sábado, 2 de novembro de 2019

NA PARTITURA ALINHADA DA TUA IMAGINAÇÃO INCERTA


Autorretrato de Adília César


Não me atires poemas inteiros à boca

– Querido, não me atires poemas inteiros à boca.
Eles magoam como pedras
marcam-me a pele, os ossos, o sangue e a paciência.
São pingos de pesadelos a tingir as horas.
Preocupa-me essa tua atitude recorrente
além da minha falta de poder de encaixe para a má poesia.
Para nódoas difíceis uma solução definitiva
mas sem a eficácia de um bom detergente emocional
(procurei em todas as lojas de referência
e está esgotado)
fico demasiado impaciente.
A não ser que passes a escrever romances de amor
uma palavra de cada vez.
E escreves amor em todas as páginas.
Não te esqueças, esta regra é muito importante.
E podes atirar-me amor à vontade:
com o amor aguento eu bem.

Poema bonito

Alguma vez te pediram um poema bonito?
Não há nada pior do que um poema bonito:
as palavras amenas e refrescantes
e o preto no branco com muitos suspiros e açúcares.
Reminiscências amáveis do discurso
na teatralidade da declamação silenciosa.
Ameaças à respiração breve das palavras encantadoras.
Talvez te peçam um poema bonito.
Referência da suavidade oculta num verso
a espairecer as nuvens e o talento sentimental.
Climatologia morna da linguística aceitável
na partitura alinhada da tua imaginação incerta.
A curva inflexível da cabeça aos pés
a impedir o voo delicado das palavras
a conjugar um enjoo subterrâneo de ti.
Todos os tempos verbais acidulados
a rendilhar a osteogénese imperfeita das frases.
Se te pedirem um poema bonito, faz de conta
que a semântica da primavera perdeu a validade.
E que os pássaros do tempo decidiram
voar em contramão, para sincronizar o boicote
às palavras róseas e aromáticas.
Que não te peçam um poema bonito.
Vais simplesmente dizer que a vocação poética cegou
nas sombras da memória inquieta.
E no tempo apagado dos teus olhos
já não semeias arabescos.
E no espaço acidentado do teu corpo
já não coses as feridas.
Que já morreste tantas vezes em silêncios herméticos
todas as vezes adjectivas e dolorosas
em que tentaste escrever um poema
que fosse bonito.

 O Gato de Schrödinger
Poetizar dói, quando ela procura
o sentido do tempo nos silêncios dele.
Mas os silêncios dele roem.
Começam por ser dentadinhas pequenas
mordiscadelas de rato com dentes miudinhos
como se fossem cócegas. É agradável e eficaz.
Ela gosta desse prefácio
quando o poema ainda não começou a escrever-se
nas curvas das palavras eleitas.
É apenas uma espécie de formigueiro
aquela breve e urgente ansiedade
de transpor para um plano concreto
a abstracção das ideias.
Depois começa a doer. O silêncio denso e pesado
como uma âncora de ferro assenta no fundo
e ela fica presa nessa profundidade emocional.
Apenas as mãos a procurar os sentidos e as formas das palavras
na pele. As unhas a raspar na pele, sem pedirem licença.
O corpo do poema apresenta-se então em palco
iluminado por um foco de luz que queima
à espera de uma ovação.
A personagem principal
a entidade máxima
a prima dona
é sempre a substância da ideia do poema
nunca as palavras.
As palavras não são nada.
O poema é tudo
a inteligibilidade e o significado
a causa e o efeito.
As dentadas a rasgar a carne indicam
o fim do processo de construção.
A dor agora é quase insuportável
à espera da primeira prova de leitura.
O poema está acabado ou não?
É um poema com sentido ou não?
Valeu a pena construir este poema ou não?
O Gato de Schrödinger está vivo
ou está morto dentro da caixa?
Um poema é sempre um paradoxo
uma terra sem rei nem lei
governado pela improbabilidade.
– Querida, tenho um conselho para ti
(diz ele, quebrando o silêncio):
não recorras ao mundo quântico para poetizares.
Há formas bem mais fáceis de escrever um poema.
Adília César, in revista Literatura & Fechadura

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