sábado, 16 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [47] por Adília César

Nada há mais ruidoso, e que mais vivamente se saracoteie com um brilho de lantejoulas, do que a política. Por toda essa antiga Europa real, se vêem multidões de politiquetes e de politicões enflorados, emplumados, atordoadores, cacarejando infernalmente, de crista alta.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

João Paulo, em Boa Vista, Leiria, fotografado por Paulo Cunha (Agência Lusa, julho 2022)

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A POLÍTICA

é, para mim, assim como uma espécie de prima afastada. Sei que existe, mas não a conheço bem, não sinto qualquer afinidade e até sou capaz de mudar de passeio só para não a encarar de frente e não ser obrigada a fazer conversa de circunstância. Eu bem sei que devia ser mais militante e pró-activa a nível da política social, já que é a vertente que eu poderia compreender melhor e dar algum contributo válido; devia conhecer os problemas nacionais e internacionais, emitir opiniões válidas, defender os mais fracos; devia tomar partido da esquerda, da direita ou do centro, ou ainda de outra coisa enviesada que, entretanto, parecesse fazer mais sentido num determinado momento da minha vida, tendo em conta a necessidade de encontrar um sentido digno na vida que hoje nos é oferecida. Devia, mas não tenho essa competência, apesar de aceitar, sem grande relutância, a máxima de Aristóteles: “(…) o homem é, naturalmente, um animal político (…)”. A história do mundo está, de facto, cheia de bons e de maus exemplos. A história do mundo transborda de políticos, politiquetes e politicões, dos quais vamos tendo notícias através da comunicação social. Uns são colocados em altos pedestais, aguentando estoicamente os furiosos ventos das alturas, e outros afogam-se na espuma dos acontecimentos.

 

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ASSUMIR

a minha fragilidade em relação ao ser, saber e saber-fazer do ponto de vista político, com tudo o que isso acarreta, não é fácil, apesar de perceber que a política está em tudo o que me rodeia. Apesar da minha assumida ignorância, admito que nos períodos de campanha eleitoral presto mais atenção ao que se passa, para poder tomar uma decisão de voto mais consciente e, sobretudo, mais válida para os problemas reais do meu país. Ponho uma ou outra garra de fora num comentário mais agreste, mudo de canal quando o discurso de campanha não me agrada, suspiro e volto ao princípio de tudo: não percebo nada do que se está a passar. E agora?

 

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NO CALENDÁRIO,

não há eleições à vista. Assim, a política está, para mim, em pausa, embora não completamente desligada. Assisto aos noticiários e vejo o fogo arder em praticamente todos os distritos de Portugal. O fogo arde para se fazer vida, mas ninguém o quer por perto a destruir os bens das pessoas, seja a pequena horta de Ansião, em Leiria, ou a turística Quinta do Lago, no Algarve. Queremos o fogo apagado, morto e enterrado. Creio que este é um assunto assumidamente político, se pensarmos um pouco: Estado, instituições, pessoas, bens; cidadania, educação, crime, planeamento; causas e consequências. Faz tudo parte do mesmo teatro de operações. No ano passado, foi assim. Este ano está a ser também assim. E para o ano?

 

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O QUE SE ERGUE DO FOGO

é um lugar comum, um déjà vu: o desespero dos cidadãos ameaçados pelos incêndios, os constrangimentos dos presidentes de junta, os abalos políticos dos nossos políticos de topo que repetem a ladainha que todos conhecem. Todos conhecem, mas, ainda assim, deixo-a registada, porque já a sei de cor e concordo com a lista de ser, saber e saber-fazer no que diz respeito a incêndios florestais: é preciso insistir na consciencialização social, educando a população para o uso racional do fogo; é preciso levar a cabo um estudo de fundo para um melhor planeamento da massa florestal, com a sua rede de caminhos florestais e depósitos de água; é preciso limpar as florestas e o mato; é preciso incentivar o Estado e as empresas a fazerem um melhor aproveitamento económico das florestas (como por exemplo, a biomassa); é preciso introduzir nos terrenos franjas delimitadoras de espécies de árvores com um baixo poder combustível; é preciso realizar queimas preventivas durante períodos de baixo risco de incêndio; é preciso adoptar medidas legislativas que previnam que pessoas ou empresas possam tirar benefício dos incêndios; é preciso reforçar a perseguição policial e judicial dos incendiários, bem como a vigilância destes após cumprirem pena e saírem em liberdade; é preciso oferecer recompensas a quem denuncie um incendiário criminoso; é preciso reforçar os meios de vigilância das florestas, nos períodos de alto risco de incêndio. É preciso. Então porque não se faz?

 

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PORTUGAL

é um isqueiro infinito. Não é preciso dar-lhe gás, basta dar-lhe vento e ele acende-se. Portugal é um território ofuscado por faíscas de ineficácia e cinzas de arrependimento. E eu, que não percebo nada de política, tenho vergonha dos políticos portugueses, esses politiquetes e politicões enflorados, emplumados, atordoadores, cacarejando infernalmente, de crista alta. A Europa começa aqui, com as suas políticas “europeias”. A Europa também começa aqui, com a labuta dos bravos bombeiros portugueses e, também, de muitos heróis acidentais que, de tronco nu, lutam com a arma da sua tenacidade. Portugal chama? Quem responde?


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_347

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