sábado, 31 de julho de 2021

Vídeo O POÉTICO COMO ABERRAÇÃO - ANTÓNIO GANCHO E O AR DA MANHÃ

Vídeo com declamação de poemas de António Gancho 
por Adília César e Fernando Esteves Pinto 
e ainda excertos de uma entrevista realizada por Bruno Horta ao poeta em 02/12/2002.


Vídeo aqui: https://cutt.ly/hQhuEwU


DOBRA DE PENSAMENTO 15: O poético como aberração | 10º RAIAS POÉTICAS

29 de julho, às 14h (Brasil) | 18h (Portugal) | 19h (Espanha), acontece a décima quinta dobra de pensamento do 10º Raias Poéticas: Afluentes Ibero-Afro-Americanos de Arte e Pensamento, evento apoiado pela Camâra Municipal De Vila Nova De Famalicão e pela Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, com os curadores Luís Serguilha e Marcelo Ariel, e intercessão das revistas de arte InComunidade (Porto) e Revista Palavra Comum (Corunha).

Dobra do Pensamento: O POÉTICO COMO ABERRAÇÃO

Evento online




Vídeo do evento:



DELIRIUM

O meu sexto livro de poesia:



Mais informações aqui:

sexta-feira, 30 de julho de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [20] por Adília César


Meu caro, dizia-me ele muitas vezes, quando se critica os outros, é necessário ser-se irrepreensível.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Foto de Inkas & Niclas

*

FECHO

os olhos, e o pensamento acende-se. A luz desliza pela coluna vertebral e espalha-se pelos órgãos internos, como uma sensação de dor a preencher as células. A pele fica às escuras. Fecho os olhos. Abdico de todos os episódios de transtorno, essas sombras de intensidade ainda média. Fecho os olhos, mas qualquer semelhança com a noite é pura coincidência.

 

*

ACORDO

às 08:38. Não é a primeira vez que isto acontece. Acredito que toda a organização do universo se baseia na elaboração de uma estrutura matemática, através de um padrão repetitivo, sem erro nem desvio. O meu corpo acorda às 08:38. É domingo. Não tenho a certeza se existe alguma obrigatoriedade de funções para o dia de hoje: talvez ficar na cama e dormir, mas decido acordar o espírito. Começo a ler um livro escolhido ao acaso. Leio epígrafes sem consequências. O livro é desinteressante e abandono a leitura. Não tenho forças para escolher outro, e adormeço. São 09:00.

 

*

OS DESVIOS

foram inventados pelos humanos – as estradas de cimento ao longo da terra; os apartamentos sobrepostos sobre o lugar de ninguém; as barragens a impedirem o movimento dos caudais que antes eram livres; as pontes entre margens perdidas no horizonte. E as máscaras de contenção da doença. Sejamos práticos: afinal, já não somos humanos, transformámo-nos em “seres potencialmente pandémicos”. Temos sucesso em todos os domínios de destruição e o nosso mantra é consumir e apagar todas as pistas de arrependimento; dizer adeus ao futuro é o novo lema.

 

* 

OS ESPECIALISTAS

trabalham por turnos. Cada um tem a sua teoria e cada teoria tem o seu contrário. Este processo dialéctico desenvolve-se ao longo de um período de tempo pré-determinado. Às vezes, vão trabalhar todos ao mesmo tempo. Logo, os especialistas não se entendem, não coordenam os seus tempos de antena e confundem os espectadores. Criticam-se mutuamente e invalidam teorias que acabam por nidificar no caos informativo. O que resta?

 

*

FAÇO DE CONTA

que a tolerância é um valor a ser resgatado ao lixo ético a que me vou habituando. Sou tolerante em relação às atitudes dos outros e que ganho eu com isso? Sou tolerante com a corrupção, a demagogia e a restrição velada dos meus direitos? Sou tolerante em relação aos sintomas paradoxais das notícias? Não, não posso ser tolerante: «Às vezes, é preciso desobedecer.» (Salgueiro Maia)

 

*

ACREDITAR

em contos de fadas pode ser fatal. O Lobo Mau anda por aí. A Bruxa Malvada está à espreita. O Dragão insiste no fogo pelo fogo. E a Fada Madrinha é uma espécie em vias de extinção. O que resta? De repente, o Príncipe Encantado surge numa esquina do dia, a trautear uma canção requisitada nos termos de serviços mínimos, tendo em conta a evolução da espécie humana: É o Fungagá/ Fungagá da Bicharada/ É o Fungagá/ Fungagá da Bicharada!

Não – é a palavra mágica.

Criticar – é o verbo sábio para acolher o livre arbítrio. Porque haveria de querer a barbárie de “regressar à normalidade”?! Porque haveria de me sujeitar às mentiras de outrora?

 

*

EU QUERO

é ser feliz, de dentro para fora. Ser outra vez humana no avesso das coisas. Ser humana como nunca fui antes. Acordo às 08:38. Ainda é domingo? Apetece-me criticar abertamente os objectos do meu desprezo, mas hesito e nego o impulso, por agora. «No catálogo dos direitos humanos não existe o direito a não ser ofendido; se existisse, ninguém poderia dizer ou escrever uma palavra.» (Salman Rushdie)

E calo-me. Por agora. São 09:00. O tempo que passou tentou demitir-me das minhas funções, mas não conseguiu.

O que resta? Tenho a resposta na ponta da língua: sei o que não quero.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_300

 

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [19] por Adília César


 Em geral os deuses eram modestos: misturando-se tanto à vida dos homens, temiam-lhes muito o sarcasmo. E os homens mesmo, presentemente, quando têm algum valor também são sempre modestos. Os grandes ares de sabichão, como os ares de ricaço, como os ares de valentão, passaram totalmente de moda.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

  

Zeus

*

ZEUS,

é o deus supremo dos céus e dos trovões. Deus dos deuses e dos homens. Pobre Zeus. Deve estar louco, perdido nesta cacofonia universal. Ele é um ajuntador de nuvens, um organizador do mundo. Mas a nuvem, carregada de sarcasmo humano, tenta fugir-lhe a todo o custo: de cá para lá e de lá para cá, as nuvens, todas ao mesmo tempo. Troçam da intencionalidade bélica de Zeus e riem-se nas bátegas de chuva que despejam sobre as nossas cabeças. Imagino a cena: Zeus-pai a ralhar com as crianças-nuvens, ele predisposto à tempestade e elas destinadas à execução do seu próprio fracasso. Acredito que as nuvens não queiram ser deusas, mas a tormenta surge, imponente, desabando sobre o mundo dos homens e dos deuses: a tempestade, acto de Zeus.

 

*

 

A CENA

poderia ter sido pintada por Jonh Constable, um outro “pai” universal. «Hoje vou pintar as nuvens por cima deste mar», diz ele. Elas mudam a cada instante e por isso, ele pinta o mais rápido que lhe é possível. O sol, ténue e fragmentado. Raios de luz mansa. Mas tudo muda, tudo muda. O que aí vem é uma perturbação da natureza. O céu, o sol, a chuva, o vento, a luz, o frio, as nuvens. Tudo muda. O vento gélido transforma as tintas numa pasta grossa agarrada aos pincéis. É difícil a missão do pintor. A narrativa da natureza coincide com a expressão sincera de respeito pela paisagem: nuvens que dançam, cinzentos abstractos, o branco que parece afogar-se neste céu tão pesado. Ele sabe que lhe é permitido este jogo de repetição: as nuvens que vê hoje já não são as mesmas que viu ontem ou que verá amanhã, mas em cada dia há um quadro que nasce, uma nova visão da evanescência de outras visões. Afinal, ele é humano. Ó tempestade.

 

*

DE SÉCULO EM SÉCULO

vamos ostentando a vaidade com menor ou maior prejuízo para a nossa imagem. Adaptamo-nos. Cosemo-la nos botões das fatiotas, enlaçamo-la na écharpe sobre os ombros, prendemo-la na gravata à volta do pescoço e os braços tornam-se desagradavelmente compridos com o peso dos anéis, das pulseiras e dos relógios. Nas algibeiras, o dinheiro não serve para nada e vai caindo pelos buraquinhos tecidos pelas nossas ambições materiais. Nas estantes, os livros fazem parte de uma história interminável que ninguém irá ler. Onde está o erro?

 

* 

HOJE

vi Zeus. Estava ali ao meu alcance. Era parecido com o fazedor de tormentas pintadas por Constable. Mas tudo muda, tudo muda. Está mais magro, parece velho e doente, contaminado pelas fraquezas humanas e pelo calor do verão. A gravata aperta-lhe o pescoço e não o deixa respirar. As nuvens espreitam, ansiosas. Querem brincar às escondidas, mas só sabem chover consolações apressadas de última hora. E Zeus chora, o peito sacudido por longas filas de espera. À espera de quê? Nunca saberemos. Este é um segredo bem guardado pelos deuses.

 

*

AINDA HOJE

se perceberá que a pena se torna mais pesada quando não se sabe escolher as palavras certas. Por exemplo: o poema é “bonito”; o verso é “magnífico”; a obra é “extraordinária”; o livro é “profundo”. E agora, o que se faz com esta presunção? Posto isto, tenho a certeza que a pena é qualquer coisa difícil de caracterizar, ao demorar-me por um período de tempo considerável sobre esta matéria dos elogios adjetivados até à exaustão. Ainda hoje se perceberá que tudo isto não passa de um móvel de prateleiras esconsas a abrir e a fechar num discurso de fachada: agradecer e retribuir para continuar a usufruir como uma espécie de favores em cadeia, mas sem generosidade genuína.

 

*

QUE PENA…

Afinal, a pena é tão leve que não deixará marca. Mas Zeus tem agora melhor aspecto: o meu ténue sarcasmo engordou-o um pouco, corou-lhe as faces. Gosto de o ver assim, reclinado na poltrona, a ler um livro de poesia. E diz, divertido, com o olhar sábio lançado sobre o horizonte, como se falasse com alguém que não está ali: “o crítico literário e o seu editor podem ajudá-lo a deixar de escrever. Consulte-os”. Zeus solta uma rude gargalhada que se ouve até aos confins do universo e zomba desta espécie de mazela humana: as más escolhas.

Constable aparece e começa a pintar a estranheza do verbo elogiar. E tudo muda, tudo muda na alegoria.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_298

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA