linha de escrita descubro veredas idílicas, mãos com muitos dedos, espelhos infinitos, paisagens invertidas. E sinto a doçura das camarinhas. Mulheres submersas com tanto para dizer. Para mim, tudo isso é poesia.

 

*

A PALAVRA

tem o dom de obscurecer ou de iluminar o espírito. O chiaroscuro da linguagem pertence a todos os séculos e habita o grande corpo planetário e estelar, nos corpos das coisas vivas e inertes. Sendo o silêncio a maior descoberta poética de quem se recolhe ao mundo da escrita literária, é preciso não descurar a importância do grito criador. Saber o que significa cada ímpeto e decidir o seu destino: inscrevê-lo num livro ou silenciá-lo para sempre. Contudo, a escrita com significado também pode ser silenciadora, quando damos demasiada atenção aos espaços entre as palavras. Que dizem esses intervalos que parecem vazios?

 

*

A ESCRITA

não é uma arma, é a própria luta, como uma batalha emocional e metafórica que se trava interiormente. Quem escreve está a lutar contra o mundo, não há outra forma de fazer com que o acto valha a pena, mesmo que a alma seja pequena. A alma pode ampliar-se com as experiências e os pensamentos sobre o vivido e o pensado. Pode crescer com a ironia e a crítica, mas cuidado, nunca virá nada de bom da parte da amabilidade bajuladora: as falsas opiniões são o inferno dos escritores e as musas cobrem a sua nudez, com pudor, desaparecendo na escuridão da mente. Entretanto, as musas deram lugar aos tópicos, aos jogos de linguagem, à franqueza crua e descascada de qualquer estética. O que a literatura perdeu em floreados românticos ou barrocos ganhou em remates entediantes, e ler poesia ou prosa, contemporâneas, pode ser um autêntico martírio. Mas de vez em quando acontecem milagres, pois alguns autores improváveis (porque são fraquinhos) dão à estampa obras de uma tal qualidade que até parece mentira, dizem os especialistas. Eu acredito que este fenómeno de competência literária é obra das Musas, não achas ó Eça?...

 

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_348

*


Sem comentários:

Enviar um comentário

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA