sexta-feira, 30 de julho de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [19] por Adília César


 Em geral os deuses eram modestos: misturando-se tanto à vida dos homens, temiam-lhes muito o sarcasmo. E os homens mesmo, presentemente, quando têm algum valor também são sempre modestos. Os grandes ares de sabichão, como os ares de ricaço, como os ares de valentão, passaram totalmente de moda.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

  

Zeus

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ZEUS,

é o deus supremo dos céus e dos trovões. Deus dos deuses e dos homens. Pobre Zeus. Deve estar louco, perdido nesta cacofonia universal. Ele é um ajuntador de nuvens, um organizador do mundo. Mas a nuvem, carregada de sarcasmo humano, tenta fugir-lhe a todo o custo: de cá para lá e de lá para cá, as nuvens, todas ao mesmo tempo. Troçam da intencionalidade bélica de Zeus e riem-se nas bátegas de chuva que despejam sobre as nossas cabeças. Imagino a cena: Zeus-pai a ralhar com as crianças-nuvens, ele predisposto à tempestade e elas destinadas à execução do seu próprio fracasso. Acredito que as nuvens não queiram ser deusas, mas a tormenta surge, imponente, desabando sobre o mundo dos homens e dos deuses: a tempestade, acto de Zeus.

 

*

 

A CENA

poderia ter sido pintada por Jonh Constable, um outro “pai” universal. «Hoje vou pintar as nuvens por cima deste mar», diz ele. Elas mudam a cada instante e por isso, ele pinta o mais rápido que lhe é possível. O sol, ténue e fragmentado. Raios de luz mansa. Mas tudo muda, tudo muda. O que aí vem é uma perturbação da natureza. O céu, o sol, a chuva, o vento, a luz, o frio, as nuvens. Tudo muda. O vento gélido transforma as tintas numa pasta grossa agarrada aos pincéis. É difícil a missão do pintor. A narrativa da natureza coincide com a expressão sincera de respeito pela paisagem: nuvens que dançam, cinzentos abstractos, o branco que parece afogar-se neste céu tão pesado. Ele sabe que lhe é permitido este jogo de repetição: as nuvens que vê hoje já não são as mesmas que viu ontem ou que verá amanhã, mas em cada dia há um quadro que nasce, uma nova visão da evanescência de outras visões. Afinal, ele é humano. Ó tempestade.

 

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DE SÉCULO EM SÉCULO

vamos ostentando a vaidade com menor ou maior prejuízo para a nossa imagem. Adaptamo-nos. Cosemo-la nos botões das fatiotas, enlaçamo-la na écharpe sobre os ombros, prendemo-la na gravata à volta do pescoço e os braços tornam-se desagradavelmente compridos com o peso dos anéis, das pulseiras e dos relógios. Nas algibeiras, o dinheiro não serve para nada e vai caindo pelos buraquinhos tecidos pelas nossas ambições materiais. Nas estantes, os livros fazem parte de uma história interminável que ninguém irá ler. Onde está o erro?

 

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HOJE

vi Zeus. Estava ali ao meu alcance. Era parecido com o fazedor de tormentas pintadas por Constable. Mas tudo muda, tudo muda. Está mais magro, parece velho e doente, contaminado pelas fraquezas humanas e pelo calor do verão. A gravata aperta-lhe o pescoço e não o deixa respirar. As nuvens espreitam, ansiosas. Querem brincar às escondidas, mas só sabem chover consolações apressadas de última hora. E Zeus chora, o peito sacudido por longas filas de espera. À espera de quê? Nunca saberemos. Este é um segredo bem guardado pelos deuses.

 

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AINDA HOJE

se perceberá que a pena se torna mais pesada quando não se sabe escolher as palavras certas. Por exemplo: o poema é “bonito”; o verso é “magnífico”; a obra é “extraordinária”; o livro é “profundo”. E agora, o que se faz com esta presunção? Posto isto, tenho a certeza que a pena é qualquer coisa difícil de caracterizar, ao demorar-me por um período de tempo considerável sobre esta matéria dos elogios adjetivados até à exaustão. Ainda hoje se perceberá que tudo isto não passa de um móvel de prateleiras esconsas a abrir e a fechar num discurso de fachada: agradecer e retribuir para continuar a usufruir como uma espécie de favores em cadeia, mas sem generosidade genuína.

 

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QUE PENA…

Afinal, a pena é tão leve que não deixará marca. Mas Zeus tem agora melhor aspecto: o meu ténue sarcasmo engordou-o um pouco, corou-lhe as faces. Gosto de o ver assim, reclinado na poltrona, a ler um livro de poesia. E diz, divertido, com o olhar sábio lançado sobre o horizonte, como se falasse com alguém que não está ali: “o crítico literário e o seu editor podem ajudá-lo a deixar de escrever. Consulte-os”. Zeus solta uma rude gargalhada que se ouve até aos confins do universo e zomba desta espécie de mazela humana: as más escolhas.

Constable aparece e começa a pintar a estranheza do verbo elogiar. E tudo muda, tudo muda na alegoria.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_298

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