sábado, 2 de julho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [45] por Adília César

E se realmente não pensamos mais profundamente do que em Atenas, sob os plátanos da Academia, nem combatemos mais heroicamente do que no desfiladeiro das Termópilas – temos decerto repartido entre nós mais justiça do que no tempo dos Gracos, e há mais saber divulgado entre nós do que no tempo de Aristóteles. E nesse século XX, de que já nos ocupámos com tão paternal solicitude, haverá ainda mais saber espalhado, e haverá mais justiça realizada.

  

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Imagem do filme "Princesse Mandane", de Germaine Dulac, 1928

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O MEU SÉCULO,

diria Günter Grass, para revelar histórias de acontecimentos relevantes e outros triviais relativos ao século XX. No centro, o indivíduo enquanto coral dramático da narrativa protagoniza o quotidiano, os hábitos e os valores subjacentes: política, ciência, guerras, dúvidas, interrogações. A escrita é indagação, mesmo quando se assume como afirmativa.

 

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O MEU SÉCULO XX

é, em grande parte, um tempo perdido no tempo. Como falar da existência real do passado, se o que parece vida concreta é apenas o que está a acontecer neste preciso momento? A vida concreta é a vida presente. E deixemos de lado o futuro, porque ainda não existe, é pura especulação conceptual. Podemos, no entanto, falar de um certo legado que deixamos aos nossos herdeiros, os filhos e os netos. Essa herança é responsabilidade nossa e chama-se “conhecimento”.

 

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SABEMOS HOJE MAIS

do que no século passado. Mas sabemos hoje menos do que no século passado porque repetimos os mesmos erros de percepção a partir de acontecimentos diferentes. Se o século de Günter Grass é de grandeza e horror, tendo em conta a forma como o escritor o narra, não poderemos dizer muito mais sobre estes vinte e um anos do século XXI, a não ser, precisamente, grandeza e horror.

 

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O FIM DO REMORSO

aproxima-se nas imagens que se desvanecem, procuram palavras sem lembranças nem ideias. Procuro dar um passo atrás de olhos bem abertos. Ver a ideia como um todo e depois o vislumbre da cena até à moldura. A seguir, ver a fragância das coisas que querem sair de si próprias. Vejo-te. Tu dizes: isto sou eu, isto não sou eu. Estás confuso. Vestes e despes os valores que o teu século te apresenta como se procurasses uma roupa com a medida perfeita, bem ajustada à ocasião, mas esqueces as medidas do teu espírito.

 

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ÉS UM SER HUMANO

e ousas a pretensão de seres destruidor, nesse lugar de onde não existe evasão. Penso no sem-abrigo que te estende a mão à porta do supermercado e que tu finges não ver. Tu tens fome e ele tem fome, mas não é a mesma fome, entendes? Todos os dias continuas a vestir e a despir esplêndidas fatiotas de ironia. Diz-me: também há saldos de emoções? Duas pelo preço de uma? Fica atento. Talvez encontres emoções em segunda mão. Ou então poderás pedi-las emprestadas ou até mesmo roubá-las! É tentador, mas não resolve o problema da existência.

 

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NA MINHA CABEÇA,

há palavras que andam de baloiço. Brincam, geram confusão, não desistem. Parecem dizer-me que as emoções do meu século deviam ter outro nome: por exemplo, medo. Repito vezes sem conta que não tenho medo, logo, o medo não existe. A palavra medo não existe. A emoção medo não existe. Percepciono com clareza um estado divergente onde a realidade fecha todas as fronteiras. Visualizo o lugar onde agora me encontro: uma galáxia imaginada ao pormenor, onde comando um exército de poetas iluminados para combater os incultos de todo o universo. Disseste que este plano bélico era apenas uma invenção da minha mente, que não era uma verdade real, que a poesia não serve para nada. Eu sei. Mas enquanto fujo de certas realidades específicas e flageladoras, aqui neste lugar onde me chamam louca, estou em paz e invisível. Na minha cabeça, sou uma pessoa e não tenho medo. Enquanto penso profundamente, o meu espírito desfila, triunfante, exibindo um soberbo vestido de justiça e esperança.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_345


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