sábado, 26 de fevereiro de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [33] por Adília César

Ela [a ideia única] é a companheira espectral da sua vida: surge-lhe de repente de trás das coisas mais singelas, solicitando-lhe a comiseração ou a ira: - e, assim, na ramagem que geme sacudida pela tormenta, ele sente logo as lamentações de uma multidão oprimida, e não pode debruçar-se sobre um berço adormecido, sem que tanta paz lhe recorde as violências que revolvem o Mundo.

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)


©John Wilhelm.ch

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A GUERRA

é sempre uma questão humana global porque habitamos um mundo interdependente. A guerra, a violência, a transgressão. Logo, a guerra está destinada à sua própria condenação moral. Mas será esta ideia “única” assim tão linear? Sim, a guerra é indesejável. Mas e se a guerra contribuir para a paz? Mas.

 

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O PODER

é exercido sobre nós e os outros todos os dias das nossas vidas. Entramos em conflito. A violência define-nos enquanto agentes de socialização próxima e global. Exercemos o poder da violência e sofremos os efeitos do poder exercido pelos outros. Somos agentes da violência, carrascos e também vítimas.

 

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AS TONALIDADES

das guerras a que nos fomos habituando ao longo dos séculos confundem a nossa percepção. A guerra, não sendo um estado normal da sociedade, tem sido a companheira das civilizações ao longo da nossa história. A guerra e a sua consequente violência organizam a ambiência geopolítico-económica que caracteriza as vidas das pessoas. As fronteiras não são só territoriais, são também culturais e éticas. Se a condição humana é bélica, como havemos de lidar com esta contemporaneidade difusa, maléfica, sofrida, comovente? Quem somos e o que andamos aqui a fazer? O que é o Bem e o Mal?

 

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O PACIFISMO

é uma ideia sedutora, mas torna-se ridículo face à monstruosidade do Holocausto, por exemplo. Que face podemos oferecer ao agressor? Nenhuma, na minha opinião. Devemos então considerar que há guerras justas, por constituírem a única estratégia disponível dos agredidos e violentados? Lutar pelo Bem é lutar por tudo o que é caracterizado pelo Mal, indo além de dogmas, religiões, ideologias. Mas.

 

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NÃO É POSSÍVEL

colocar a tirania de um governante no mesmo plano da tolerância dos que dela sofrem as consequências. Não é possível, à distância de 4026,5 km, aceitar a invasão da Ucrânia pela Rússia. Não é ético. Não é possível, pela duração de 42 horas de viagem, implementar um sentimento de indiferença face à lonjura entre os dois países. Lutar pelo Bem, neste caso, é defender o direito e a legitimidade de um país não ser invadido por outro, é um imperativo. Lutar em nome do Bem é entrar em guerra ao lado do povo sofredor. Mas e se a guerra for apenas um jogo de funerais de ambos os lados da cerca política? Quem sai vencedor? Apesar do fogo abrasador das bombas, a guerra é sempre gelada.

 

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A HISTERIA

instalou-se. Hoje, há uma cerca política onde os povos de ambos os lados se vão barricando como podem: ideias totalitárias, brinquedos mortais, tiranias, filosofias sem bandeira. E ainda medo. Esses povos de ambos os lados compartilham a mesma biologia. São homens, mulheres, crianças, com instinto de sobrevivência. Fazem parte de uma família. Querem ter um papel activo na sociedade e dão o seu contributo na escola, no trabalho, na arte, no desporto, na cultura. Em suma, vivem as suas vidas. Desejam ser felizes. À solta na minha cabeça, com todos os meus sentidos povoados pelas notícias instantâneas que me chegam sobre a guerra, surge uma pergunta que expressa a minha sensível indignação: será que os russos também amam os seus filhos?

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_328

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