sábado, 13 de julho de 2019

A POESIA E A POETA ADÍLIA CÉSAR

VESTÍGIOS DE POESIA https://vestigiosdepoesia.blogspot.com é o blogue de Sérgio Ninguém (poeta e editor da Eufeme) dedicado à poesia, à escrita e às traduções. 

Adília César foi entrevistada com base em 3 questões relativas à Poesia.




1. O que é a poesia?

Ouve a tua voz, sussurra ele. Concentro-me. Mas durante um certo tempo sou refém de um chão por dentro, e é por dentro que existo para lá do que sou capaz de existir. Tenho palavras antigas e velhas ao meu dispor para colocar a pele no corpo da poesia, essa vagabunda que me provoca e me tortura. A poesia tem o som do remorso, é o desabafo alinhado por manchas, cheiros, suposições. E sonhos. Então, comovo-me. Descubro que a poesia é uma viagem interior, atravessa caminhos por entre as silvas para encontrar a palavra rigorosa numa consentida poexistência. A poesia é a persistência do caos nos gestos do malabarista inexperiente; uma agonia esfomeada que escava o silêncio e a solidão, rasga a pele, sangra a carne e faz parar o tempo nas entranhas simbólicas: é a dor universal do pensamento a fluir. Depois, vem o alívio da construção do poema, esse corpo feito com partes do próprio corpo do poeta. É um alívio metafórico, mas é o mais real de todos: já o senti tantas vezes, todas as vezes em que tentei escrever um poema. Quando a poesia surge, ou melhor: quando surgimos perante um poema, renascemos num idioma novo, onde não reconhecemos as palavras. E o poema já não é nosso, é um pirilampo aceso a iluminar a escuridão do mundo, que existe durante breves instantes. Mas se o poema se tornar linguagem essencial para alguém, então transforma-se numa estrela eterna – a poexistência. Viver em modo de poexistência é mergulhar no escuro para encontrar a claridade.

Quem escreve poesia procura a superação terapêutica do seu próprio sofrimento (poesia curativa)? Quer mostrar aos outros a sua representação poética de uma realidade emocional e sentimental interiores (poesia confessional)? Intenta investigar os processos da construção do texto poético (meta-poesia)? Ou pretende expor uma criação artística e poética usando as palavras que conhece, exibindo-a como obra? Ou não tem qualquer ambição?
E quem lê poesia o que espera encontrar? Palavras bonitas? Um texto interventivo? Um jogo de palavras? Uma anedota?
Se o poema é escrito através do idioma da fome, a poesia é visceral, emocional e racional, é um animal em vias de extinção porque padece de autofagia. Quem se alimenta de poesia corre o risco de definhar à mercê do imenso frio da ignorância; pois pululam por todo o lado, como uma espécie de praga invencível, tantos pseudopoemas, que mais não são do que representações medíocres da realidade, imitações imperfeitas, uma espécie de contrabando da linguagem, um acto falso e condenável… Assim, a poesia não serve para nada, nem para quem a escreve, nem para quem a lê.
Acredito que a palavra-chave é a criação da linguagem poética como obra de arte, implicada num processo de causa-efeito estético. Ou seja, eu escrevo um poema e sinto o corpo da poesia a pulsar, vivo; dou o passo certo e coloco-me naquela posição exacta em que a iluminação emanada pelas palavras é ainda subtil, mas perfeita. E tu lês o poema que eu escrevi e verás iluminações anteriores aos súbitos de agora, aquelas luzes que ficarão ali a ressoar por dentro de ti, e que acenderás sempre que precisares. A verdadeira poesia transforma o teu caos interior noutro caos ainda mais disforme, porque a apreciação estética não dá respostas, apenas devolve os ecos das perguntas. Neste caso, a poesia pode servir para a construção de uma teoria de tudo, geração após geração, e aí reside o seu valor enquanto arte.

3. Será que só alguns podem ou conseguem ser poetas?

Se eu conseguir caminhar pela frescura dos incêndios de cabeça erguida, sim, eu sou poeta. Mas se não tiver coragem de abandonar a matilha, serei apenas mais um insecto cambaleante, enganado pela luz falsa do candeeiro.
O poeta não precisa de estar preocupado com os outros nem com o mundo. Escreve porque quer escrever sem se preocupar se algum dia vai ser lido. Ah, como eu detesto o poeta possuidor de vaidades vãs, o que se autopromove. Ah, como eu admiro a solenidade do poeta sem abrigo, solitário e louco, a pureza dos seus versos que são como constelações eternas do tempo.
Há muita gente que afirma que escreve poesia. Uns, são apenas vestígios de impurezas, embora com o poder inestético de esborratar o sorriso de Mona Lisa pintado por Da Vinci ou de lascar o véu de mármore da Virgem Velada esculpido por Strazza. E outros até conseguem construir inusitados jogos linguísticos que, afinal de contas, apenas nos conduzem a um vazio metafórico de palavras cruzadas entre si.
Mas poetas, há poucos; porque ser poeta é a pretensão de não o ser, é o acto sublime da criação de uma escrita pura e virgem do mundo visto com os olhos da imaginação, é a densidade de uma água poética que transborda, carregada de pó de arroz e de fumo de cigarro, uma pedrada que atinge o pássaro que se ergue do fogo para o obrigar a voar em contramão.

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