sábado, 5 de outubro de 2019

PROCEDIMENTOS PARA NÃO ESCREVER UM POEMA QUE SEJA BONITO







Alguma vez te pediram um poema bonito? Não há nada pior
do que um poema bonito, as palavras amenas e refrescantes
o preto no branco com muitos suspiros e açucares.
Amabilidades do discurso na teatralidade falsa. Declamação silenciosa
ameaças à respiração breve das palavras encantadoras.

Talvez te peçam um poema bonito. Referência da suavidade oculta
num verso, a espairecer as nuvens e o talento sentimental
climatologia morna da linguística aceitável
na partitura alinhada da tua imaginação incerta.

A curva inflexível da cabeça aos pés, a impedir o voo delicado
das palavras e a conjugar um enjoo subterrâneo de ti.
Todos os tempos verbais acidulados
a rendilhar a osteogénese imperfeita das frases.

Se te pedirem um poema bonito, faz de conta
que a semântica da primavera perdeu a validade
e os pássaros do tempo decidiram voar em contramão
para sincronizar o boicote às palavras róseas e aromáticas
vocação bastarda da poesia conceptual.

Que não te peçam um poema bonito.
Vais simplesmente dizer que a vocação poética cegou
nas sombras da memória inquieta
e no tempo apagado dos teus olhos já não semeias arabescos
e no espaço acidentado do teu corpo já não coses as feridas
que já morreste tantas vezes em silêncios herméticos
todas as vezes adjectivas e dolorosas em que tentaste
escrever um poema que fosse bonito.


Adília César

in Pa_lavra:

«A ênfase do nosso espaço é ressaltar a pa_lavra em todas as suas manifestações poéticas e filosóficas. Um espaço para filosofia, poesia, literatura, fotografia, apresentações de textos acadêmicos e divulgação da cultura. A pa_lavra é a expressão da força criadora presente no fiat lux, que esparrama na poesia e na filosofia o resplendor da sensibilidade e do conhecimento humanos. É a lavratura que faz germinar nas entranhas da terra e do coração os lampejos de esperança fincados na semente que brota e no amor que nasce. A poesia aglutina, nos instantes existenciais, todos os sonhos de uma vida, eternizando-os por meio da pa_lavra; a filosofia questiona os mistérios do universo e os arcanos da existência do homem para, problematizando-os, desbravá-los mediante a pa_lavra.
pa_lavra assume musicalidade nos versos da poesia e nos desafia a escutá-la; a pa_lavra assume reflexibilidade no pensamento filosófico e nos instiga ao exercício da razão. A poesia inclina-se às emoções e aos sentimentos; a filosofia, ao desafio crítico da intelecção. Em ambas, a pa_lavra é a “linguagem das linguagens”.»

http://www.palavrar.com.br/procedimentos-para-nao-escrever-um-poema-que-seja-bonito (30-07-2018)

DA POESIA NA INFÂNCIA



Anna é linda. Ela é linda e isso basta-me.
O sol bate na casa amarela dela, é quase como um sinal de Deus.
(Jimmy, 5 anos de idade)

Caligrafia de Fep

O pequeno Jimmy deambula pelo espaço. É visível um vazio expressivo sinistro, um vagar anestesiado, enquanto recita um poema. Lisa Spinelli, a sua educadora de infância, escreve de forma compulsiva cada um dos versos, ditos numa linha melódica de uma nota só, num caderno vagamente destroçado que carrega consigo para toda a parte. Nesse caderno está escrevinhada toda a ânsia de Lisa em ser poetisa: insinuações de uma escrita pretensamente poética que não convence ninguém. Mas os poemas de Jimmy são como pequenas luzes que dão vida a esse caderno e a mulher torna-se obsessiva na sua missão de salvar o talentoso menino da banalidade da vida que o espera: crescer, tornar-se adulto, ganhar a vida, ter uma família; e depois morrer, como de costume. Lisa não consegue submeter-se aos valores práticos da sociedade em que ambos se inserem e de um modo doentio organiza uma sequência de eventos manipulatórios em torno das pessoas com quem convive, inclusive a família de Jimmy, para salvar a genialidade rara da criança, a qualquer custo, uma vez que ela acredita que a sociedade tudo fará para a esmagar. A obsessão vai demasiado longe e Lisa rapta Jimmy, levando-o a passar algum tempo num ambiente de comunhão com a natureza, junto a um lago, numa tentativa de incentivar a criação poética do menino. Mas ele fica assustado e só quer voltar para casa. Quando a polícia chega para o resgatar, Jimmy é colocado sozinho no carro de patrulha e as últimas palavras que se ouvem são dele:
- Tenho um poema. Tenho um poema! 
Mas ninguém ouve o seu poema. É o princípio do fim preconizado por Lisa.




- Que belo argumento para um filme, de uma complexidade psicológica vibrante, diriam os leitores desta crónica. De facto, a ideia deste argumento pertence a Sara Colangelo que realizou o filme The Kindergarten Teacher, pelo qual recebeu o prémio de melhor realização no Festival de Sundance, fazendo também parte da selecção oficial do Festival de Toronto. Foi estreado em Portugal em 2019 e o Cineclube de Faro exibiu-o no dia 1 de Outubro. A viagem perigosa, desesperada e metafórica, vivenciada pelos dois protagonistas, é uma chamada de atenção sobre as relações de poder do adulto educador para com a criança educanda, com fronteiras éticas sempre difíceis de definir. Do ponto de vista de Lisa, a frustração leva-a a executar sucessivos rituais obsessivos que a conduzirão, muito provavelmente e durante um tempo considerável, a uma penitenciária. Do meu ponto de vista de educadora de infância que desenvolve um projecto pedagógico de sensibilização à poesia, recuso submeter-me a angústias de antecipação dos destinos artísticos das crianças que acolho todos os dias. Vi o filme através dos olhos de uma educadora que privilegia a ambiência pedagógica proporcionadora de desenvolvimento artístico precoce nas crianças (função que exerço há mais de 30 anos). E depois, deixo-as ir: as crianças, as luzes poéticas, as raras genialidades. Talvez de vez em quando consiga despertar nessa grande infância que acolho há tanto tempo uma centelha potencialmente estética e isso basta-me.

O pequeno Jimmy tinha um tio que lhe lia poemas, o que foi crucial, decerto, para a criação dos seus versos. Ora Jimmy não simboliza a criança comum e a argumentista confere a essa personagem uma força e uma maturidade que raramente se vêem numa criança de 5 anos. Na verdade, os poemas ditos ao longo do filme foram na realidade escritos por três adultos - Kaveh Akbar, Dominique Townsend e Ocean Vuong – considerados grandes poetas contemporâneos. Mas o filme deixa-nos uma pista importante para que a poesia possa fazer parte da vida de qualquer pessoa: é imperioso guardar os versos da infância na pequena concha das mãos.

Deixo-vos um poema pensado e dito pelo Tiago P. de 4 anos, em contexto de jardim de infância. É um poema de intervenção social, de afirmação do eu poético e intensamente humano. A profundidade da reflexão surpreendeu-me pela simplicidade, pelo efeito emocional e estético que provocou em mim (não é essa uma das funções da poesia, a de assumir uma voz provocadora?). Hoje, o Tiago tem 7 anos e já não pensa em poesia. Os contextos familiar e escolar que o acolhem tendem a não valorizar esse tipo de competência. Mas este poema saiu de dentro dele, pertence-lhe e isso basta-me:

Santiago rima com Tiago.
Eu gosto dos nossos nomes que são poemas.
O meu poema é mais pequenino.
Mas eu sou mais do que o meu nome.
Sou mais do que um som: sou o Tiago.
(Tiago P., 4 anos)

Adília César

Trailer do filme A Educadora de Infância

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

CREPÚSCULO


Arte de Isabel Afonso

Sentava-me numa relva de jardim à tua espera:
a frescura acesa e esperançosa no tempo que ainda faltava.
Nos meus lábios
uma citação anónima dava o mote para a ternura da tarde.
Quase um verso.

Escrevi na pele, rasguei bem fundo.
Se eu cravar a unha no sulco
e a dor perdurar para lá desta compreensão
quer dizer que ainda estou viva? Irá o meu coração
saltar do peito aberto à velocidade da luz?
Quase um fio infinito de sangue e pensamento e vida e amor.

Na escrita e no rosto, tu disseste. Mas eu ainda não sabia de ti.
Na escrita e no coração, eu disse. E tu soubeste de mim.

E é no rosto que exponho o meu coração perante o teu poema
enquanto o crepúsculo escrevia um livro inteiro nas bocas verdes.

Adília César

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA