sábado, 19 de novembro de 2022

Entrevista a Adília César - NADA SERÁ COMO DANTE, RTP2

A propósito do poeta António Gancho e do meu livro de poesia "Nocturna", foi possível a minha participação no episódio 32 do programa da RTP2 "Nada será como Dante" de 15 de novembro de 2022.



Vídeo: NADA SERÁ COMO DANTE - Adília César





PERFIL - Friedrich Nietzsche

 - Friedrich, o pastorzinho - 


A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado.

Friedrich Nietzsche* in Ecce homo


Friedrich Nietzsche, in Blogue Somos Livros - Bertrand
 

1844 e a criança é o filho primogénito no pequeno colo, na pequena casa, na pequena aldeia. A janela aberta de par a par recebe a brisa do outono e convida o menino a fazer voar as suas ideias pelo mundo inteiro. Friedrich.

1855 e o menino lia e escrevia compulsivamente. Saber mais, fazer melhor, ser o seu próprio pai severo e exigente. Anos e mais anos. Depois, a música poderosa de Wagner e a filosofia pessimista de Schopenhauer indicam o foco de luz, a matéria pensante contida na sua primeira obra: O Nascimento da Tragédia, o prenúncio de tudo.

1879 e Friedrich já não era Friedrich. Ele conhecera o olho do abismo e transformara-se no próprio abismo, caindo naquela monstruosidade muito devagar. «Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para ti». E ele ouvia este chamamento abismal e profundo; caía numa realidade supra-sensível imaginada pelos idealistas, um mundo racional e moral. Mas não, afinal não existia sequer o mundo das aparências. Definitivamente, já nada existia. Apenas ir e vir de nenhum sítio e para nenhuma parte, o Eterno Retorno: oh eternidade… O inverno ao sul e o verão ao norte, assim, em círculos concêntricos e eternos feitos de deterioração. Uma combinação hipnótica para a sua a-realidade, a sua não-vida.

Mas eu sou ainda eu a viver a minha vida assim uma e outra vez, eternamente?

1885 e Also spratch Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen. Quem és tu, Zaratustra? Porque falas assim, para todos e para ninguém? E se o além-do-homem é uma transição entre as linhas da morte de deus? És um preguiçoso, falas, falas, mas não dizes nada. Olhas o sol ao amanhecer vindo do fundo do horizonte como se fosse uma poderosa entoação da melodia wagneriana da vitória. Mas é apenas a simplicidade do dia não eterno.

1889 e Friedrich habita o quarto do delírio. Massacra as teclas do piano rangendo melodias macabras. Subitamente, levanta-se e escreve palavras perturbadas em papéis espalhados por todo o quarto: cartas, prefácios, notas, panfletos, irracionalidades, poemas, epílogos, pensamentos filosóficos, heresias. Ele é o crucificado, o assassino e grita Arianna ich liebe dich. O amor soa bem melhor noutras línguas, noutras salivas pérfidas. A canção que trauteia continuamente é um afecto que se envolve no lençol dos mortos. Percorre sem destino as ruas de Turim e abraça cavalos açoitados por cocheiros. Não há regresso desse lugar, dessa língua demente, dessa escrita desfigurada. Ainda hoje o cavalo de Turim vagueia repetidamente os dezoito minutos de cena no filme do genial Béla Tarr.

1897 e o colo da mãe é ainda o néctar que lhe corre nas veias, mas os seus pensamentos são como uma lucidez encarnada na demência pensada, falada e escrita. Friedrich é uma sombra no corpo da humanidade, um olho branco que se perdeu no abismo a apontar para o vazio da alma. Ele pensa a poesia de outrora. Queria não ter medo. Porque um poema é sempre demente ainda que calado em murmúrio traiçoeiro. Suster a respiração do poema e ele a cair em câmara muito lenta. Não há forças de gravidade no plano irracional, mas quando cai o poema parte-se devagar e eu parto-me com ele. Às vezes conserto o poema com a baba da minha demência e ele aceita o curativo, entende a sua própria resignação como vitória das palavras humedecidas. Mas não. É apenas um episódio surreal: um triste e anónimo poema colado com cuspo. Eu, cada vez mais partido. E não consigo consertar-me.

1890 e o homem já não é o homem: o corpo de Friedrich era, agora e definitivamente, o seu post-scriptum; o espírito retorna à origem, pastoreia gestos de aprendiz na toca da loba.

E pergunta:

Quem fez o sol e as estrelas do céu?

Quem implantou nas pessoas a sua natural bondade e justiça?

É o silêncio e a leveza de deus que respondem.

Oh, meu deus, tão calado e ausente.

 

* Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_364


sábado, 5 de novembro de 2022

PERFIL - Sylvia Plath

- Only let down the veil, the veil, the veil -

 

Sylvia Plath (in @debbiedillela)

Uma coisa sentada por baixo da mesa, sem se alongar no gesto do dia. Cai e não se levanta, fica assim em estátua sob o tampo de mármore. Dizes ser uma harmonia a cantar-me o tempo que agora parou, em teu redor, em meu redor, pontos finais como filhos de grãos de onde nascem as flores do sopro, irradiando para as margens lascadas da folha de papel. Pequenas sementes eclodidas pelas sucessivas leituras das pupilas, onde as pálpebras tombadas inventam a fala muda de não se falar de coisa alguma, nada. O silêncio com a palavra por baixo chora na tristeza de um vento por todos os lados; para cima fogem os olhos, mas não vêem. Há outros filhos de leite que também não têm companhia; outros hermafroditas. Dir-se-ia algo já fúnebre de tanta quietude. Dizes que eu sou a tua amada Sylvia.

Isto de fazer poesia carece de fundamentos abonatórios e realistas, obedece a palavras escritas com erros, como sulidão; submete-se às alucinações quebradas nas letras, deusas de uma simplicidade indescritível e inexplicável; debaixo da mesa é o seu altar, onde as disponho sobre espaços em branco do meu corpo, enquanto tento perder de vista a porta aberta do forno, esse olho magnânimo e assombroso. Paira o tempo sobre um trono antigo de fazer-me velha e cansada, um episódio francamente incomodativo de só. E se eu dançasse por estas voltas que fazem como se tudo me fosse um apenas erro ao longe, que me olha de longe, um apenas erro quase a tombar no acidente quando imagino a cabeça aberta pela música, sopros de erros na voz, palavras imaginadas, animais a galope que me fogem da garganta, letras em atropelo; a coisa sentada debaixo da mesa, surda e muda. Enquanto tu não chegas.

E agora é a mesa que dança, a sulidão é um erro, a sulidão está tão cansada como a palavra que faz o gesto do seu nome, um sino pesado a querer levantar-se sozinho. O tempo a querer-se de uma cor de luz ilustre, clara, alva, tão linearmente límpida como a transparência química de uma lágrima, a imagem melancólica de um pássaro caído do ninho a fazer companhia a outro pássaro caído do bando. Enquanto os nossos filhos dormem e sonham; talvez vivos e também mortos. Mas a poesia não é uma questão de asas.

Abro o coração, são agora dois, jorra o sangue debaixo do tampo de mármore, como raízes de uma flor acesa. É mais difícil dançar assim sobre o visco vermelho que não é uma cor, parece uma fábula imperdoável, um outro sonho que só havia de vir quando eu já fosse muito velha, a boiar no rio do tempo, sem me alongar no gesto da noite.

Mas esse sangue fala e constrói, empilha as palavras e as coisas, inventa uma noção poética fluida e carregada de sinais que ainda não é poesia. A consciência de tudo, a atmosfera metafórica, o trabalho lexical, a performance semântica, o forno tão aberto e convidativo. A cabeça deitada dentro do testamento destinado aos herdeiros que dormem no quarto ao lado desta pequena-grande tragédia.

Apesar da pronúncia correcta nos sons oferecidos ao poema, o poeta é um erro colossal, não sabe quem é, não consegue aprender a coreografia das mãos que escrevem, ensaiada pelos deuses. Debaixo da mesa é o seu túmulo solitário de onde observa a dança perfeita dos outros, o caderno onde os demais erros se perpetuam numa linha contínua de hipóteses: sulidão, puema, fius de sangue. Sinais verdadeiros da morte que se morre de cada vez que os outros tentam escrever o poema perfeito, o tal poema que não consigo alcançar. A confissão que espreitas por cima do meu ombro, quando chegares.

Only let down the veil, the veil, the veil[1], digo, my beloved Ted. Junta-te a mim, está na hora de preenchermos os espaços em branco de todos os corpos, de descobrir a pétala favorita da rima, a seiva do símbolo, o céu da proximidade discursiva. Está na hora de esconder os indícios das intenções fracassadas, de corrigir os erros de todas as traduções.

My beloved Sylvia, dizes. E a respiração enfraquece no domínio do instante.

Our solitude, so annoying and so hopeless.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_362



[1] Verso do poema Um Presente de Aniversário, de Sylvia Plath (1932-1963), in Ariel, Relógio D’Água (1966): Deixa somente cair o véu, o véu, o véu (tradução de Maria Fernanda Borges).


AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA