sábado, 3 de setembro de 2022

PERFIL - Fiama Hasse Pais Brandão

 A perfeição alucinatória de Fiama -


Guardado no silêncio mais espesso,

O tempo faz e desfaz a vida. *1

Fiama Hasse Pais Brandão *2


Fiama Hasse Pais Brandão

Fiama. Um nome dado à voz que se assume como uma das mais radicais do século XX, predestinada à magia da “palavra infinita”, a chama que nunca perece: Fiama foi, é e será uma chama poética, através de uma linguagem original,  que começou por ser complexa, depois ousada e finalmente, muito simples e despojada, como afirmou o poeta Gastão Cruz.

Fiama Hasse Pais Brandão nasceu a 15 de Agosto de 1938 e faleceu a 20 de Janeiro de 2007, vítima de doença prolongada. Estreou-se em 1957 com Em Cada Pedra um Voo Imóvel. Depois, em partilha com Luiza Neto Jorge, Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta e Gastão Cruz, quando publica Morfismos na colectânea Poesia 61. Tinha um “ar de senhora frágil, simbolista do fim do século XIX, mas era uma mulher de armas”, como realça Jorge Silva Melo, reforçando que a sua faceta irritadiça e inflamada é “um verbo que lhe vai bem”, daí o simbolismo do seu nome.

Imaginemos agora uma janela aberta por onde entra a brisa do fim da tarde, no limiar do crepúsculo. Eduardo Prado Coelho sugere este momento do dia como o melhor para ler a poesia de Fiama. A casa recolhida em redor da figura delicada, debruçada sobre o parapeito. A brisa é um corpo esguio capaz de movimentos sinuosos e remotos, mas indeléveis. Sentimos que tudo está concluído no limite do círculo vivo e ao mesmo tempo aberto ao êxtase da curva infinita do horizonte, a eternidade antiga que vem de outros séculos. Se a indagação sobre esse tempo clássico que não acaba dilacera-nos e angustia-nos, também é verdade que a cada passo nosso levado por cada poema seu, instiga à reconciliação com a modernidade. Tudo tem o seu lugar: a palavra, o tempo, a sensação, a viagem, o espanto. Agora, todas as coisas são irreversíveis, como a água que escorre da fonte, como o verso que brota do pensamento para o exterior. Quando o lugar da linguagem não é convocado, o idioma não nos pertence. Fiama vai mais longe e reclama: “Porque o idioma / é fechado e insondável em cada criatura, / porque cada nação é o berço de uma língua / e os meus poemas noutra língua não são meus. / Quando viajamos no mundo não sabemos quem somos”. *3

A infância vivida na Quinta de Carcavelos – a Vivenda Azul – está sempre presente na memória dos seus poemas. Fiama é agora uma mulher madura, culta, introspectiva, mas já foi uma menina. E o que  mistura-se com o que viu, sabe que o mundo se transforma a cada segundo, que a flor parecendo aberta, murcha e fecha-se pouco a pouco; que a borboleta parecendo em voo, sucumbe no último instante do dia. Ela sabe que apenas a criação estética pode guardar o que vale a pena, ainda que esses fragmentos ocasionais instiguem um empreendimento árduo de reformulações mentais, outros caminhos menos concretos de sangue ou vísceras: o corpo inteiro das coisas vivas e inertes, podendo ser um lugar ameno, é uma escravidão à espera da morte.

Sou capaz de conversar com Fiama, mesmo sem nunca a ter conhecido, com a intenção de a entrevistar, de a questionar sobre o seu processo de escrita e a evolução da sua poesia, que muito admiro; e creio que ela pretende ouvir-me, compreender o que dela se espera. Há até uma certa ternura na sua aura, tudo naquele ser respira poesia e me seduz. De repente, Fiama levanta a mão e interrompe-me, parecendo enfadada e surpreendentemente afogueada ao mesmo tempo:

- Pode repetir? Parece-me demasiado inflectida, essa descrição relativa à minha pessoa. Veja bem minha querida, a única entrevista está nos poemas… Quer mesmo desvendar a minha alucinação?

Uma absoluta presença de espírito abre os olhos à visão do poema e a poetisa reivindica uma vontade que não lhe cabe no corpo frágil, onde a doença já se instalou. Ainda vejo o seu “sorriso quase infantil”, como recorda Jorge Silva Melo. A sua natureza humana funde-se com a natureza em redor, doméstica e orgânica, como tentativa de destacar a transitoriedade fugaz das “coisas” que observa, que percepciona, e com a qual se compromete para a desvendar. É evidente a construção de imagens poéticas onde surge o realce da finitude, da morte. Sendo visível no decurso dos dias e das noites, a natureza não compensa a necessidade de respostas, não conclui as inquirições das paisagens miméticas e culturais: Fiama aprisiona uma lírica reflexiva que nos provoca, que nos inquieta, que nos verga, que nos separa do todo. Mas nem sempre foi assim. Começara palavra a palavra, confinando a poesia a uma única imagem que coincidia quase sempre com uma única palavra, assim: “água significa ave”. Mas depois, na década de 60, aconteceu “a grande sucção do cérebro para a fronte e para a testa como um lago” e os versos tornaram-se mais longos, a poesia assumia-se como um corpo expansivo no seu pensamento. A este respeito, Veiga Ferreira constatou que os poemas de Fiama nasciam de quase tudo, sendo escritos em papéis soltos e posteriormente dactilografados, com poucas emendas.

“Escrevo como um animal, mas com menor perfeição alucinatória” *4, invoca Fiama. Logo, não há consolação nem conforto nos versos da obra Área Branca, esse cenário do falsamente bucólico, que apesar de tudo nos arrebata. O locus terribilis por oposição ao locus amoenus, sendo que o ameno é uma falsa sensação de refúgio contra o tempo e a mortalidade. Quem está vivo vê sempre a morte, vê sempre o branco da luz do fim. É para me salvar que questiono Fiama. As suas respostas conduzem à solidão metafórica. E continua: “Não sei imprimir as três linhas / convergentes do pé da gaivota, nem os pomos /leves da pata dos felinos. Só de uma forma rudimentar / escrevo, e estou a predestinar-me ao fim”. Fiama questiona-se sobre duas inevitabilidades: por um lado, a perplexidade do código escrito, que sendo complexo é ao mesmo tempo rudimentar e pouco clarificante das ideias, pelo menos em relação às marcas perfeitas deixadas pelos animais; por outro lado, a sua compulsão para poetizar destrói a vida, impele-a para um fim inevitável. Estaremos realmente a viver, ou apenas a morrer devagar?

Fiama insiste: “Depois de tantos séculos posso afirmar / que a escrita é uma escravidão dura. / Sei que é inútil e desumano mover as mãos / assim. Nem estou convicta de que seja digno / escrever desta maneira; é uma manufactura triste, / quando as mãos podiam apenas escavar / na terra ou no corpo. Podem ficar as palavras / somente na fita magnética como nas cabeças loiras”. A poetisa põe de parte a eventual lucidez da sua escrita, a preponderância do erudito na linguagem escrita dos homens, aperfeiçoada desde há tanto tempo. Contudo, esse reformular contínuo dos códigos não validam as tentativas – os poemas – de concederem humanidade ao acto de escrever, pois mais dignos são os outros animais que não escrevem.

O poema invoca a infância pura: “Nada na infância nos deveria obrigar / a traçar as patas dos roedores repelentes / que são letras. O som da boca deve escrever-se / no écran, com a nova razão da nova máquina / da realidade. Na areia, porém, ou / no mosaico molhado / terei de aperfeiçoar a minha pegada. Aproximar / dela a mão até alcançar a harmonia do trilho / do escaravelho. Uma fieira de montículos / e ranhuras até ao infinito que para ele é o mar”. A natureza que a cerca, ainda que visceral e alucinatória, é perfeita em todo o seu equilíbrio e Fiama pretende aperfeiçoar o passo, o avanço, o movimento do corpo, até alcançar a harmonia dos animais consentidos, como se a poesia não precisasse de ser escrita. E se os poemas fossem apenas ecos do grito imperial da gaivota?

Dou as mãos a Fiama: ela está tão próxima, tão íntima, a mostrar-me generosamente todos os inícios da sua existência: ela é humana, profundamente humana; ela é o vento omnipresente, o tempo cósmico de outros séculos, a realidade poética que tanto almejo mas não consigo alcançar. Decido tratá-la por tu. Quero entender como o poema descreve a realidade ou se o poema é a tua realidade, a falência do eu criativo como uma doença incurável. Não ousarei inventar falsas questões: Fiama diz que a única resposta está no poema introspectivo, escrevendo os 27 versos descomunais e abstractos para eu os declamar a seguir à sua criação, a fala em voz alta numa linha de escrita contínua e também, ela mesma, alucinatória e imaginada, uma recriação a partir dos poemas que leio e escavo repetidamente, a partir do tempo vivido. Pode a luz resistir à mais obscura sombra sobre o papel branco?

A melancolia de Fiama sobressai nas reflexões que reitera sobre a evolução da escrita enquanto mito, ou seja, a ineficácia do acto escrevente tendo em conta a sua inutilidade, contrapondo-se à fala e à visão, e sente a solidão do seu entendimento. A aprendizagem é urgente e potenciadora da paz de espírito: “Há quantos séculos os seres humanos se aprisionaram / no mito da caligrafia. Como tem sido penoso esse gesto, / há tanto tempo, e só eu o renego, porque sinto / a opressão com que alguém o tornou mais nobre / do que a minha fala ou a minha visão, únicas / propensões inatas. Prefiro aprender pormenorizadamente / a conservar uma impressão digital. Há um pensamento / abstrato e maquinal que decora a História com inteligência / mecânica, e por isso é supérfluo escrever. Só alguns / raros escribas, como os desenhadores de máquinas, / seriam necessários. E poderia descansar a cabeça / no regaço da lama”.

Também Fiama concretiza a sua busca intencional de liberdade, voltando-se para o passado com o propósito de encontrar o futuro da escrita, num estado de completo dilaceramento interior. Ela escreve fora do corpo; ela sofre. E o movimento das mãos não é gesto utilitário de cavar a terra nem tão-pouco coreográfico das batidas por dentro do peito e no latejar das têmporas: é uma prisão, a escravidão do trabalho poético. A melancolia instala-se no processo de busca da origem, na recuperação do tempo tradicional e pacífico da infância. Escrever é uma tortura, dentro e fora da tradição que conhece e da necessidade de alterar essa mesma tradição, ou seja, transformar o passado num futuro real e não apenas linear. Fiama está na sombra e a paisagem que vislumbra é caracterizada por fragmentos fragmentados: divagações diluídas, perdidas nas sombras: “Ensinaria à infância a gravar / no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras / modulações da voz pura, sem a mancha embaciada / compacta que paira diante dos olhos sempre / que se fala. A mancha que se desloca no raio da visão / e desbota qualquer imagem como a chama de uma vela / com a fuligem constante a torná-la opaca”.

Fiama sabe que ao longo da História a escrita condicionou as ideias, sendo que os pergaminhos e os livros fixaram no papel o que alguns escribas entenderam registar. A escrita não fixou, portanto, a fala ou a visão verdadeiras e reais, comuns a toda a natureza: a pedra, a formiga, a árvore, a areia, o mar, todos falam e vêem, sem necessidade de códigos escritos. Ela sente a opressão infligida aos escribas, esses escravos mecânicos e supérfluos da linguagem. Fiama idolatra a infância, onde mora a paz dos nomes nos fios da memória. Fiama constrói a matriz da casa, do mar, da folha, do bicho. Fiama escreve, escreve sempre: recorda, percepciona, enreda, desvenda, sofre e reconcilia-se com o mundo e as coisas; é nessa escrita alucinatória que encontramos a perfeição perfeita da linguagem poética.

A última versão da Obra Breve de Fiama Hasse Pais Brandão contém 766 páginas de uma poesia clara e obscura que atravessam “um mundo ao mesmo tempo anterior ao olhar e esperando por ele para ser decifrado. Esse mundo não é um cosmos pleonasticamente harmonioso, desde sempre votado à contemplação e a um óbvio sentido. É só um mundo escrito em hieróglifos, finito e inesgotável na sua minúcia” *5. O último poema do livro, datado de Agosto de 2000, termina com estes versos, junto ao mar do Algarve: “Hoje, / meu dia, o coração e o dia rejubilam.” 

*1 - In Cenas Vivas (2000), Relógio d´Água.

*2 - Fiama Hasse Pais Brandão (Lisboa, 15 de agosto de 1938 – Lisboa, 20 de janeiro de 2007) foi uma autora multifacetada: poetisa, dramaturga, ficcionista, ensaísta e tradutora portuguesa; estudou Filologia Germânica na Universidade de Lisboa; exerceu actividade de investigação na área da literatura e da linguística.

*3 - In Cenas Vivas (2000), Relógio d´Água.

*4 - In Obra Breve (1991), Editorial Teorema: Área Branca, Rosas (1976-1979).

*5 - In Prefácio de Eduardo Lourenço à Obra Breve (2017), Assírio & Alvim.

Obra Breve (1991), Editorial Teorema

  

Obra Breve (2017), Assírio & Alvim

Adília César

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_354

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