domingo, 9 de abril de 2023

PERFIL - CRISTOVAM PAVIA

Só de agora a mágoa[1]

 

Um barco sem velas

E sem rumo

Singrando um mar de fumo,

Mas descobrindo estrelas…

Nisto me resumo.[2]

 

Cristovam Pavia

 

     

Cristovam Pavia


     “Epígrafe” é o título dado a este pequeno poema de Cristovam Pavia. E, todavia, poderia ser um desses arquipélagos de cinza que o poeta foi visitando para meditar sobre a sua curta vida. De descoberta em descoberta, ele viu frotas de nuvens, turbilhões de cores, clarões do crepúsculo. Certamente que o poeta se encontrava encerrado em si mesmo, respirando com dificuldade, focado na construção da sua linguagem poética como se esta fosse uma casa com as janelas fechadas por dentro. Depois foram abertas todas as torneiras/E a casa desceu no espaço/como uma gota de água. Quem ficou fechado lá dentro? Quem se afogou? Quem bebeu aquela gota de água universal? O poeta Cristovam Pavia ou o homem de nome Francisco António Flores Bugalho, nascido em 1933 e falecido em 1968? Basta de perguntas.

     Toda a poesia de Cristovam Pavia é um aviso. Contudo, se ele poetiza a partir das suas vivências, os seus poemas devem ser lidos tendo em conta o seu sofrimento emocional, verificando-se revelações inéditas das suas circunstâncias pessoais. Do poeta para o homem, portanto. A voz poética, o som que o homem faz ao autodestruir-se.

     Ainda era criança e o fogo da poesia já lhe queimava as mãos, como um ardor acaso demasiado excessivo para o que então lhe era possível suportar.[3] Aos 13 anos já o rapaz escrevia e projectava-se em um-outro poético capaz de se abrir a um mundo dolorido que parecia cercá-lo como uma ilha de angústia. A infância é o paraíso perdido que ele desenha em traços de epitáfio, não sem antes procurar as nascentes de água pura, o baptismo da caminhada imbuída de desafios insuperáveis, demandas inultrapassáveis. Suster o peso da hora. O fim de qualquer coisa sempre visível e palpável. Profundo. Chamemos-lhe, pragmaticamente, epitáfio. Mais tarde, ele percebe que o menino que era não morreu. Pelo contrário, um e outro são o mesmo, confundindo-se um com o outro nas palavras escritas, grandes e opacas como a ampla solidão, o imenso silêncio que se instaura na reconciliação de ambos.

 

Havia grandes tílias aromáticas…

E pedrinhas brilhantes, coloridas

Conforme a luz…

E havia animais

Com rotas desconhecidas…

E folhas estranhas todas diferentes…

E tu estavas lá:

– Menino

Das pálpebras tombadas.

 

     Mas nós sabemos que está ali um menino já morto e que o homem caminha para a morte. Mas enquanto esta não chega, o poeta medita e escreve. Abandona-se a si mesmo e escreve consolações para tempos incertos. Deseja alcançar uma vertiginosa vertigem. A certeza: a força austera do comboio que desfaz o menino das pálpebras já tombadas.



[1] Verso do poema de amor “Pequena canção”, incluído no livro “35+15 poemas”, 2018, Opera Omnia.

[2] Em itálico: versos de poemas de Cristovam Pavia.

[3] Do texto “Sobre a poesia de Cristovam Pavia” de José Bento, incluindo na obra Poesia,1982, Moraes Editores.

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Adília César, in https://algarveinformativo.blogspot.com/2023/03/perfil-cristovam-pavia-so-de-agora.html

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA