domingo, 3 de novembro de 2019

INSTRUÇÕES PARA A RESOLUÇÃO DA PROLEMÁTICA ENUNCIADA

Definir a tautologia é o que me proponho.
Leio atentamente as instruções para alterar o segredo do cofre.

Coloco-me diante do cofre com a porta aberta.
Introduzo a chave na fechadura.
Desando a mão de metal como quem fecha a porta.
Em seguida, dou meia volta à chave
de modo que ela fique com o palheto virado para cima
pelo lado interior da porta na concavidade.
Introduzo a agulheta de metal com o rasgo virado talvez para baixo
pela parte superior do pistão até topar bem.
Conservo esta agulheta e faço a mudança com as iniciais que desejo.
Em seguida retiro-a e assim fica o cofre a abrir e a fechar em novo nome.

Depois, preparado que foi o início decifro as iniciais
que guardam o poema puro e virgem como um menino.
Dou-lhes rigor e precisão, aproximando-as a espaços regulares
na subtileza da formalidade técnica.
A inocência da imagética escondida
para que esculpam um sentido imaginário
liso e mortal como o tempo envidraçado.

O conceito ajustado à compressão da matéria frágil
saciado o ponto de entendimento sustentável
as palavras a florescer a crescer quase a morrer.
Uma exótica e metafórica paisagem desenhada em folha de papel resiliente.

Quando o acto de escrita se vira do avesso
decorrente de um erro procedimental
e a ortografia se veste de sombras atrasadas
o sentido do poema guarda o segredo do tempo.
Roteiro poético velho e gasto
nas mãos calosas de um poeta inexperiente
em auspiciosa insistência do vislumbre da poesia.

Talvez se imponha o recomeço da tarefa não compreendida
o conserto urgente de um falso acto linguístico
a sobrevoar a poética necessidade da escrita luminescente
e a vigiar a sedução do novo e precioso início.

Coloco-me diante do cofre com a porta aberta
para fazer a mudança das iniciais que agora desejo.
Eis o cofre a abrir e a fechar com um novo nome:
o nome renascido do meu menino poema.


Adília César
in Pa_lavra



«A ênfase do nosso espaço é ressaltar a pa_lavra em todas as suas manifestações poéticas e filosóficas. Um espaço para filosofia, poesia, literatura, fotografia, apresentações de textos acadêmicos e divulgação da cultura. A pa_lavra é a expressão da força criadora presente no fiat lux, que esparrama na poesia e na filosofia o resplendor da sensibilidade e do conhecimento humanos. É a lavratura que faz germinar nas entranhas da terra e do coração os lampejos de esperança fincados na semente que brota e no amor que nasce. A poesia aglutina, nos instantes existenciais, todos os sonhos de uma vida, eternizando-os por meio da pa_lavra; a filosofia questiona os mistérios do universo e os arcanos da existência do homem para, problematizando-os, desbravá-los mediante a pa_lavrapa_lavra assume musicalidade nos versos da poesia e nos desafia a escutá-la; a pa_lavra assume reflexibilidade no pensamento filosófico e nos instiga ao exercício da razão. A poesia inclina-se às emoções e aos sentimentos; a filosofia, ao desafio crítico da intelecção. Em ambas, a pa_lavra é a “linguagem das linguagens”.»

sábado, 2 de novembro de 2019

NA PARTITURA ALINHADA DA TUA IMAGINAÇÃO INCERTA


Autorretrato de Adília César


Não me atires poemas inteiros à boca

– Querido, não me atires poemas inteiros à boca.
Eles magoam como pedras
marcam-me a pele, os ossos, o sangue e a paciência.
São pingos de pesadelos a tingir as horas.
Preocupa-me essa tua atitude recorrente
além da minha falta de poder de encaixe para a má poesia.
Para nódoas difíceis uma solução definitiva
mas sem a eficácia de um bom detergente emocional
(procurei em todas as lojas de referência
e está esgotado)
fico demasiado impaciente.
A não ser que passes a escrever romances de amor
uma palavra de cada vez.
E escreves amor em todas as páginas.
Não te esqueças, esta regra é muito importante.
E podes atirar-me amor à vontade:
com o amor aguento eu bem.

Poema bonito

Alguma vez te pediram um poema bonito?
Não há nada pior do que um poema bonito:
as palavras amenas e refrescantes
e o preto no branco com muitos suspiros e açúcares.
Reminiscências amáveis do discurso
na teatralidade da declamação silenciosa.
Ameaças à respiração breve das palavras encantadoras.
Talvez te peçam um poema bonito.
Referência da suavidade oculta num verso
a espairecer as nuvens e o talento sentimental.
Climatologia morna da linguística aceitável
na partitura alinhada da tua imaginação incerta.
A curva inflexível da cabeça aos pés
a impedir o voo delicado das palavras
a conjugar um enjoo subterrâneo de ti.
Todos os tempos verbais acidulados
a rendilhar a osteogénese imperfeita das frases.
Se te pedirem um poema bonito, faz de conta
que a semântica da primavera perdeu a validade.
E que os pássaros do tempo decidiram
voar em contramão, para sincronizar o boicote
às palavras róseas e aromáticas.
Que não te peçam um poema bonito.
Vais simplesmente dizer que a vocação poética cegou
nas sombras da memória inquieta.
E no tempo apagado dos teus olhos
já não semeias arabescos.
E no espaço acidentado do teu corpo
já não coses as feridas.
Que já morreste tantas vezes em silêncios herméticos
todas as vezes adjectivas e dolorosas
em que tentaste escrever um poema
que fosse bonito.

 O Gato de Schrödinger
Poetizar dói, quando ela procura
o sentido do tempo nos silêncios dele.
Mas os silêncios dele roem.
Começam por ser dentadinhas pequenas
mordiscadelas de rato com dentes miudinhos
como se fossem cócegas. É agradável e eficaz.
Ela gosta desse prefácio
quando o poema ainda não começou a escrever-se
nas curvas das palavras eleitas.
É apenas uma espécie de formigueiro
aquela breve e urgente ansiedade
de transpor para um plano concreto
a abstracção das ideias.
Depois começa a doer. O silêncio denso e pesado
como uma âncora de ferro assenta no fundo
e ela fica presa nessa profundidade emocional.
Apenas as mãos a procurar os sentidos e as formas das palavras
na pele. As unhas a raspar na pele, sem pedirem licença.
O corpo do poema apresenta-se então em palco
iluminado por um foco de luz que queima
à espera de uma ovação.
A personagem principal
a entidade máxima
a prima dona
é sempre a substância da ideia do poema
nunca as palavras.
As palavras não são nada.
O poema é tudo
a inteligibilidade e o significado
a causa e o efeito.
As dentadas a rasgar a carne indicam
o fim do processo de construção.
A dor agora é quase insuportável
à espera da primeira prova de leitura.
O poema está acabado ou não?
É um poema com sentido ou não?
Valeu a pena construir este poema ou não?
O Gato de Schrödinger está vivo
ou está morto dentro da caixa?
Um poema é sempre um paradoxo
uma terra sem rei nem lei
governado pela improbabilidade.
– Querida, tenho um conselho para ti
(diz ele, quebrando o silêncio):
não recorras ao mundo quântico para poetizares.
Há formas bem mais fáceis de escrever um poema.
Adília César, in revista Literatura & Fechadura

DEMÓNIOS

Princípio de linha XV

Do obscurantismo saltam demónios difíceis de vergar.


"O Pesadelo", 1781, Johann Heinrich Füssli, Detroit Institute of Arts

Adília César

ENTRE ESPELHOS

Poema ENTRE ESPELHOS



Pintura surrealista de Troy Brooks


Também a matéria diurna está esvaziada de sentido.
Do céu tombam os pássaros, as lâmpadas
e outras partículas sentimentais.

Faz-se tarde na testa alta do imperador
a sonhar por dentro das suas escravas
cercado de tulipas negras e mudas.
Canções tristes das noivas deixadas no altar.

A mãe ofereceu-me um espelho novo
onde a cabeça parece a mesma em todas as figuras:
bela como um seixo nas águas pequenas
forte como uma trança que cresceu ao longo de um século.

Mas realçar o ovalado dos rostos é apenas intenção de pureza.
Tardia emancipação do desejo, cascata de sangue
a regar o teu jardim jubilado – esse abismo comovido.

A vida a acontecer num espelho que se partiu
é idade cega e arrumada nos olhos da noite.


Poema de Adília César, in revista #TLÖN Nº 4, 2019

LUZ

Princípio de linha XIV

Eis o gesto curvo da noite: 
acender e apagar a luz com a sombra ao fundo.

Foto de Adília César - Candeeiro de sala

Adília César

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA