sábado, 4 de junho de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [41] por Adília César

Temos já misérias, crises, dissoluções, velhas raízes que se despegam, prantos no vento; pior nos irá quando Dezembro vier: mas através de todas as vicissitudes sempre se conservará, como na Natureza, a eterna seiva, que é a eterna força.

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Escultura de Sophie Favre

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A INQUIETAÇÃO

redobra como badaladas vivas no interior do instrumento cardíaco. Este, já não é um coração e, parecendo-se mais com uma arritmia do tempo, insiste na receita de um futuro pouco promissor, por se auto-punir nas acções que os seus habitantes humanos perpetuam dia após dia. Nada muda, afinal. Somos bestas alucinadas a quererem viver as vidinhas do costume.

 

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POR EXEMPLO,

uma ida à praia, o corpo bem besuntado com o protector solar da moda adquirido no supermercado. A besta nem leva a máscara porque “não é preciso e já não é obrigatório”. Sente-se feliz e livre em contacto com a maresia. Primeiro um café na esplanada virada para o mar e depois… A sombrinha, o saco, as toalhas, a garrafa de água, o chapéu de palha, a cadeira desdobrável, a revista light, o telemóvel; talvez o maço de cigarros e, sem dúvida, a bola de Berlim. E tira-se de imediato uma foto aos pés na areia para partilhar nas redes sociais (ainda não percebeste que isso não me interessa?).

 

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FAZ-SE UMA VIAGEM

pelos dias acima e não se chega a lugar nenhum. Os jornalistas dos noticiários televisivos anunciam a guerra e as novas doenças como se fossem mensageiros do Apocalipse. Os humanos escutam, tornando-se cada vez menos humanos. Lentamente, vão-se assemelhando a grandes receptáculos de pequenas hipocrisias. A noite cai, é preciso dormir, mas o sono está atrasado.

 

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FRIEDRICH NIETZSCHE

publicou os aforismos de Humano, Demasiado Humano – Um livro para espíritos livres em 1878, sendo a sua primeira obra após a ruptura com o romantismo de Richard Wagner e o pessimismo de Arthur Schopenhauer. Nietzsche mergulhou na Filosofia e na Epistemologia implodindo as realidades eternas e as verdades absolutas, alertando-nos para a inocuidade da metafísica no futuro. Ele procurava definir o conceito de espírito livre, isto é, aquele que pensa de forma diferente do que se espera dele: o homem do futuro. O autor acusava a Filosofia e a Ciência de não cumprirem os seus papéis de criarem espíritos verdadeiramente livres, e que o homem precisa descobrir-se como Humano, Demasiado Humano. Na época, o livro não teve uma boa aceitação por parte da crítica e vendeu apenas 120 cópias no primeiro ano de publicação.

 

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AS MAZELAS

do mundo actual são as mesmas de outros tempos. Enquanto a natureza tenta resolver o problema das alterações climáticas, as doenças, as guerras e a corrupção generalizada cumprem o seu papel de disseminação activa da fome e da miséria. Porque somos humanos – estupidamente humanos – ainda não conseguimos encontrar a fórmula da sobrevivência da nossa espécie. Pelo contrário, somos os orgulhosos descobridores das mil e uma maneiras de matar e de morrer.

 

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HOJE,

escreve-se um livro e o editor faz uma tiragem de 50 exemplares (sem revisão, sem marketing, sem pagamento de direitos de autor). Nada mais há a fazer do que tirar a casca e comer cru. Meu caro Nietzsche, como vês, a situação agravou-se. Na verdade, temos muitos escritores, temos muitos livros, mas não há quem os leia. As ideias são fabricadas pela comunicação social que os espectadores aceitam passivamente de bandeja, porque é mais fácil assistir a uma reportagem televisiva do que ler um livro e formular ideias próprias a partir do que se leu. Não sei, meu caro Nietzsche, se o teu livro teria hoje mais sucesso. Provavelmente, Humano, Demasiado Humano – Um livro para espíritos livres teria uma edição de 50 exemplares (sem revisão, sem marketing, sem pagamento de direitos de autor). Provavelmente, terias recusado este tipo de “contrato”.

 

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MAS HOJE,

somos espíritos verdadeiramente livres: demos à luz uma Revolução dos Cravos, elegemos um governo democrático, cercámo-nos de novas doenças e de guerras e, sobretudo, respiramos de alívio porque já não usamos máscara. A pandemia vai farejando: quais as consequências da doença e das vacinas no organismo das pessoas? Ninguém sabe. Também as alterações climáticas tendem a dramatizar o teatro das nossas vidas: uma inundação aqui, um deslize de terras ali, uma erupção vulcânica acolá, extinção de espécies animais por todo o planeta.

 

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AS ESTAÇÔES DO ANO

Têm os mesmos nomes – primavera, verão, outono, inverno – mas têm outros rostos. Na verdade, têm apenas uma face – a da insolvência de um processo caótico delineado pela espécie humana para conduzir a sua acção. Se a literatura já não cumpre o seu papel de catalisador do pensamento, a formulação de novas teses (filosóficas) também já não é uma opção. A cada estação do ano mudamos o nosso guarda-roupa, para nos protegermos do clima, mas não fomos capazes de elaborar um escudo repelente da estupidez.

 

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A ESTUPIDEZ

é uma característica intrinsecamente humana: não há animal mais estúpido do que o homem (e a mulher), sendo que as redes sociais constituem um dos seus notáveis exemplos. Esta hipótese causa-me um profundo desconforto. Contudo, as crianças enchem-me de esperança e alegria com o seu empenho, os seus sorrisos e a sua franqueza. Ser criança é ser verdadeiro, criativo e feliz. Recordo o tempo em que esperava o que ainda espero. Dos tempos velhos ressurgirão tempos novos, assim nos dita a filosofia do quotidiano. Até quando?


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_341

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