sábado, 9 de abril de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [36] por Adília César


E este paraíso prometido pelo poeta, distante como está, banha toda a sua obra de uma imortal claridade – que é a essência da serenidade.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Pormenor de obra de Anna Boghiguian na Anozero
Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, Dezembro de 2019 
CréditosFrancisco Palma

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SOMOS IMORTAIS

na arte. Prolongamos na efemeridade do momento criador uma essência artística, por vezes estética. A alegria não parece fazer parte dessa equação. Já a doença, tão reveladora da condição humana, perpetua uma certa condição intrínseca da imaginação, escavando bem fundo, até doer o que ainda não doía.

 

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A DOENÇA

pode ser uma patologia de descoberta do eu. Afinal, quando estamos sãos e felizes, o que há a dizer aos outros sobre a nossa interioridade? Estou feliz! Sim, e depois? Já as agruras do destino, os sentimentos de culpa e de inquietação pesam na consciência. Transbordam das margens da pele, dos orifícios do corpo, da escuridão da tristeza. Ah… a melancolia, essa arma de arremesso da criação.

 

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A MELANCOLIA

enquanto característica humana instala-se e identifica-se com a metáfora filosófica, poética, artística. Individualiza-se, torna-se autoral de objectos artísticos. É uma tentativa de cura do mundo que está doente, melancólico. A melancolia pode ser a doença e a sua cura. Talvez escrever sobre melancolia nos mantenha ocupados – o veneno poderá gerar o próprio antídoto. A aura estética da melancolia compensava o sofrimento que podia causar – ontem, tive a certeza que isto era verdade. E hoje?

 

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NÃO EXISTE TOLERÂNCIA

para com os melancólicos. No degrau seguinte surge a depressão, afastando-se de uma certa condição existencial e transpondo-se para a doença mental. A fronteira é frágil, fina. E, todavia, se os fundamentos biológicos da depressão fazem todo o sentido enquanto distúrbio da bioquímica cerebral, que há a dizer sobre as possibilidades poéticas do indivíduo que parece viver no seio de um caos emocional permanente? Talvez a loucura faça parte das nossas vidas, talvez os loucos sejam normais, talvez a loucura seja urgente. Para já, digo apenas isto: William Burroughs, Arthur Rimbaud, Charles Bukowski, Dino Campana, António Gancho. Mas há mais, muitos mais. Eles andam por aí, cobertos de fatiotas de ironia. Neblina, escuridão. Eles são os poetas loucos, malditos, melancólicos.

 

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OS POETAS MELANCÓLICOS

nunca estão satisfeitos, não alcançam a serenidade espiritual nem veem a luz nos seus versos. Procuram, escavam e enterram-se, voluntariamente, numa morte anunciada. Os seus poemas são as suas sepulturas. Depois, os poetas melancólicos renascem e a procura recomeça. Os fracassos do homem perante a vida ditam verdadeiras obras primas, são testemunhos intemporais da condição humana autodestrutiva.

 

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JÁ LESTE

“Uma temporada no inferno” escrita em 1873, de Arthur Rimbaud? Não? Então, devias. Talvez o inferno seja, afinal, um paraíso.


Adília César, https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_334

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