Alguma vez te pediram um poema bonito? Não há nada pior
do que um poema bonito, as palavras amenas e refrescantes
o preto no branco com muitos suspiros e açucares.
Amabilidades do discurso na teatralidade falsa. Declamação silenciosa
ameaças à respiração breve das palavras encantadoras.
Talvez te peçam um poema bonito. Referência da suavidade oculta
num verso, a espairecer as nuvens e o talento sentimental
climatologia morna da linguística aceitável
na partitura alinhada da tua imaginação incerta.
A curva inflexível da cabeça aos pés, a impedir o voo delicado
das palavras e a conjugar um enjoo subterrâneo de ti.
Todos os tempos verbais acidulados
a rendilhar a osteogénese imperfeita das frases.
Se te pedirem um poema bonito, faz de conta
que a semântica da primavera perdeu a validade
e os pássaros do tempo decidiram voar em contramão
para sincronizar o boicote às palavras róseas e aromáticas
vocação bastarda da poesia conceptual.
Que não te peçam um poema bonito.
Vais simplesmente dizer que a vocação poética cegou
nas sombras da memória inquieta
e no tempo apagado dos teus olhos já não semeias arabescos
e no espaço acidentado do teu corpo já não coses as feridas
que já morreste tantas vezes em silêncios herméticos
todas as vezes adjectivas e dolorosas em que tentaste
escrever um poema que fosse bonito.
Adília César
in Pa_lavra:
«A ênfase do nosso espaço é ressaltar a pa_lavra em todas as suas manifestações poéticas e filosóficas. Um espaço para filosofia, poesia, literatura, fotografia, apresentações de textos acadêmicos e divulgação da cultura. A pa_lavra é a expressão da força criadora presente no fiat lux, que esparrama na poesia e na filosofia o resplendor da sensibilidade e do conhecimento humanos. É a lavratura que faz germinar nas entranhas da terra e do coração os lampejos de esperança fincados na semente que brota e no amor que nasce. A poesia aglutina, nos instantes existenciais, todos os sonhos de uma vida, eternizando-os por meio da pa_lavra; a filosofia questiona os mistérios do universo e os arcanos da existência do homem para, problematizando-os, desbravá-los mediante a pa_lavra.
A pa_lavra assume musicalidade nos versos da poesia e nos desafia a escutá-la; a pa_lavra assume reflexibilidade no pensamento filosófico e nos instiga ao exercício da razão. A poesia inclina-se às emoções e aos sentimentos; a filosofia, ao desafio crítico da intelecção. Em ambas, a pa_lavra é a “linguagem das linguagens”.»
http://www.palavrar.com.br/procedimentos-para-nao-escrever-um-poema-que-seja-bonito (30-07-2018)