sábado, 6 de agosto de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [50] por Adília César

Mas sobretudo sustento que, se a uma literatura faltarem os inovadores, revolucionando incessantemente a Ideia e o Verbo, essa literatura, sujeita a uma disciplina canónica, bem cedo se imobilizará sem remissão numa mediocridade castigada e fria – sobretudo se nela predominam as inteligências claras, flexíveis, comedidas e imitativas (…).

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)


"Wheat and Wormwood", 1922, Hilma af Klint

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AQUELES

que me escutam não percebem o que digo, porque o significado das palavras é sempre e apenas uma mera intenção. Eu digo, porque quero dizer o que quero dizer. Os outros ouvem outra coisa qualquer porque querem ouvir apenas o que querem ouvir, sem dar espaço à percepção do pensamento. Por exemplo, a intenção poética pode ser uma caixa cheia de mãos sagradas que não ousamos tocar sem a devida cerimónia. As minhas mãos, tão profanas, precisam de encontrar outras mãos que possibilitem o bater das asas que conduz ao voo. São as tuas?

 

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AQUELES

que me olham permanecem nos seus lugares de eleição, o alto dos pedestais junto às nuvens, porque acreditam que sabem voar, apesar de não possuírem asas. A autofagia da linguagem cai a pique e desmorona-se numa espécie de ruína civilizacional. Fica por ali, a ruminar, e perturba a intimidade de um mundo raro, oculto, provisório. Eu permaneço debaixo das pedras, sem auxílio, na busca contínua da Ideia e do Verbo.

 

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AQUELES

que me denunciam impõem a subtileza do eu desvanecido com um verso colado na garganta, vindo do limiar das alturas. Um esplendor jubiloso do humano, através do qual se abre uma porta para a minha história, onde a essência prevalece sobre a existência. A vida, a morte, o amor, a vida sempre. Escolho cuidadosamente as palavras que quero dizer nessa procura: alvéolo, casulo, cova, ninho. Ou apenas esconderijo da alma. Isto sou eu a pensar, mas as palavras não parecem ser as minhas. Falta-me a realidade que existia antes disto que sou agora, antes da última página. Escrevo continuamente, mas os símbolos ficam cada vez mais pequenos até que se tornam ilegíveis. A utopia espiritual tem agora o sentido matemático da alucinação obsessiva, da criatividade esmerada. Voar através das palavras. Adeus, é tudo o que resta.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_350


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