sábado, 25 de junho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [44] por Adília César

O leitor deixou de ser uma pessoa a quem se fala isoladamente e com o tricórnio na mão: e o escritor tornou-se tão impessoal como ele. Não são individualidades cultas comunicando; são duas substâncias difusas que se penetram, como a luz quando atravessa o ar.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Arte com livros de Ekaterina Panikanova

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DE QUE FALAMOS

quando dizemos literatura? A coisa escrita assume contornos precisos e, ao mesmo tempo, difusos. Contornos precisos: as letras; contornos difusos: o seu significado. O leitor percepciona a ideia transmitida pelo escritor, a qual não é, necessariamente, a mesma. É aí que reside a riqueza da literatura, a transmissão de algo não redutor ou limitado. Pelo contrário, há uma amplificação (ou, se preferirem, ramificação) de ideias, conceitos, sensações e acontecimentos, que conduzem à construção de novo conhecimento. Em suma, a vida ficcionada. Mas.

 

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DE QUEM FALAMOS

quando dizemos leitor? O leitor e o não-leitor asseguram outro paradoxo: não se conseguem definir. Antes de tudo, é preciso perceber: o que é ler? Não será apenas descodificar os símbolos e a forma como se organizam para elaborar palavras e frases, inscritas no livro ou gravadas no ebook… há uma atitude pessoal e íntima nas escolhas que fazemos. O que ler? Onde ler? Dedicamos muito ou pouco tempo à leitura? E o que esperamos ganhar com isso? É uma obrigação ou um prazer? E porque existem tantos não-leitores?

 

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TENDO EM CONTA

a minha perspectiva de leitora, posso afirmar que não consigo conceber a leitura como mero entretenimento. Quando leio estou atenta ao contexto e potencialidades pedagógicas do texto: contacto, análise, compreensão, dedução, conclusão, aprendizagem. As dúvidas que por vezes ficam são motivadoras de outras leituras complementares ou até releituras da mesma obra. E porque tenho necessidades diferentes, leio vários livros ao mesmo tempo. Confuso? Não. Tal como mudamos as nossas máscaras sociais perante o convívio com diferentes pares ou parceiros sociais, assim alteramos o nosso registo mental para o adequar à actividade intelectual do momento. Contudo, leio sempre com prazer.

 

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DE VEZ EM QUANDO

releio “O que Vemos quando Lemos” (2014), um ensaio de Peter Mendelsund, director de arte da Alfred A. Knopf, uma das mais conceituadas editoras norte-americanas. Este livro-objecto pode resumir-se como sendo uma fenomenologia da leitura com recurso a ilustrações: o que vemos quando lemos, além das palavras numa página, e o que imaginamos nas nossas mentes? O leitor é convidado a reflectir através de um jogo exímio de afirmações e ilustrações, o qual se pode considerar como um “código” de acesso a uma nova espécie de linguagem que ultrapassa o significado das palavras e das ideias contidas nas frases elaboradas pelos escritores. O autor propõe uma série de exercícios/análises, explicitando os seus pontos de vista de acordo com imagens surgidas das leituras de obras. Consegue a proeza de nos fazer estabelecer uma relação íntima com livros que ainda não lemos! Vejamos uma das primeiras reflexões do livro: “Quando lemos, estamos imersos. E, quanto mais imersos estamos, menos capacidade temos, no momento, de voltar a atenção das nossas mentes analíticas para a experiência em que estamos absorvidos. Deste modo, na verdade, quando discutimos a sensação de ler, é da memória de termos lido que estamos a falar.”

 

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MAIS OU MENOS

Por esta altura, aparecem as sugestões de leituras de Verão. Ou deveria dizer leitura veraneante? E agora é que tudo se complica. Ler o quê? Em fevereiro de 2022, um inquérito do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa revelou que, “nos últimos 12 meses anteriores à recolha de respostas, 61% dos portugueses não leram um único livro em papel, e, dos 39% que afirmavam ter lido, a maioria leu pouco.” O mesmo estudo acrescenta: “mais de metade dos portugueses não lê livros, uma realidade que está fortemente associada à educação, já que muitos não têm memória de os pais alguma vez os terem levado a uma livraria ou lhes terem oferecido um livro.” O universo de quem leu constitui-se por “pequenos leitores” (27%, que leram entre 1 a 5 livros impressos durante o ano), “médios leitores (7%, que leram entre 6 a 20 livros) e grandes leitores (apenas 1% leu mais do que 20 livros por ano). Em relação à leitura digital, a proporção é semelhante: 5% de “pequenos leitores”, 1% de “médios leitores” e 0% de “grandes leitores”.

 

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OS ESTUDOS

relativos a hábitos de leitura dos portugueses são muito importantes, enquanto instrumentos reveladores da realidade cultural e como base credível para a tomada de decisões a nível educativo e até editorial. Se tudo começa na família, logo aí se verifica a maior fragilidade: “as conclusões do presente estudo apontam igualmente para a existência de uma relação entre a educação e os hábitos de leitura, já que, na sua infância e adolescência, a maioria dos inquiridos não beneficiou de estímulos à leitura gerados em contexto familiar. De acordo com os dados divulgados, a grande maioria dos inquiridos assume que os pais nunca os levaram a uma livraria (71%), a uma feira do livro (75%) ou a uma biblioteca (77%). Por outro lado, 47% assumem que os pais nunca lhes ofereceram um livro e 54% afirmam que nunca lhes leram um livro de histórias.”

 

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HOJE,

ao reflectir sobre este assunto, apetece-me ficar por aqui, assolada, subitamente, por uma sensação de desconsolo social, logo substituída por uma grata e genuína alegria: hoje, como em tantos outros dias, li um poema aos meus pequenos alunos. Eles ouviram e repetiram os versos. Dançaram, declamando os versos aprendidos. E não satisfeitos com toda aquela inquietação sedutora causada pela poesia, pediram mais. E ainda não sabem ler… quer dizer, não sabem descodificar os símbolos da escrita. Mas sabem sentir a leitura. Afinal, ainda há esperança para os livros que estão à espera de serem lidos.

 

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_344

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