sábado, 21 de maio de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [39] por Adília César

A arte é tudo porque só ela tem a duração – e tudo o resto é nada! As sociedades, os impérios são varridos da Terra, com os seus costumes, as suas glórias, as suas riquezas: e se não passam de memória fugidia dos homens, se ainda para eles se voltam impiedosamente as curiosidades, é porque deles ficou algum vestígio de arte, a coluna tombada de um palácio, ou quatro versos de um pergaminho.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"The City" - Lori Nix

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EM REDOR

de um globo terrestre os objectos estão dispostos de acordo com a sua importância. Percebe-se a hierarquia estabelecida, através da forma como esses diferentes objectos se mostram e se escondem, nas posições ocupadas no espaço disponível. Há livros, muitos livros encostados uns aos outros, apoiando-se mutuamente, à espera de qualquer coisa que tarda em chegar. Alguns quadros esboçam auto-retratos de personagens diluídas na memória humana. As janelas, muito altas, parecem rostos sem boca. Nada têm para dizer quando tudo já foi dito. Árvores ainda vivas rompem o chão daquele santuário e procuram a luz elevada na ruína do tecto aberto. O tecto, enquanto metáfora perfeita de fuga, rende-se, contudo, à melancolia do abandono.

 

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UM SUSSURRO

de vento insiste, infiltra-se em todas as fissuras. O pó assume uma espécie de protagonismo, teimando em manter as outras personagens invisíveis: é o teatro do apocalipse. Da primeira vez do medo, o vento parece ligeiramente significante ao errar o grito. Eco apenas levemente ecoado. Apenas um sussurro. Eis o rumor do fim. Depois, o pavor nidifica, torna-se menos misterioso e mais aceitável; vai pousando um pouco por toda a parte até que, finalmente, os objectos se habituam à sua presença.

 

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A PUREZA

do regresso às origens, antes das palavras. A pureza da semiobscuridade. A pureza da luz depois das palavras. A pureza pode ser uma ideia perigosa. Todas as cadeiras tombam, menos uma. Os olhos movem-se, obstinados, enfrentando a única cadeira que não acompanha o desalento das outras.

 

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A CADEIRA

guarda o lugar do último actor em cena. Está porventura cansado, pois permaneceu em palco, de pé, desde o primeiro minuto do fim. O seu papel era o de se inclinar ao Poema inscrito no pergaminho da memória. Aproxima-se uma nova era e é preciso invocar qualquer coisa genuína. Agora, o último actor perdeu-se naquele quase-espaço, parou naquele quase-tempo. Isso mesmo, és quase o que se espera que sejas, quase. Mas ainda não.

 

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 UMA LINHA INTERDIDA

abre o espaço ao tempo. Não sendo uma fronteira, ganha poder o trilho adormecido da sabedoria, ampliando-se até à sombra rotativa. Estou decididamente presa num fatídico lugar, não consigo excluir-me da dimensão avassaladora da ruína. E penso: o conceito de ruína assemelha-se a um relógio avariado por ser passado, presente e futuro no mesmo mecanismo. E decido que já não há tempo para esperar por ti.

 

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E, TODAVIA,

eu espero. O mundo, enquanto entidade humana, mumifica as ideias alheias nos livros e enterra-as nos sarcófagos do espírito distraído, iletrado. Não basta escrever, é preciso que o que foi escrito seja lido e, assim, a ideia poderia ser ave do paraíso, poderia ser o futuro da humanidade. Mas não há tempo para pregões, não há tempo para esperar por nós. O teu universo e o meu universo nunca serão o universo dos outros. Tu e eu somos, por enquanto, invisíveis, somos livros escritos com sumo de limão. Mas ainda acreditamos que só a emoção da arte será capaz de arrancar os olhos cegos do rosto da humanidade, para que ela possa ver nascer um novo rosto que não pertença a este mundo. O globo terrestre gira sobre si próprio, porque sabe que não tem outro lugar para onde possa ir.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_339

 

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