sábado, 14 de maio de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [38] por Adília César


Depois o autor ia levando o leitor pela mão através da sua obra como através de um jardim que se mostra, repercorrendo com gosto as áleas mais enfeitadas de erudição, parando por vezes a conversar docemente à sombra de um pensamento frondoso. Assim se formava entre ambos uma enternecida intimidade espiritual. O leitor possuía no homem de letras um companheiro de solidão, de um encanto sempre renovado. O autor encontrava no leitor uma atenção demorada, fiel, crente: como filósofo tinha nele um discípulo, como poeta um confidente.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)


Arte de Isabel Afonso*

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LER UMA OBRA LITERÁRIA

não é o mesmo que apreciar um jardim. Uma flor não é um poema. E o escritor não é, necessariamente, um deus que adoramos, nem sequer tem de ser uma pessoa de inequívocas qualidades amigáveis ou sedutoras. A obra pode ser fascinante, mas o seu autor corre o risco de ser apenas pouco atractivo ou até boçal. Assim aconteceu uma, duas, três, muitas vezes, até que fraquejei na demanda. Decidi então que não era necessário conhecer o autor, mas sim ler e apreciar a sua obra. Vejamos.

 

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ENTRETANTO,

num determinado encontro literário, afirmei que após a boa leitura de um livro gostava de conhecer o seu autor pessoalmente, porque a conversa presencial abria a minha visão à leitura que tinha feito da obra. Contudo, esse testemunho público teve um efeito perverso, acabando por me erradicar do cenário literário, por força de alguns desentendimentos. Arrancou-me à esfera do protagonismo festivaleiro e recentrou-me numa espécie de casulo que é a minha linha de escrita e de leitura: uma “forma redonda de ser”[i] criadora de modo imersivo, emocional, racional. Em suma, uma maneira de ser alguém que pretende perceber e dizer alguma coisa arrancada ao “ser-de-dentro”: gosto de lhe chamar “peso da memória que carrego”; noutros dias, dou-lhe o nome de “sonho desmedido” ou ainda “mecanismo imperfeito”. Ideias arrancadas a ferros, digo.

 

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MAS ACONTECEU

o melhor de dois mundos: conheci intimamente um escritor do qual admirava a obra e o amor ficou a morar connosco numa “forma redonda de ser” – isto foi ele que me disse. Ler a obra e ler o homem que a escreveu tornou-se assim a missão da mulher que vivia num casulo e o ampliou até ao tamanho do mundo, tal é o poder da obra dele, tal é o poder dele. O dia e a noite. O tempo todo.

 

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E QUEM SOU EU

quando escrevo e leio? Serei a mesma pessoa? A espiral da viagem deixa-me perfeitamente lúcida quanto às ideias que quero descobrir e que pretendo revelar. As ideias que leio e as ideias que escrevo não são as mesmas. É um caos organizado, implícito nas memórias do passado e nos desejos do futuro que pertencem a duas pessoas diferentes: o escritor e o leitor. Ou serão a mesma pessoa ao espelho?

 

*

 

APERCEBO-ME

que o espelho é uma metáfora viável para o meu dilema, talvez a que melhor corresponde, nesta hora de recolhimento, à implícita solução. De um ponto de vista poético, do céu tombam pássaros, lâmpadas e outras partículas sentimentais. Ele, o escritor, ofereceu-me um espelho novo onde a minha cabeça parece a mesma em todas as figuras: bela como um seixo nas águas pequenas, forte como uma trança que cresceu ao longo de um século. Eu continuo a olhar-me no espelho. Mas realçar o ovalado dos rostos é apenas intenção de pureza, essa presença organizadora da espiral meditativa. É cascata de sangue a regar o jardim jubilado – esse abismo comovido de flor em flor. A vida a acontecer num espelho que se partiu é idade cega e arrumada nos olhos da noite. Ler, escrever, conhecer, amar. Apercebo-me, afinal, que uma flor pode ser um poema. E na hora tardia que me embala, antevejo o meu protagonismo no dilema ecoado até ao infinito. Ainda não é uma voz, mas talvez já seja um murmúrio de sombra e asa, ornamento, convergência. No espelho, sou eu. 



[i] Verso de Fernando Esteves Pinto


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_338

* Trabalho de Isabel Afonso exposto na Galeria Mira (Porto) e depois escolhido para o jornal Le Monde Diplomatique (versão Portuguesa)

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