sexta-feira, 30 de julho de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [20] por Adília César


Meu caro, dizia-me ele muitas vezes, quando se critica os outros, é necessário ser-se irrepreensível.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Foto de Inkas & Niclas

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FECHO

os olhos, e o pensamento acende-se. A luz desliza pela coluna vertebral e espalha-se pelos órgãos internos, como uma sensação de dor a preencher as células. A pele fica às escuras. Fecho os olhos. Abdico de todos os episódios de transtorno, essas sombras de intensidade ainda média. Fecho os olhos, mas qualquer semelhança com a noite é pura coincidência.

 

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ACORDO

às 08:38. Não é a primeira vez que isto acontece. Acredito que toda a organização do universo se baseia na elaboração de uma estrutura matemática, através de um padrão repetitivo, sem erro nem desvio. O meu corpo acorda às 08:38. É domingo. Não tenho a certeza se existe alguma obrigatoriedade de funções para o dia de hoje: talvez ficar na cama e dormir, mas decido acordar o espírito. Começo a ler um livro escolhido ao acaso. Leio epígrafes sem consequências. O livro é desinteressante e abandono a leitura. Não tenho forças para escolher outro, e adormeço. São 09:00.

 

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OS DESVIOS

foram inventados pelos humanos – as estradas de cimento ao longo da terra; os apartamentos sobrepostos sobre o lugar de ninguém; as barragens a impedirem o movimento dos caudais que antes eram livres; as pontes entre margens perdidas no horizonte. E as máscaras de contenção da doença. Sejamos práticos: afinal, já não somos humanos, transformámo-nos em “seres potencialmente pandémicos”. Temos sucesso em todos os domínios de destruição e o nosso mantra é consumir e apagar todas as pistas de arrependimento; dizer adeus ao futuro é o novo lema.

 

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OS ESPECIALISTAS

trabalham por turnos. Cada um tem a sua teoria e cada teoria tem o seu contrário. Este processo dialéctico desenvolve-se ao longo de um período de tempo pré-determinado. Às vezes, vão trabalhar todos ao mesmo tempo. Logo, os especialistas não se entendem, não coordenam os seus tempos de antena e confundem os espectadores. Criticam-se mutuamente e invalidam teorias que acabam por nidificar no caos informativo. O que resta?

 

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FAÇO DE CONTA

que a tolerância é um valor a ser resgatado ao lixo ético a que me vou habituando. Sou tolerante em relação às atitudes dos outros e que ganho eu com isso? Sou tolerante com a corrupção, a demagogia e a restrição velada dos meus direitos? Sou tolerante em relação aos sintomas paradoxais das notícias? Não, não posso ser tolerante: «Às vezes, é preciso desobedecer.» (Salgueiro Maia)

 

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ACREDITAR

em contos de fadas pode ser fatal. O Lobo Mau anda por aí. A Bruxa Malvada está à espreita. O Dragão insiste no fogo pelo fogo. E a Fada Madrinha é uma espécie em vias de extinção. O que resta? De repente, o Príncipe Encantado surge numa esquina do dia, a trautear uma canção requisitada nos termos de serviços mínimos, tendo em conta a evolução da espécie humana: É o Fungagá/ Fungagá da Bicharada/ É o Fungagá/ Fungagá da Bicharada!

Não – é a palavra mágica.

Criticar – é o verbo sábio para acolher o livre arbítrio. Porque haveria de querer a barbárie de “regressar à normalidade”?! Porque haveria de me sujeitar às mentiras de outrora?

 

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EU QUERO

é ser feliz, de dentro para fora. Ser outra vez humana no avesso das coisas. Ser humana como nunca fui antes. Acordo às 08:38. Ainda é domingo? Apetece-me criticar abertamente os objectos do meu desprezo, mas hesito e nego o impulso, por agora. «No catálogo dos direitos humanos não existe o direito a não ser ofendido; se existisse, ninguém poderia dizer ou escrever uma palavra.» (Salman Rushdie)

E calo-me. Por agora. São 09:00. O tempo que passou tentou demitir-me das minhas funções, mas não conseguiu.

O que resta? Tenho a resposta na ponta da língua: sei o que não quero.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_300

 

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