sábado, 9 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [46] por Adília César


A arte é tudo – tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)



"Cent Mil Milliards de Poèmes", Raymond Queneau, 1961

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A ARTE LITERÁRIA

confronta-se com ela própria. O que se lê está inscrito apenas nos livros ou a leitura artística pode vir de uma imagem? Ou seja, há outros idiomas que compõem as linguagens necessárias à definição de uma percepção estética. O silêncio-êxtase, por exemplo. Estou sentada no sofá, bem direita, atenta às notícias. Quero saber o estado do mundo. Naturalmente, vejo um pouco de tudo que, no final, vai-se a ver e nada. E eis que ela me olha de soslaio: bem direita, mãos depostas sobre o regaço, vestida de escuro. Os cabelos são longos, como os meus. Escuros, como os meus. O sorriso é enigmático e parece decorar o rosto de uma alma antiga. Sim, ela é uma alma antiga e se se visse ao espelho, diria: eu sou a Mona Lisa. Repito: eu sou a Mona Lisa. Eu diria que a Mona Lisa é um livro aberto. Ela é arte, literatura, poesia. E, todavia, neste preciso momento, não há palavras ali. Apenas uma resignação escura vestida à pressa, ou, se preferirem, uma imitação barata. Ainda que reconheça o carácter não-artístico da peça, o biombo com a reprodução gigantesca da figura de Mona Lisa, no canto da sala, é o meu ângulo preferido de visão. Desviar os olhos da televisão para a esquerda e ei-la, é-me oferecido todo aquele esplendor. Em redor, seis estantes altas arrumam cerca de mil e quinhentos livros.

 

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HÁ MAIS LIVROS

espalhados pelas outras divisões da casa. Na verdade, há livros por toda a parte. Eles possuem todos os ângulos da minha casa. Observam-se uns aos outros e tentam imaginar o que cada um contém. Às vezes passa-me pela cabeça uma ideia de acção invertida: imagino que os meus livros são os proprietários do espaço e eu apenas uma mera convidada de ocasião enquanto os livros também me leem. Depois de me lerem e de me conhecerem melhor, não sei o que poderá acontecer. Serei uma leitora interessante para os meus livros? Sinto alguma inquietação, que transformo rapidamente em questões de múltiplas respostas, sendo que nenhuma delas pode ser considerada absoluta.

 

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O MEU ESPÍRITO

apresenta as perguntas, mas, por enquanto, desconheço respostas satisfatórias. As perguntas continuam a surgir no horizonte, apesar do sorriso da Mona Lisa. Porque tens tantos livros? – pergunta ela. Porque cada livro lido é um mundo que nos permite criar mais mundos. – respondo eu. Ela sorri. Imediatamente, a memória atraiçoa-me e vejo as inúmeras apresentações de livros a que assisti.

 

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IRONICAMENTE,

Os livros são sempre lançados às feras, os leitores. Valha-nos o seu fraco apetite. Os leitores não comem papel e os livros escapam, incólumes, a esta espécie de predação literária. Na melhor das hipóteses, são levados para casa debaixo do braço e arrumados numa estante. De seguida, o inevitável esquecimento. Os lançamentos e as apresentações de livros têm os seus dias contados? A excessiva proliferação de obras editadas em Portugal é uma desordem cultural? As bibliotecas são bordéis de livros? As livrarias são uma espécie em vias de extinção? O caos literário que temos ao nosso dispor é uma bênção pela escolha diversificada de autores e obras que sugere ou um sacrilégio, ao não haver filtros de qualidade fidedignos para o público leigo? A cultura exibe, talvez demasiadas vezes, cenários destrutivos da própria cultura. Sendo lícito fragmentar primeiro para depois consolidar, a verdade é que Tanto sabe a Pouco. Que fazer para se ser um melhor leitor? Nada, cada um que procure o seu próprio caminho, é livre de o fazer. Livros...há muitos por onde escolher.

 

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PENSO

nos escritores da moda, nos monstros sagrados e em outras espécies menos vulcânicas, e confronto-me, por vezes, com o que já sei: não há muito a fazer em relação aos critérios de fama. Cada vez gosto mais de descobrir escritores que ninguém conhece e de quem ninguém fala: os marginais, os proscritos, os loucos, os ocultos. De vez em quando há palavras que se iluminam com uma luz só delas. Podia inventariar uma lista de nomes, mas não vou fazê-lo: cada leitor merece os escritores que lê e eu ainda luto para descobrir os meus.

 

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A CONTESTAÇÃO

é incómoda, para quem contesta e para quem é contestado. Decorre do sonho do/a contestador/a que pretende elevar algo ou alguém a outro patamar melhor ou mais sublime. Existe muita retórica à volta do acto de contestar, o qual deverá ser definido através de uma constelação conceptual. Se qualquer conceito é um objecto divergente, por conter um espelho poliédrico de significados, uma verdade (incontestável?) estará encerrada no seu nome: como escreveu o poeta António Gedeão, "eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos de uma criança", mas... a pedra filosofal da mudança assenta na contestação que implica a revolução, porque o sonho de alguém pode ser incomodativo para outros. Ousemos, então, uma ideia contestatária, um acto revolucionário, uma parcela nova do nosso mundo. Ousemos: o medo não entra aqui.

 Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_346 

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Imagem: Foto da obra "Cent Mille Milliards de Poèmes" de Raymond Queneau, 1961

Mais informação, aqui: http://emusicale.free.fr/HISTOIRE_DES_ARTS/hda-litterature/QUENEAU-cent_mille_milliards_de_poemes/_cent_mille_milliards.php

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