terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Revista ATHENA Nº 15 - Fevereiro de 2021

Link para a Reista ATHENA Nº 15 (Fevereiro de 2021), na qual está publicado um ensaio de minha autoria dedicado a Friedrich Nietzsche.

Friedrich Nietzsche fotografado por Hans Olde no verão de 1899


Friedrich, o pastorzinho

A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado.

Friedrich Nietzsche* in Ecce homo

 

1844 e a criança é o filho primogénito no pequeno colo, na pequena casa, na pequena aldeia. A janela aberta de par a par recebe a brisa do outono e convida o menino a fazer voar as suas ideias pelo mundo inteiro. Friedrich.

 

1855 e o menino lia e escrevia compulsivamente. Saber mais, fazer melhor, ser o seu próprio pai severo e exigente. Anos e mais anos. Depois, a música poderosa de Wagner e a filosofia pessimista de Schopenhauer indicam o foco de luz, a matéria pensante contida na sua primeira obra: O Nascimento da Tragédia, o prenúncio de tudo.

 

1879 e Friedrich já não era Friedrich. Ele conhecera o olho do abismo e transformara-se no próprio abismo, caindo naquela monstruosidade muito devagar. «Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para ti». E ele ouvia este chamamento abismal e profundo; caía numa realidade supra-sensível imaginada pelos idealistas, um mundo racional e moral. Mas não, afinal não existia sequer o mundo das aparências. Definitivamente, já nada existia. Apenas ir e vir de nenhum sítio e para nenhuma parte, o Eterno Retorno: oh eternidade… O inverno ao sul e o verão ao norte, assim, em círculos concêntricos e eternos feitos de deterioração. Uma combinação hipnótica para a sua a-realidade, a sua não-vida.

Mas eu sou ainda eu a viver a minha vida assim uma e outra vez, eternamente?

1885 e Also spratch Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen. Quem és tu, Zaratustra? Porque falas assim, para todos e para ninguém? E se o além-do-homem é uma transição entre as linhas da morte de deus? És um preguiçoso, falas, falas, mas não dizes nada. Olhas o sol ao amanhecer vindo do fundo do horizonte como se fosse uma poderosa entoação da melodia wagneriana da vitória. Mas é apenas a simplicidade do dia não eterno.

1889 e Friedrich habita o quarto do delírio. Massacra as teclas do piano rangendo melodias macabras. Subitamente, levanta-se e escreve palavras perturbadas em papéis espalhados por todo o quarto: cartas, prefácios, notas, panfletos, irracionalidades, poemas, epílogos, pensamentos filosóficos, heresias. Ele é o crucificado, o assassino e grita Arianna ich liebe dich. O amor soa bem melhor noutras línguas, noutras salivas pérfidas. A canção que trauteia continuamente é um afecto que se envolve no lençol dos mortos. Percorre sem destino as ruas de Turim e abraça cavalos açoitados por cocheiros. Não há regresso desse lugar, dessa língua demente, dessa escrita desfigurada. Ainda hoje o cavalo de Turim vagueia repetidamente os dezoito minutos de cena no filme do genial Béla Tarr.

 1897 e o colo da mãe é ainda o néctar que lhe corre nas veias, mas os seus pensamentos são como uma lucidez encarnada na demência pensada, falada e escrita. Friedrich é uma sombra no corpo da humanidade, um olho branco que se perdeu no abismo a apontar para o vazio da alma. Ele pensa a poesia de outrora. Queria não ter medo. Porque um poema é sempre demente ainda que calado em murmúrio traiçoeiro. Suster a respiração do poema e ele a cair em câmara muito lenta. Não há forças de gravidade no plano irracional, mas quando cai o poema parte-se devagar e eu parto-me com ele. Às vezes conserto o poema com a baba da minha demência e ele aceita o curativo, entende a sua própria resignação como vitória das palavras humedecidas. Mas não. É apenas um episódio surreal: um triste e anónimo poema colado com cuspo. Eu, cada vez mais partido. E não consigo consertar-me.

 1890 e o homem já não é o homem: o corpo de Friedrich era, agora e definitivamente, o seu post-scriptum; o espírito retorna à origem, pastoreia gestos de aprendiz na toca da loba.

E pergunta:

Quem fez o sol e as estrelas do céu?

Quem implantou nas pessoas a sua natural bondade e justiça?

É o silêncio e a leveza de deus que respondem.

Oh, meu deus, tão calado e ausente.

Adília César, in Revista ATHENA Nº 15 (Fevereiro 2021)

* Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo


sábado, 13 de fevereiro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [10] por Adília César

 - A minha alma, segundo afirma aquele homem diabólico, jaz enterrada sob densas camadas de materialidade. Acredito. Mas ela está lá muito quieta, muito confortável, muito feliz. Para que hei-de eu desbastar, adelgaçar, e furar essas abóbadas de matéria, para que a minha alma se escape para as regiões tormentosas e aterradoras da espiritualidade? É uma coisa perigosa, uma alma assim solta pelos ares, em companhia de espíritos… Não lhe parece?

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Blaubeuren" - O maior meteorito encontrado na Terra (30Kg, Alemanha)

* 

A ENORMIDADE

dos gestos maléficos da espécie humana, perdida no abismo de um mundo que a rejeita. A água dá a vida, a água mata a vida. A criança bebe a água pura da concha das mãos de sua mãe. O cão afoga-se com dois tijolos presos ao pescoço pelo próprio dono. As mãos e as mãos, feitas de ossos, ligamentos, músculos, pele. As mãos iguais e antagónicas. O cérebro comanda o corpo, o livre arbítrio induz a filosofia do quotidiano à ética. Qual?

 

*

OS DIAS

passam a correr, desenfreados, de um lado para o outro. Estão irremediavelmente longe da linha do tempo e nem as frases repetidas nos ecos das notícias permitem a interiorização satisfatória dos últimos acontecimentos. Também esses, os acontecimentos do presente, se perdem. Para sempre? Não. Há uma criança que nasce e tudo volta ao seu lugar. O medo cede à esperança.

 

* 

A MINHA ALMA

está onde eu a coloquei: no pedestal da serenidade, dentro da casa de vidro. À volta, dispus os acontecimentos não fatais perfeitamente alinhados de acordo com a sua importância. E é este sigilo em redor a sussurrar: o meu coração é uma faca de sangue que se enterra na manteiga ao ritmo de longas frases sem sentido. É uma história que já ninguém quer ouvir. Para não desaparecer de vez apoia-se nos cotovelos das rochas e chora essas dores submersas. As lágrimas são vermelhas e riscam a minha face em sulcos de fogo líquido. Lento como o sussurro que perdura no eco daquilo que sou. A serenidade estende-me os seus braços líquidos e frescos, enlaça-me como se fosse um espírito manso, meigo, primaveril. Como se fosse a minha mãe a dar-me de beber na concha das suas mãos. E assim sobrevivo.

 

*

A COMÉDIA HUMANA

dos preguiçosos torna invisíveis as novas oportunidades de reflexão. As pessoas vivem no caos do pensamento e não sabem onde se situa a linha entre a loucura e a lucidez, entre a sombra e a luz, entre a morte e a vida, entre o corpo e o espírito. As palavras e as imagens são diferentes na sua substância, embora a um nível superior palavra e imagem sejam uma totalidade. A palavra é a expressão de um sentido abstracto, é o espírito da imagem que tem esse nome. A palavra acende o caos. Sensações, sentimentos, expectativas com nomes próprios e intransmissíveis. A imagem como apêndice da palavra conduz o seu nome até ao universo real. É difícil eliminar uma ideia recriada numa imagem porque a criação devolve-a à vida, à realidade que conheço. A imagem é física, palpável, mas pode ser uma ilusão se o imprevisível impedir o visível. O que é uma percepção da realidade? O perigo dos oxímoros: faço um gesto e guardo esse gesto numa imagem; continuo a fazer gestos e não os guardo; os gestos não inscritos nas imagens são irreais por não existirem na realidade, pertencendo, inevitavelmente, ao passado? O meu corpo é uma realidade irreal. O meu espírito é uma irrealidade real. A imagem é um drama do meu inconsciente elevado a uma consciência absoluta daquilo que sinto, o conhecimento interior que possuo naquele preciso momento e que te quero mostrar. Estamos perto do fim e já não restam imagens das lembranças, apenas sobraram as palavras.

Olha-me. Eu estou a revelar-te o que vejo, o que sinto, o que sei. Consegues ver?

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__280

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