sábado, 12 de março de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [34] por Adília César


Encontrando aos pés uma pedra, nós não ficamos num tremor de emoção, a interpela-la em violentas estrofes, à espera que uma voz de dentro responda revelando o inefável mistério: homens positivos, as pedras utilizamo-las para levantar mais o nosso muro ou apedrejar mais o nosso semelhante.

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Wind", Vladimir Kush (Realismo Metafórico)

*

HÁ UM ROSTO,

em cada casa, que está à espera. Esperar é acreditar na possibilidade de uma ideia. Uma ideia positiva, como um jardim em redor da casa. Um jardim de flores coloridas como se fossem sentimentos do lar. Aquele rosto que espera, por dentro de cada casa, sabe que algo vai começar a bater à porta, vai começar a tocar à campainha. Vai conseguir entrar, à força. O rosto da casa sente o sobressalto. Pressente o espasmo da invasão. Contudo, quem espera nada alcança: é preciso fazer alguma coisa. É preciso iniciar a viagem, pisar as ruínas, invocar um deus qualquer. Enquanto ainda não batem à porta. Enquanto ainda não tocam à campainha. Enquanto ainda não entram à força. O rosto exibe a urgência de olhar o jardim, de regar as raízes dos dias, pela última vez. Agora, é preciso acautelar a vida.

 

*

 

ANTES,

eu era a rainha das flores pequenas e passeava pelos canteiros, sulcando rugas no rosto da casa. Alguém disse que eu estava destinada a escalar a montanha mais alta, descobrir o tesouro mais valioso, sobreviver à tempestade perfeita. Mas nada disso aconteceu. Lentamente, desviei-me dessa rota vitoriosa. A cada passo, a cada olhar, havia uma assombrosa descoberta nas pequenas coisas que se amontoavam em redor da casa: a fragilidade, o toque, a subtileza disso. Pétalas levemente pousadas no chão, subjugadas à minha irresponsável podestade. Um dia, coloquei uma coroa de flores e caminhei pelo mundo, de cabeça erguida. As flores cresceram na minha imaginação e, ao fim de algum tempo, tornou-se difícil caminhar com uma cabeça tão desproporcionada em relação ao corpo, assim ampla e expansiva, como um balão a arder no drama que era agora a minha vida. O corpo, a raiz. Ao mesmo tempo, o manto que me cobria, de tão intensamente humano, dissolvia-se em fios de sangue. Alguém disse que isto se chamava inquietação. A viagem, essa estranha substituta.

 

*

UMA CABEÇA

a arder no drama, vinda de uma voz de dentro. Muitas cabeças a arder no mesmo drama: dúvidas, angústias filosóficas, limitações existenciais. E também medo. Ao longe, há um coro de vozes monocórdicas que me impede de acordar. Quem sou eu, assim derramada sobre o lençol branco e asséptico, nos confins da escura gruta? Quem és tu, minha pequena flor a nascer no meio das pedras? Por entre as sombras, outras sombras: o que vejo não é o que eu queria ver.

 

*

O TEMPO

descaminha a grandeza da minha viagem. O passaporte está em branco. A campainha não pára de tocar. A porta abre-se repentinamente porque era impossível permanecer fechada sobre o seu próprio rosto. A porta abre-se num grito, como se fosse uma garganta estilhaçada. O rosto desfeito ainda quer olhar o jardim, ainda quer regar as raízes dos dias. Ainda quer acautelar aquela vida. Ainda. A casa é agora um lar apenas invocado, uma igreja sem deus. As suas ruínas são as minhas memórias.

 

*

A VIAGEM

é uma estranha substituta para a vida. Uma esperança. Um número de telefone. Uma fatia de pão. Um choro. Uma cama improvisada. Um pacote de bolachas. Uma interrupção. Um soldado. Uma garrafa de água. Um vazio. Uma ferida. Um olhar para o que ficou para trás, apenas um. Uma notícia. Outra notícia. Mais uma notícia. E mais outra notícia. Ainda a mesma notícia. Um carrocel. Um discurso incompreensível. Ou então ainda é um sonho. Olhar em frente. Mas.

 

*

EIS A PORTA

que eu tanto procurava. Descubro um outro mundo bem diferente daquele que me parecia tão real, tão meu, tão íntimo. Tão estrangeiro. Aqui, neste mundo novo, eu e os outros que me seguem já não somos caminhantes, mas sim o próprio caminho. Sem rosto, sem casa, sem jardim. Somos pedras. Somos um país. Somos outro país. E também somos uma comovente vergonha do espectador que assiste ao noticiário das oito, sentado no seu confortável sofá. Nós – os caminhantes, as pedras – olhamos o teu rosto, vemos a tua casa quando chega a última hora do dia. Estás cansado? Então bebe um chá, apaga a televisão, veste o pijama. Deita a tua consciência. Enquanto ainda não batem à porta. Enquanto ainda não tocam à campainha. Enquanto ainda não entram à força. Que farás daqui para a frente com as raízes dos teus dias?


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_330

2 comentários:

  1. Que texto precioso, neste tempo e em todos os que já foram e hão-de vir. Parabéns 👏

    ResponderEliminar

AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA