sábado, 30 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [49] por Adília César

Vozes sombrias afirmarão de novo, em línguas ainda não faladas, que tudo se desconjunta, que a situação é medonha! Mas quando (…) se vir mais claro num céu mais limpo, reconhecer-se- á que, em suma, a humanidade deu outro passo decidido para a frente, no caminho da justiça e no caminho do saber. E assim, aos tombos e aos socos, ora destroçado, ora reflorido, o mundo avança irresistivelmente! Onde nos leva esta marcha dolorosa? Não sei – e, se conhecesse o augusto segredo, não o divulgaria na «Gazeta de Notícias». Leva-nos talvez a essas cousas sublimes e vagas anunciadas.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Mural "Olhar a Ria" - Xavier Franck, Faro

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TANTO

que ainda não sei. A cidade absorve a minha energia, fecunda o meu pensamento. Mas o que nasce é uma miscelânea insana, despojada de beleza. A cidade e os seus vícios. Percorro a calçada como se de um círculo vicioso se tratasse, a morder as acrobacias do tempo, revelando mundos irreais guardados em cada garganta. O banco de jardim é o aposento do pobre, um ninho de vida despojado. Assim se vão ouvindo os clamores do dia, no anverso e no reverso da linguagem.

 

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A LINGUAGEM

pode ser uma fraqueza humana. A mulher submersa nos nomes das coisas prefere ficar em silêncio. Ela é a silenciadora dos pecados. A coisa e o nome da coisa em círculos de nada, por entre espaços vazios de comunicação. A palavra, o nome, o arquétipo da coisa. A casa na palavra casamuda. O corpo na palavra corposentado. A casa sem a palavra sua e o corpo sem o nome seu. Resta a gigantesca e ofuscante palavra cidade que, não sendo um acaso linguístico, é, no entanto, acontecimento semântico. Por exemplo, cidadetransgressora. O cão rosna a toda a incompreensão sonora dos símbolos, enquanto o crepúsculo não chega.

 

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O AMOLADOR DE FACAS

percorre a imensa rua. Som soprado, vibração. No virar daquela esquina da memória, talvez seja o refrão da cantiga da minha infância, tão familiar, tão próxima. A subtileza ainda não inscrita no ouvido que desconhecia a catástrofe. Hoje, o drama citadino é pedra solta no chão, racha na parede, buraco no telhado, bebé recém-nascido jogado no lixo. Teatro do quotidiano. Pequeno horror que dura apenas alguns instantes. Um bebé recém-nascido jogado no lixo. Já está. E pessoas de todas as idades, predispostas ao erro, de facas em punho, por julgarem possuir essa necessidade bélica e intrusiva, esse dom trágico e miserável de difundir o mal.

 

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JÁ O AMOLADOR

de facas regressa. Morosamente regressa, para deter aquela hora entrelaçada entre nós e o crepúsculo, segurando a faca que não fere. Regressa para esculpir o meu assombro perante a indiferença do céu aberto ao calor e ao tédio. Fecho os olhos e vejo o sol que se deita em câmara lenta, recolhendo na sua garganta o ar alienado que respiro. O subtil veneno. Ainda mais lentamente, a guilhotina desce sobre a minha cabeça, dando-me o tempo necessário para a escolha, antes do fim do dia: sim ou não.

 

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DE NADA ADIANTA

a delicadeza do gesto. A lâmina tomba sobre o acaso deste episódio anónimo e abstracto. Resta um ser ainda vivo (ainda?), de quatro patas ao longo do discurso por decifrar: por exemplo, um cão, uma mulher submersa em culpa, um bebé recém-nascido abandonado no lixo. Já o amolador de facas descansa sentado no sofá, em frente da televisão. Chega por fim a noite. Afinal, o crepúsculo já não é o crepúsculo, é apenas uma palavra. Agora, o nome dela é noitedofim.

 

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A VIDA

deambula em vagas de bem e mal, numa (des)ordem convocada pela evolução humana. A finalidade das nossas acções incorpora os vazios profundos das escolhas. Estamos atulhados em escolhas impossíveis de resolver a entropia da matéria espiritual. As desordens ética e social proliferam como erva daninha, num combate corpo a corpo. A busca de uma ordem qualquer que nos apazigue, uma medida que substancie a quimera do tempo. Perdemos de vista a neguentropia das nossas vidas, a previsibilidade das nossas acções e, apesar das seculares cicatrizes, ainda não decifrámos os mapas que nos levarão até à alma do mundo. Sim ou não?


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_349

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