sábado, 18 de junho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [43] por Adília César

É que a sociedade assemelha-se à Natureza. E na Europa, como em qualquer espesso bosque, num fundo de vale, um momento vem em que tudo decai e fenece – os ramos secam e racham, os mais altos carvalhos tombam de velhice, mil podridões fermentam, o solo desaparece sob os destroços, a obscuridade aterra, um longo soluço passa no vento. E, a quem então o atravesse, o bosque afigura-se na verdade coisa confusa, arruinada e medonha. E, todavia, tudo isso – é simplesmente Dezembro. É a vida; é a ordem.


Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Parque temático "No Reino de Gulliver", Japão


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E, TODAVIA,

dezembro ainda está longe no calendário do tempo. Como de costume, conduzo o meu BMW negro numa estrada sinuosa na paisagem seca do interior algarvio. O calor insiste em dobrar o ar, sufoca e pragueja: o verão está a chegar, ouve-se e vê-se por toda a parte, nos apelos ao turismo de viagem em busca de lugares mais ou menos idílicos. Que tédio. Vamos e voltamos e nada muda. Vamos e voltamos para que tudo fique na mesma. Chego ao meu local de trabalho. A pressão arterial cai a pique, a cabeça lateja, os olhos secam, os tornozelos incham. O desconforto acentua-se na zona do rosto coberta pela máscara KN95. Neste mês de junho, não sei como vou conseguir enfrentar a ardência do dia.

 

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DESDE QUE ME LEMBRO,

sempre tive uma certa adoração pelas estações do ano mais frescas e de certo modo decadentes, em que o clima vai mostrando o seu lado agreste, as árvores se deixam desnudar, e a neve assegura um manto gelado que tudo cobre. O outono, o inverno, às vezes a primavera. O bosque de Eça é também o meu bosque onde “mil podridões fermentam” e a morte dá origem à vida, num ciclo contínuo, ordenado e eficaz, assim como uma viagem planeada ao pormenor. No outono e no inverno sinto a protecção da natureza em todo o meu organismo e o espírito abandona-se a uma certa atmosfera de paz.

 

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GULLIVER

é uma personagem de ficção literária que me tem importunado nos últimos dias. Faz parte do romance satírico do escritor irlandês Jonathan Swift, publicado pela primeira vez em 1726. Conheci Gulliver durante a minha adolescência, numa época em que me rodeava de livros de aventuras porque ainda não tinha descoberto a poesia. “É necessário dar um passo de cada vez”, dizia-me o meu pai. “Tem cuidado, Gulliver é um pateta”.

 

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MAIS TARDE,

falaram-me de um parque de diversões construído em 1997 – Parque Temático do Reino de Gulliver – à sombra do Monte Fuji, no Japão, ao lado da Floresta do Suicídio e perto de Kamihuishiki, cidade onde se fixava a sede terrorista do grupo religioso responsável por 13 mortes com gás sarin, ocorridas no metro da capital japonesa em 1995. O parque esteve aberto ao público durante cerca de 4 anos e acabou por encerrar, a que se seguiu o esquecimento e o abandono. Senti-me tentada a relacionar os 4 anos de vida do parque às 4 partes do romance: não encontrei uma relação plausível e abandonei a indagação, concluindo apenas que seria uma coincidência sem significado.

 

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CONTUDO,

o abandono de algo – edifício, objecto ou ideia – pressupõe sempre um novo caminho, uma nova viagem com o intuito de procurar e encontrar o que precisamos, no sentido de substituir o que perdemos, o que abandonámos. Creio que chegou o momento de escrever a quinta parte da viagem, mais actual, para libertar Gulliver das suas fraquezas humanas e torná-lo mais digno dum mundo que merece ser salvo, apesar da fome, da corrupção, da desigualdade, da guerra. A sobrevivência do mundo parece apoiar-se numa metáfora perigosa, a da rotação do planeta no sistema solar: gira sobre o seu próprio eixo olhando para dentro e no movimento de translação não vê o que o rodeia. Faz a mesma viagem uma e outra vez, gira, insiste, repete, mas continua cego. A criança nasce e tudo queremos para ela: nem Lilliput nem Brobdingnag, nem pequena nem gigante, mas sim livre e nunca aprisionada. Que todos os seres vivos possam ser livres. Sabemos que ser livre é não estar cego. No entanto, a falha ontológica não se corrige.

 

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CINCO PARTES,

cinco dedos tem uma mão. Com esses dedos contaremos as histórias de cada conflito, as viagens íntimas de cada um de nós em busca de uma verdade maior, para conseguirmos construir um legado que valha a pena. Eis o mundo: a confusão que se instalou é de ordem mórbida; abro e fecho as mãos em agonia, enquanto sobem, lentamente, até à cabeça e apertam as têmporas. Fecho os olhos e repito, em voz alta para que me ouçam, para que Gulliver desperte do sono profundo do esquecimento e do abandono: não estou louca, mas sei que não pertenço a este lugar. Gulliver, quantas mãos serão necessárias para contar todos os nossos fracassos? Até resolvermos este desafio, eis o paradoxo da vida contemporânea: o caos é, afinal, a única ordem que somos capazes de construir.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_343

 

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