sábado, 2 de novembro de 2019

ENTRE ESPELHOS

Poema ENTRE ESPELHOS



Pintura surrealista de Troy Brooks


Também a matéria diurna está esvaziada de sentido.
Do céu tombam os pássaros, as lâmpadas
e outras partículas sentimentais.

Faz-se tarde na testa alta do imperador
a sonhar por dentro das suas escravas
cercado de tulipas negras e mudas.
Canções tristes das noivas deixadas no altar.

A mãe ofereceu-me um espelho novo
onde a cabeça parece a mesma em todas as figuras:
bela como um seixo nas águas pequenas
forte como uma trança que cresceu ao longo de um século.

Mas realçar o ovalado dos rostos é apenas intenção de pureza.
Tardia emancipação do desejo, cascata de sangue
a regar o teu jardim jubilado – esse abismo comovido.

A vida a acontecer num espelho que se partiu
é idade cega e arrumada nos olhos da noite.


Poema de Adília César, in revista #TLÖN Nº 4, 2019

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