sexta-feira, 26 de maio de 2023

PERFIL - SIR JOHN HARINGTON

Poetas e poetas

 

Dizem que não há mulher feia

Também não há má poesia.

Que a natureza a tudo premeia

 

Samuel Úria, Má Poesia Feia 

 

Sir John Harington e os planos do autoclismo

     Sir John Harington nasceu em Kelston, Reino Unido (baptizado a 4 de agosto de 1560 e falecido a 20 de novembro de 1612), era um cortesão inglês, poeta e tradutor. O que muita gente não sabe, é que ele ficou na história como o inventor do autoclismo, apesar de se conhecer a existência de espaços sanitários públicos, em forma de bancos conjuntos, nas cidades greco-romanas da antiguidade.

      Foi na corte da Rainha Elisabeth I que J.H. se notabilizou, sendo conhecido como o seu "afilhado atrevido", mas a poesia e outros escritos tendencialmente críticos em relação à monarquia contribuíram para a sua desgraça, passando a ser repudiado pela rainha. “Um Novo Discurso de um Sujeito Velho, chamada Metamorfose de Ajax” data de 1596 e é um texto controverso, uma alegoria política e um ataque à monarquia, ainda que codificado. Sem dúvida, a sua obra mais conhecida. Neste “novo discurso”, J.H. descreve aquilo que seria hoje uma sanita moderna com descarga (o “autoclismo”), a qual chegou a ser instalada na sua casa em Kelston: esta nova invenção seria melhorada em 1778, por Joseph Bramah.

     O século XVI é referenciado como a época em que era vulgar o uso da cadeira de madeira com um recipiente colocado no seu interior, destinado à recolha dos dejectos das pessoas, nas casas das famílias mais abastadas. Em 1739 é finalmente criado o primeiro WC público dividido por género feminino e masculino e, em 1885, Thomas Twyford lançou as inovadoras sanitas de porcelana que substituíram rapidamente, pelos motivos óbvios, as cadeiras de madeira: as peças de louça eram mais bonitas e de fácil limpeza. Sanitas com sifão foram colocadas à disposição dos potenciais utilizadores no final do século XIX, e no século XX a invenção ganhou popularidade: objectos funcionais e imprescindíveis no nosso dia a dia. É interessante referir que no livro As 100 maiores invenções da história, o escritor americano Tom Philbin classificou-o na 16ª colocação.

     Parecendo, esta crónica não é sobre sanitas e autoclismos, embora a introdução seja absolutamente necessária para a compreensão do que vem a seguir. Afinal o inventor do autoclismo também era poeta… Portanto, a minha reflexão vai para uma determinada linha de poesia rebuscada nos canos da inspiração e do sentimentalismo. Muitas pessoas que se dizem poetas escrevem com o coração, não usam a cabeça. Lamentavelmente, quando são assoberbados por algum súbito pensamento que lhes parece “luminoso e inspirador”, têm um problema de configuração e a máquina de construir poemas exibe as suas falhas.

     Na verdade, cabeças há muitas; e ao contrário do que eu julgava até há bem pouco tempo, não há “cabeças ocas”. Contudo, há cabeças que não pensam por dentro, mas sim por fora. Em vez de se preocuparem com a sua essência, apoiam-se numa existência baseada em comodismos, vaidades, peripécias inócuas, enfeites. Nas palavras de Homero Flor, essas pessoas habitam um “Olimpo de Fancarias”, onde a afirmação do ego vale mais do que um pensamento altruísta.

     A poesia, coitada, conspurcou-se. Agora, todos “têm vontade” e “sabem” escrever poemas, ou seja, ser poeta já não é uma condição inerente ao ofício literário, parecendo congregar funções terapêuticas, exibicionistas e decorativas, de modo insistente, obcessivo: desabafos salteados, solturas metafóricas, palavras cruzadas de semântica indigesta. Em suma, matéria biodegradável, de perenidade imediata, porém, sempre mediatizada, infelizmente. Há versos que são como dejectos, mas quando se trata de poemas inteiros, então, é preciso uma boa descarga de tolerância para higienizar o pensamento poético. Eu entendo: há poetas que são como autoclismos avariados, embora não o saibam. E quem tem coragem de lhes dizer a verdade? Poucos.

     Validar a obra de um poeta é tarefa do crítico independente, mas também do leitor atento, e nunca da editora que promove e vende os livros. Certezas: Luís de Camões, Fernando Pessoa e...? Só um sério e sistematizado trabalho de crítica literária elaborado por um número significativo de estudiosos (veja-se, por exemplo, o contributo de Luís Adriano Carlos), comprometidos com a sua difícil tarefa, ao longo de várias décadas, é que poderá chegar a outros nomes que, de facto, convençam. Acredito que o tempo é o crítico literário mais fiável, por poder ser um filtro daquilo que merece a pena: daqui a 100 anos, talvez surja esse 3º nome que ninguém irá contestar.

     Actualmente, o egotismo impera, a vaidade sobrepõe-se à obra e o caos instalou-se na pequenez das intervenções culturais. As redes sociais pouco têm contribuído para a educação do público leitor. Pelo contrário. O que resta? Um bom autoclismo.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_388

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA