sábado, 26 de março de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [35] por Adília César

 

Mas esta cortesia, em que havia emoção, provinha sobretudo de que o escritor, há cem anos, dirigia-se particularmente a uma pessoa de saber e de gosto, amiga da eloquência e da tragédia, que ocupava os seus ócios luxuosos a ler, e que se chamava «o Leitor»: e hoje dirige-se esparsamente a uma multidão azafamada e tosca a que se chama «o público».

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)


Cruzeiro Seixas

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NAS CIRCUNSTÂNCIAS

atenuantes do poema estão sempre as palavras, como se fossem penitências, feridas agravadas pela insistência do poeta. Quando os poemas se escrevem nos espaços brancos entre as palavras, inscrevem-se numa opacidade ainda confusa. Nesse movimento de contração e de expulsão, saem do pensamento através de um mapa onde não há caminho até à salvação. E a “obra”, que se pretende “edifício da linguagem”, renasce na geografia de um qualquer significado, junto ao paraíso, na fronteira do fascínio poético. Contudo, raramente encontra a porta de entrada. O poema fica ali, sem saber o que fazer. Tantas vezes, apenas uma ruína restará. Que faremos com a decadência criativa?

 

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A PREDISPOSIÇÃO

para ler poesia não é uma implícita condição da pessoa. Esse ser raro, quase mítico, «o Leitor», possui conhecimento e gosto literário que vai muito para além das notificações que recebe no seu smartphone. As redes sociais desfiam um rosário de poemas e aforismos que terminam, literalmente, na Cruz-da-Minha-Paciência. De vez em quando, uma honrosa excepção ilumina o cais quase sempre obscuro onde estão depositados os livros à espera de viajar pelas mentes humanas. Na verdade, nem todos os livros desejam esse destino. Uma vez, um Pequeno Livro de uma Editora de Vão de Escada disse-me que lhe parecia mais decente atribuir-se prémios aos melhores leitores e não aos melhores livros. Perante o meu espanto, o Pequeno Livro da Editora de Vão de Escada ainda admitiu que preferia ser lido por poucos leitores e bons, a muitos e maus.

 

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EU,

que faço parte de uma “multidão azafamada e tosca a que se chama «o público»”, não sei remar no grande barco que nos transporta e corro sérios riscos de naufrágio, apesar dos avisos à navegação contidos nas inabaláveis pilhas de livros que se vão erguendo à minha volta de forma compulsiva, embora não totalmente aleatória. Livros à espera de serem lidos, não por ordem de chegada, mas por nível de interesse pessoal. Cuidado, a quantidade não conduz à qualidade, digo. As palavras são como penitências e saem do pensamento até à salvação, na fronteira do fascínio poético. Contudo, na maior parte das vezes não conseguem lá entrar. Que nome hei-de dar a este país onde já ninguém sabe o que é a literatura?

 

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TU

não és igual a mim e tens predisposições literárias diferentes das minhas. Tu gostas de romances e eu prefiro os contos. Tu aprecias considerações psicológicas e eu adoro fundamentações filosóficas. Tu deleitas-te com um ebook e eu anseio ter nas mãos um livro-objecto. As palavras são sempre as mesmas, como uma combinação simbólica de desenhos concebidos para fazerem sentido nas nossas cabeças, embora não raras vezes a leitura seja feita com os corações. A cabeça galopa violentamente através das sinapses frenéticas dos seus neurónios, mas o coração bate devagar e equilibra a pressa do trabalho cerebral. Ler, apreciar, usufruir, pensar. Por vezes, escrever. E assim vai rodando este mundo literário desmoronado, tendencioso, tantas vezes distraído. Imagens provisórias, crostas de pó, paredes elevadas em labirinto perpétuo dos que ali viveram, emparedados no silêncio dispensado dos que foram à guerra, os desumanos, os utopistas e os que nada sabiam sobre ideologia. Sobrou o vazio, uma espécie de vida que cresce nas cidades arruinadas quando todos são necessários noutros lugares em construção, esse amplo espaço indigno de desgosto.

 

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A SIMPLICIDADE

não é um conceito tautológico, como uma demarcação da realidade racional e expressiva. Tangível. Registo no diário infinito do destino o que não consigo explicar por palavras minhas. A simplicidade é de uma extrema complexidade, implica resumir a significância de um gesto erudito para nomear a grandiosidade de um símbolo, a ofuscação da estética da existência. Ou apenas o silêncio na respiração de outro silêncio, quando os silêncios são e estão vivos (ser e estar é a questão central) e não perdem a validade no decorrer da experiência poética. Quando a morte da poesia é anunciada, ouvem-se os gritos que carregam a bandeira da liberdade. A primeira inspiração, o último suspiro. A vida ficcionada. A ficção vivida. Pura imitação. Bem sei que há outros templos estéticos, mas a poesia dá-me a ênfase que sempre procurei.

 

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NÓS SOMOS

aquilo que lemos. Esta é uma verdade simples que faz todo o sentido para mim. Temos o direito de ler, não importa o quê (Daniel Pennac), mas cuidado: há maus leitores de bons livros e um mau livro pode estragar um leitor principiante ou mediano. As boas escolhas são fundamentais. E perguntas: “mas o que é uma boa escolha?” Outra verdade em que acredito tem a ver com o facto de um livro poder ser aquilo que o leitor faz dele. Gostar ou não gostar, não é uma questão: este tipo de apreciação não é suficiente nem para o livro nem para o seu autor. É necessária uma coragem inusitada e uma entrega visceral para mergulhar num livro e apreciá-lo despido dos nossos próprios preconceitos. A simplicidade é um gesto erudito para nomear os silêncios da experiência poética.

 

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NÃO POSSO

abandonar estas considerações pessoais sem referir uma das maiores perplexidades do meu quotidiano: parece haver mais escritores do que leitores. Se assim for, a literatura está condenada ao fracasso, apesar dos inúmeros fantasmas que povoam o nosso imaginário literário. Do passado, já não herdamos os velhos hábitos de leitura que nos ensinaram na escola. É importante ensaiar uma certa flexibilidade perante as nossas convicções antigas e ensaiar novas ficções, porventura mais adequadas ao futuro. Ler o quê? Ler como? Ler para quê? E, finalmente, o que é a literatura, o que é a poesia e de que modo poderão fazer parte das nossas vidas? Imagens provisórias e esvaziadas dos ecos. Sobrará o vazio em construção quando a morte da poesia for anunciada e as ruínas desaparecerão no vazio do pensamento. Todas as obras literárias também. E se estas conexões da linguagem já forem consideradas totalmente virtuais, apesar de termos um livro nas mãos? Ah, mas assim a crónica seria outra.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_332

sábado, 12 de março de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [34] por Adília César


Encontrando aos pés uma pedra, nós não ficamos num tremor de emoção, a interpela-la em violentas estrofes, à espera que uma voz de dentro responda revelando o inefável mistério: homens positivos, as pedras utilizamo-las para levantar mais o nosso muro ou apedrejar mais o nosso semelhante.

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Wind", Vladimir Kush (Realismo Metafórico)

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HÁ UM ROSTO,

em cada casa, que está à espera. Esperar é acreditar na possibilidade de uma ideia. Uma ideia positiva, como um jardim em redor da casa. Um jardim de flores coloridas como se fossem sentimentos do lar. Aquele rosto que espera, por dentro de cada casa, sabe que algo vai começar a bater à porta, vai começar a tocar à campainha. Vai conseguir entrar, à força. O rosto da casa sente o sobressalto. Pressente o espasmo da invasão. Contudo, quem espera nada alcança: é preciso fazer alguma coisa. É preciso iniciar a viagem, pisar as ruínas, invocar um deus qualquer. Enquanto ainda não batem à porta. Enquanto ainda não tocam à campainha. Enquanto ainda não entram à força. O rosto exibe a urgência de olhar o jardim, de regar as raízes dos dias, pela última vez. Agora, é preciso acautelar a vida.

 

*

 

ANTES,

eu era a rainha das flores pequenas e passeava pelos canteiros, sulcando rugas no rosto da casa. Alguém disse que eu estava destinada a escalar a montanha mais alta, descobrir o tesouro mais valioso, sobreviver à tempestade perfeita. Mas nada disso aconteceu. Lentamente, desviei-me dessa rota vitoriosa. A cada passo, a cada olhar, havia uma assombrosa descoberta nas pequenas coisas que se amontoavam em redor da casa: a fragilidade, o toque, a subtileza disso. Pétalas levemente pousadas no chão, subjugadas à minha irresponsável podestade. Um dia, coloquei uma coroa de flores e caminhei pelo mundo, de cabeça erguida. As flores cresceram na minha imaginação e, ao fim de algum tempo, tornou-se difícil caminhar com uma cabeça tão desproporcionada em relação ao corpo, assim ampla e expansiva, como um balão a arder no drama que era agora a minha vida. O corpo, a raiz. Ao mesmo tempo, o manto que me cobria, de tão intensamente humano, dissolvia-se em fios de sangue. Alguém disse que isto se chamava inquietação. A viagem, essa estranha substituta.

 

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UMA CABEÇA

a arder no drama, vinda de uma voz de dentro. Muitas cabeças a arder no mesmo drama: dúvidas, angústias filosóficas, limitações existenciais. E também medo. Ao longe, há um coro de vozes monocórdicas que me impede de acordar. Quem sou eu, assim derramada sobre o lençol branco e asséptico, nos confins da escura gruta? Quem és tu, minha pequena flor a nascer no meio das pedras? Por entre as sombras, outras sombras: o que vejo não é o que eu queria ver.

 

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O TEMPO

descaminha a grandeza da minha viagem. O passaporte está em branco. A campainha não pára de tocar. A porta abre-se repentinamente porque era impossível permanecer fechada sobre o seu próprio rosto. A porta abre-se num grito, como se fosse uma garganta estilhaçada. O rosto desfeito ainda quer olhar o jardim, ainda quer regar as raízes dos dias. Ainda quer acautelar aquela vida. Ainda. A casa é agora um lar apenas invocado, uma igreja sem deus. As suas ruínas são as minhas memórias.

 

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A VIAGEM

é uma estranha substituta para a vida. Uma esperança. Um número de telefone. Uma fatia de pão. Um choro. Uma cama improvisada. Um pacote de bolachas. Uma interrupção. Um soldado. Uma garrafa de água. Um vazio. Uma ferida. Um olhar para o que ficou para trás, apenas um. Uma notícia. Outra notícia. Mais uma notícia. E mais outra notícia. Ainda a mesma notícia. Um carrocel. Um discurso incompreensível. Ou então ainda é um sonho. Olhar em frente. Mas.

 

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EIS A PORTA

que eu tanto procurava. Descubro um outro mundo bem diferente daquele que me parecia tão real, tão meu, tão íntimo. Tão estrangeiro. Aqui, neste mundo novo, eu e os outros que me seguem já não somos caminhantes, mas sim o próprio caminho. Sem rosto, sem casa, sem jardim. Somos pedras. Somos um país. Somos outro país. E também somos uma comovente vergonha do espectador que assiste ao noticiário das oito, sentado no seu confortável sofá. Nós – os caminhantes, as pedras – olhamos o teu rosto, vemos a tua casa quando chega a última hora do dia. Estás cansado? Então bebe um chá, apaga a televisão, veste o pijama. Deita a tua consciência. Enquanto ainda não batem à porta. Enquanto ainda não tocam à campainha. Enquanto ainda não entram à força. Que farás daqui para a frente com as raízes dos teus dias?


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_330

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA