sábado, 23 de abril de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [37] por Adília César

 

Mas um alto espírito poético que, num perpétuo arranque, quer penetrar para além do mensurável e do tangível, decifrar a pedra e tocar no segredo das coisas – se não produz verdades que a ciência possa registar, sobe, mais que nenhum outro espírito, até às proximidades desse ideal a que nós damos, por convenção, o nome tradicional e teológico de «Deus».

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Silvina e Adília

*

QUANDO EU NASCI

partiram-se todos os cristais da casa. Eu fui a transparência que desaguou da maré do ventre. A mulher principal carregava o lar com a expectativa do milagre, orando, de coração ao alto. Essa transparência fragmentada chamava-se «Deus», disse a minha mãe, naquele preciso momento em que nos olhámos por dentro uma da outra. A primeira palavra aprendida exibia um rosto de liquidez espiritual, uma arquitectura sem alicerces. Vi bem como a mãe também era frágil, de esperanças finas como a verdade e espessas como as dúvidas. A verdade sorria e as dúvidas desmoronavam-se, para mim e para ela. Sei que o meu princípio foi o fim de qualquer coisa que tinha o meu nome. Adília.

 

*

A CRIANÇA

não chorava. Parecia atenta, os olhos abertos como pedras vivas, arregalados em direcção ao tecto pejado de sentimentos novos. O pai disse que estava tudo bem e arrumou os instrumentos de coordenação do acto de nascer. Isto foi o que percebi, enquanto voava pelo quarto com as asas emprestadas pela sensação incómoda de nascer. Abrir, fechar e depois? Finalmente, chorar.

 

*

ABRIL

é um mês não categorizável no calendário do clima e do tempo psicológico. Está confuso. Sol, chuva, vento, e saudades da menina que eu fui. As memórias regridem àquele dia, sem esforço de manipulação dos acontecimentos. Os pedacinhos de cristal enchem o ninho, encheram todos os ninhos que surgiram depois. São quase belos na sua possibilidade de infligir dor e melancolia. Refracta-se a luz, comprova-se o método científico da experiência e canta-se a mesma canção de embalar. O cálice reconstrói-se e assume-se inteiro, sem marcas de tragédia.

 

*

É A MÃE

que canta. O poema engrandece a melodia. A mãe tem a voz de um anjo que antes de ser anjo era uma cotovia. O rouxinol cala-se e espera que a alucinação maternal tenha um final feliz, como nos contos de fadas. Era uma vez que, muitas vezes, se repete na misteriosa missiva, quase uma oração. O primeiro poema que a criança escuta tem a forma dos silêncios que se escondem nas pausas da voz. O que a mãe diz à criança é importante, mas o que ela cala é ainda mais verdadeiro. A criança escuta e acredita. Está tudo bem.

 

*

A VIDA

passa por mim, deixando sulcos nos caminhos do rosto. As pedras desbastam-se pela inércia do tempo. A idade é um lugar de onde não existe evasão e faz o seu trabalho a partir de dentro. Vê-se por fora porque há um labor do espírito que ultrapassa as fronteiras da pele e depois pára para descansar. É um peso que se chama "incerto futuro" nas folhas rasgadas de um calendário perpétuo e sempre provisório. Não posso pensar sobre o porvir porque ainda não sei o que significa a duração de cada dia. Mas sinto a pressão no peito, uma mão enroscada e interior a querer segurar o coração ainda vivo, fechado na caixa de veludo que me foi oferecida quando eu nasci. Sinto um cordão umbilical ligado a mim mesma, quase separado da minha velha mãe, como uma pequena agonia por não saber se conseguirei escrever a última página do manuscrito da minha vida ou se alguém a escreverá por mim. Um ponto sem retorno neste dia em que as delicadas flores de cera se derretem em câmara lenta sobre a minha cabeça e lentamente me vão enterrando. Uma pequena-grande tragédia, portanto. Apenas um instante e quebram-se todos os espelhos onde tantas vezes me vi: uma menina de olhos abertos como pedras vivas: uma menina de mãos dadas com os monstros que estão neste caminho onde inevitavelmente se vai construindo uma ponte para o outro lado, quando os olhos se fecharem.

 

*

AMOR E CONTEMPLAÇÃO

é o que resta debaixo de um tecto de vento e glória, situado longe das rotas de colisão. A casa da mãe, ainda a mesma casa. Os teus olhos maternais conduzem o meu escuro. Em silêncio, aceitas o que te dou como se não houvesse amanhã. Ainda somos mãe e filha no amor e na contemplação. Mas deixa cair as palavras, eu guardarei as que fazem sentido para te declamar um poema de cristal. Já nasceu um novo dia, igual ao primeiro dia em que fomos tu e eu. Ainda somos nós, ainda estamos aqui de corações ao alto. De todas as dúvidas sobressai a verdade total: nós somos o nosso segredo nesta linha de escrita.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_336

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [37] por Adília César

Mas um alto espírito poético que, num perpétuo arranque, quer penetrar para além do mensurável e do tangível, decifrar a pedra e tocar no segredo das coisas – se não produz verdades que a ciência possa registar, sobe, mais que nenhum outro espírito, até às proximidades desse ideal a que nós damos, por convenção, o nome tradicional e teológico de «Deus».

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)



"Mãe e Filho", Gustav Klimt

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QUANDO EU NASCI

partiram-se todos os cristais da casa. Eu fui a transparência que desaguou da maré do ventre. A mulher principal carregava o lar com a expectativa do milagre, orando, de coração ao alto. Essa transparência fragmentada chamava-se «Deus», disse a minha mãe, naquele preciso momento em que nos olhámos por dentro uma da outra. A primeira palavra aprendida exibia um rosto de liquidez espiritual, uma arquitectura sem alicerces. Vi bem como a mãe também era frágil, de esperanças finas como a verdade e espessas como as dúvidas. A verdade sorria e as dúvidas desmoronavam-se, para mim e para ela. Sei que o meu princípio foi o fim de qualquer coisa que tinha o meu nome. Adília.

 

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A CRIANÇA

não chorava. Parecia atenta, os olhos abertos como pedras vivas, arregalados em direcção ao tecto pejado de sentimentos novos. O pai disse que estava tudo bem e arrumou os instrumentos de coordenação do acto de nascer. Isto foi o que percebi, enquanto voava pelo quarto com as asas emprestadas pela sensação incómoda de nascer. Abrir, fechar e depois? Finalmente, chorar.

 

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ABRIL

é um mês não categorizável no calendário do clima e do tempo psicológico. Está confuso. Sol, chuva, vento, e saudades da menina que eu fui. As memórias regridem àquele dia, sem esforço de manipulação dos acontecimentos. Os pedacinhos de cristal enchem o ninho, encheram todos os ninhos que surgiram depois. São quase belos na sua possibilidade de infligir dor e melancolia. Refracta-se a luz, comprova-se o método científico da experiência e canta-se a mesma canção de embalar. O cálice reconstrói-se e assume-se inteiro, sem marcas de tragédia.

 

*

É A MÃE

que canta. O poema engrandece a melodia. A mãe tem a voz de um anjo que antes de ser anjo era uma cotovia. O rouxinol cala-se e espera que a alucinação maternal tenha um final feliz, como nos contos de fadas. Era uma vez que, muitas vezes, se repete na misteriosa missiva, quase uma oração. O primeiro poema que a criança escuta tem a forma dos silêncios que se escondem nas pausas da voz. O que a mãe diz à criança é importante, mas o que ela cala é ainda mais verdadeiro. A criança escuta e acredita. Está tudo bem.

 

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A VIDA

passa por mim, deixando sulcos nos caminhos do rosto. As pedras desbastam-se pela inércia do tempo. A idade é um lugar de onde não existe evasão e faz o seu trabalho a partir de dentro. Vê-se por fora porque há um labor do espírito que ultrapassa as fronteiras da pele e depois pára para descansar. É um peso que se chama "incerto futuro" nas folhas rasgadas de um calendário perpétuo e sempre provisório. Não posso pensar sobre o porvir porque ainda não sei o que significa a duração de cada dia. Mas sinto a pressão no peito, uma mão enroscada e interior a querer segurar o coração ainda vivo, fechado na caixa de veludo que me foi oferecida quando eu nasci. Sinto um cordão umbilical ligado a mim mesma, quase separado da minha velha mãe, como uma pequena agonia por não saber se conseguirei escrever a última página do manuscrito da minha vida ou se alguém a escreverá por mim. Um ponto sem retorno neste dia em que as delicadas flores de cera se derretem em câmara lenta sobre a minha cabeça e lentamente me vão enterrando. Uma pequena-grande tragédia, portanto. Apenas um instante e quebram-se todos os espelhos onde tantas vezes me vi: uma menina de olhos abertos como pedras vivas: uma menina de mãos dadas com os monstros que estão neste caminho onde inevitavelmente se vai construindo uma ponte para o outro lado, quando os olhos se fecharem.

 

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AMOR E CONTEMPLAÇÃO

é o que resta debaixo de um tecto de vento e glória, situado longe das rotas de colisão. A casa da mãe, ainda a mesma casa. Os teus olhos maternais conduzem o meu escuro. Em silêncio, aceitas o que te dou como se não houvesse amanhã. Ainda somos mãe e filha no amor e na contemplação. Mas deixa cair as palavras, eu guardarei as que fazem sentido para te declamar um poema de cristal. Já nasceu um novo dia, igual ao primeiro dia em que fomos tu e eu. Ainda somos nós, ainda estamos aqui de corações ao alto. De todas as dúvidas sobressai a verdade total: nós somos o nosso segredo nesta linha de escrita.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_336

sábado, 9 de abril de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [36] por Adília César


E este paraíso prometido pelo poeta, distante como está, banha toda a sua obra de uma imortal claridade – que é a essência da serenidade.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Pormenor de obra de Anna Boghiguian na Anozero
Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, Dezembro de 2019 
CréditosFrancisco Palma

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SOMOS IMORTAIS

na arte. Prolongamos na efemeridade do momento criador uma essência artística, por vezes estética. A alegria não parece fazer parte dessa equação. Já a doença, tão reveladora da condição humana, perpetua uma certa condição intrínseca da imaginação, escavando bem fundo, até doer o que ainda não doía.

 

*

A DOENÇA

pode ser uma patologia de descoberta do eu. Afinal, quando estamos sãos e felizes, o que há a dizer aos outros sobre a nossa interioridade? Estou feliz! Sim, e depois? Já as agruras do destino, os sentimentos de culpa e de inquietação pesam na consciência. Transbordam das margens da pele, dos orifícios do corpo, da escuridão da tristeza. Ah… a melancolia, essa arma de arremesso da criação.

 

* 

A MELANCOLIA

enquanto característica humana instala-se e identifica-se com a metáfora filosófica, poética, artística. Individualiza-se, torna-se autoral de objectos artísticos. É uma tentativa de cura do mundo que está doente, melancólico. A melancolia pode ser a doença e a sua cura. Talvez escrever sobre melancolia nos mantenha ocupados – o veneno poderá gerar o próprio antídoto. A aura estética da melancolia compensava o sofrimento que podia causar – ontem, tive a certeza que isto era verdade. E hoje?

 

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NÃO EXISTE TOLERÂNCIA

para com os melancólicos. No degrau seguinte surge a depressão, afastando-se de uma certa condição existencial e transpondo-se para a doença mental. A fronteira é frágil, fina. E, todavia, se os fundamentos biológicos da depressão fazem todo o sentido enquanto distúrbio da bioquímica cerebral, que há a dizer sobre as possibilidades poéticas do indivíduo que parece viver no seio de um caos emocional permanente? Talvez a loucura faça parte das nossas vidas, talvez os loucos sejam normais, talvez a loucura seja urgente. Para já, digo apenas isto: William Burroughs, Arthur Rimbaud, Charles Bukowski, Dino Campana, António Gancho. Mas há mais, muitos mais. Eles andam por aí, cobertos de fatiotas de ironia. Neblina, escuridão. Eles são os poetas loucos, malditos, melancólicos.

 

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OS POETAS MELANCÓLICOS

nunca estão satisfeitos, não alcançam a serenidade espiritual nem veem a luz nos seus versos. Procuram, escavam e enterram-se, voluntariamente, numa morte anunciada. Os seus poemas são as suas sepulturas. Depois, os poetas melancólicos renascem e a procura recomeça. Os fracassos do homem perante a vida ditam verdadeiras obras primas, são testemunhos intemporais da condição humana autodestrutiva.

 

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JÁ LESTE

“Uma temporada no inferno” escrita em 1873, de Arthur Rimbaud? Não? Então, devias. Talvez o inferno seja, afinal, um paraíso.


Adília César, https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_334

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA