sábado, 11 de junho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [42] por Adília César

Mas para que insistir? A Natureza mesma desta poesia não suporta os comentários. Intolerável seria um jardim onde cada flor tivesse preso à haste o grosso capítulo da botânica que a explica e descreve. Prefácios para versos sinceros são infinitamente arriscados. Quando se quer mostrar a beleza de um cristal, movendo-o muito com os dedos – quase sempre se finda por lhe empanar a transparência e o brilho casto.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Ben Goossens

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INSISTIR

no que for sombrio, dúbio, questionável. É necessário arrebatar soluções cristalinas, pensamentos coerentes. Desatar nós, esticar linhas até ao limite do impossível. E, todavia, as percepções do quotidiano são sorrateiras, como as osgas que se infiltram, dissimuladas, nos esconderijos do lar. Mas também são absolutamente necessárias para desmascarar a veemente imprudência de se acreditar em tudo o que parece ser verdadeiro (refiro-me às percepções do quotidiano, não às osgas). Insisto, portanto.

 

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A OSGA

submeteu-se à minha aprovação, bem agarrada à lombada do livro Ângulo Morto de Luís Quintais. Bem escolhido, sem dúvida. Eu própria já o li três vezes e descubro sempre algo questionável: assim é o poder da poesia. Apressei-me a iniciar o diálogo, mas o bicho pareceu perder o interesse e, veloz, desapareceu atrás de uma prateleira de livros de poesia. Imaginei o destino de um ou dois insectos que também habitassem aquela rectidão literária de madeira e papel. Foram, com certeza, engolidos, sem apelo nem agravo, que é para isso que as osgas servem: para engolir criaturas mais pequeninas e indefesas do que ela. É uma questão de sobrevivência.

 

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COM A CRÍTICA LITERÁRIA

passa-se exactamente a mesma coisa: a osga engole os insectos, sendo que a osga é um intelectual muito competente e os insectos... Bem, para sabermos o que eles de facto são, teremos de ler as críticas ou os prefácios dos seus livros. Tudo isto é uma grande tragédia humana, já que, tanto as críticas como os prefácios podem induzir-nos em erro sobre o carácter genuíno dos poemas a que se referem. É sempre preferível tomar atenção às primeiras águas da nossa leitura e só depois fazer outras barrelas com as percepções alheias sobre aquela obra. E, por fim, enxugar bem o livro e perfumá-lo com uma ou outra afirmação intelectual de valor. Que também as há, valha-nos isso.

 

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MAS O CLICHÉ

está na ordem do dia, nas redes sociais e não só: o cliché abundante, oco, breve e… ternurento. Que doce felicidade não ter que ler mais do que duas linhas de texto, meia dúzia de versos pouco exigentes, aos quais se seguem entusiásticos elogios dos ingénuos leitores. Mas será que os autores e os leitores são assim tão ingénuos?

 

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O CARINHO

que os autores procuram nas manifestações dos seus leitores devia ter outro nome. Na verdade, os primeiros desejam ouvir frases redondas de efeito por parte dos segundos, julgando que, deste modo, apaziguam a sua ansiedade durante o processo de testagem da obra. Validar ou não a escrita alheia é um acto de coragem, mas ninguém quer ofender o autor, certo?

 

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O CRÍTICO

teria aqui um papel essencial na educação literária do público, não enquanto mediador do gosto, mas na qualidade de intelectual que aprofunda conhecimento e esclarece dúvidas, tornando o leitor mais competente para o acto de leitura seguinte. Somos livres de ler o que quisermos e de gostarmos seja do que for, mas também é verdade que nos enganamos de vez em quando e perdemos demasiado tempo a ler livros que deveriam estar fechados a sete chaves no baú da vergonha. Paulo Rodrigues Ferreira afirma que “O pior que tem acontecido à literatura é precisamente esta medíocre proletarização da vida intelectual, este achar que um estagiário faz o papel de Barthes, que um qualquer poeta de subúrbio vem de repente substituir Camões”. Em traços gerais, eu concordo com ele.

 

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NA VERDADE,

a osga é um bicho admirável e eu não devia sentir tanta repulsa. É esquiva e praticamente invisível, escondida num ângulo morto da estante. Poderá até tornar-se um óptimo animal de estimação, barato e útil. Gosta de ler e, por enquanto, não critica nem escreve prefácios, apesar da ambição intelectual que a consome. Por agora, a estante de livros é a sua casa, mas a osga é uma criatura admirável e sabe que o mundo do conhecimento está ao seu alcance. Eu também sei e, por enquanto, não critico nem escrevo prefácios, apesar da ambição intelectual que me consome. Estou tranquila, porque de vez em quando é-me dado ver a beleza do cristal, a transparência, o brilho casto de um poema.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_342

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